cap 16

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O quarto estava mergulhado em uma penumbra tranquila, com a única luz vindo de uma pequena vela no canto, lançando sombras suaves pelas paredes. Erin estava deitada na cama, o corpo ainda em chamas com o que havia acontecido momentos antes. No entanto, seus pensamentos agora não estavam apenas no desejo. Algo mais profundo, algo mais íntimo permanecia no ar entre eles.

Kay estava sentado na beira da cama, o olhar voltado para o chão, a máscara ainda firme no rosto. Ele parecia distante, quase preocupado, apesar da intimidade que haviam acabado de compartilhar. Erin observava suas mãos, trêmulas e inquietas, um sinal de que algo o perturbava. Algo que ela não podia ignorar. A máscara sempre fora parte dele, algo que ele nunca tirava, como se fosse uma extensão de quem ele era. Mas agora, depois de tudo o que haviam vivido juntos, ela sentia a necessidade de ver além disso.

Ela se aproximou lentamente, ficando de joelhos na cama, e colocou uma mão suave sobre o ombro dele. Kay tensionou o corpo, mas não se afastou. Ele sabia o que ela queria, e sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria que enfrentar esse momento.

— Kay... — a voz de Erin era suave, quase um sussurro. — Me deixa ver você... de verdade.

Ele fechou os olhos por um momento, sentindo o calor do toque dela, que contrastava com o frio constante que carregava dentro de si. Ele nunca havia mostrado seu rosto a ninguém, e a máscara era mais do que um simples pedaço de tecido: era um escudo. Uma proteção não só contra os outros, mas contra si mesmo. Mas Erin... ela havia se aproximado mais do que qualquer outra pessoa.

Kay se levantou lentamente da cama, a tensão crescendo dentro dele. Ele virou-se de frente para Erin, que agora estava sentada, as pernas cruzadas, olhando diretamente para ele com expectativa e ternura.

— Por que você sempre usa essa máscara? — ela perguntou, sua voz cheia de curiosidade e um toque de vulnerabilidade. — Eu sinto que... que você está se escondendo. Eu quero ver quem você realmente é.

Kay respirou fundo. A verdade é que ele também tinha medo de mostrar seu verdadeiro eu. A máscara escondia mais do que suas cicatrizes físicas; ela também ocultava sua luta interna, sua identidade. Por um longo tempo, ele não sabia como Erin reagiria ao saber que ele era trans. No entanto, algo dentro dele dizia que não poderia mais esconder essa parte de si. Ele queria ser completamente honesto com ela.

— Não é só meu rosto que eu escondo — Kay começou, com a voz hesitante. — Eu tenho medo... medo de que, se você me visse completamente, talvez não gostasse do que encontrasse.

Erin se aproximou um pouco mais, ficando de joelhos novamente. Ela estendeu a mão, parando antes de tocar a máscara. Ela sabia que não podia forçá-lo. Esse era um momento de confiança, de entrega total.

— Eu quero te conhecer por inteiro, Kay. Sem esconderijos — Erin disse suavemente.

O silêncio que se seguiu foi denso, quase palpável. Kay sentiu o peso das palavras dela e, aos poucos, a muralha que ele havia erguido em torno de si começou a se desfazer. Com um movimento hesitante, ele levou as mãos ao rosto e começou a desamarrar a máscara. Erin observava, quase sem respirar, seu coração martelando de expectativa. Quando ele finalmente tirou o pedaço de tecido, deixando-o cair no chão ao lado da cama, seu rosto foi revelado.

Kay abaixou a cabeça por um momento, como se estivesse tentando se proteger da possível rejeição. Mas quando levantou os olhos para encontrar os de Erin, ele não viu repulsa ou choque. Ela o observava com ternura, e os lábios dela se curvaram em um leve sorriso.

— Você é lindo — Erin disse, as palavras saindo com sinceridade.

Kay franziu a testa. "Lindo" nunca foi uma palavra que ele usaria para se descrever, especialmente após as transformações que seu corpo havia passado. Ele nunca se sentiu confortável com seu reflexo no espelho, especialmente durante o processo de transição. As cicatrizes de batalhas externas eram visíveis, mas as internas... essas eram muito mais profundas.

— Você acha isso? — ele murmurou, surpreso. — Mesmo sabendo que... — Ele hesitou, as palavras presas em sua garganta. — Que eu sou assim?

Erin não hesitou. Ela estendeu a mão, tocando suavemente o rosto dele.

— Eu sei — ela disse calmamente. — E isso não muda nada. Eu gosto de você por quem você é, Kay. Todo você.

Kay a observou, tentando processar a aceitação que estava recebendo. Ele sempre teve medo de ser julgado, de ser visto como “diferente”. Ser trans sempre foi uma parte complexa de sua identidade, algo que ele sabia que muitas pessoas não entendiam. Mas Erin... ela o aceitava sem reservas, sem questionar.

— Eu... nunca achei que alguém pudesse me ver assim — ele admitiu, a voz carregada de emoções. — Sempre fui o "estranho", o "monstro", seja pelo que sou ou pelo que pareço.

Erin sorriu suavemente, os olhos brilhando.

— Eu também me sinto assim às vezes. Mas eu vejo você, Kay. Todo você. E o que vejo é alguém forte, corajoso... e incrivelmente belo, por dentro e por fora.

O toque de Erin era delicado, quase reverente. Ela traçou a linha de uma cicatriz que atravessava sua bochecha, descendo até o queixo. Kay fechou os olhos, sentindo a ternura daquele gesto, uma ternura que ele raramente experimentava. Ao longo de sua transição, ele lidou com julgamentos, olhares e questionamentos. Mas, com Erin, ele sentia algo diferente. Havia compreensão, aceitação.

— Não importa quem você era antes, ou como seu corpo era — Erin continuou, a voz suave. — O que importa é quem você escolhe ser agora. E você é perfeito assim como é.

As palavras dela o atingiram como uma onda de alívio, quebrando as últimas defesas que ele mantinha. Pela primeira vez, ele sentiu que não precisava se esconder. Que podia ser ele mesmo — Kay, trans e cicatrizado, mas inteiro.

Erin inclinou-se para frente e beijou sua cicatriz suavemente. Kay estremeceu com o toque, uma onda de calor percorrendo seu corpo. Ele levantou a mão e a pousou no rosto de Erin, trazendo-a para mais perto. Seus lábios se encontraram, e desta vez, o beijo foi diferente. Não era apenas desejo; era algo mais profundo, mais sincero. Era uma promessa silenciosa de que, a partir daquele momento, eles não precisariam mais de máscaras ou segredos entre eles.

Quando o beijo terminou, Erin olhou para Kay, os olhos ainda cheios de ternura.

— Obrigada por confiar em mim — ela sussurrou.

Kay assentiu, sentindo um alívio profundo. Ele finalmente havia mostrado a ela todas as partes de quem ele era, e a aceitação de Erin significava mais do que qualquer palavra poderia expressar.

— Acho que não poderia mais me esconder de você, mesmo que quisesse — ele disse com um sorriso leve.

E naquela noite, enquanto ambos se deitavam lado a lado, finalmente sem barreiras, Kay sentiu que, pela primeira vez, ele não estava sozinho. Erin o havia aceitado por completo, e isso, de certa forma, o fazia acreditar que talvez, finalmente, houvesse um lugar para ele — tanto em Sete Além quanto ao lado dela.

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