17 - Salmão na brasa e sopa

5 0 0
                                    

O som da água gelada batendo nas pedras maiores fazia a sensação do frio atravessar as roupas grossas e úmidas, causando calafrios involuntários. Os pés dela já estavam tropeçando um no outro, e ela mal conseguia trocar os passos.

- Você parece com frio.

Brithil não respondeu. O rio estava ficando mais largo, mas era quase imperceptível. Era como se eles estivessem andando em círculos a dias. Ela sentiu o focinho quente e molhado tocar suavemente os dedos da sua mão, mas a sensação era quase tão imperceptível quanto os avanços deles. Seus dedos pareciam formigar, mas ela também estava tentando ignorar. Brithil mal conseguia se focar no caminho, na sua respiração, ou no urso imenso ao seu lado.

- Você não dormiu essa noite outra vez.

Mas ainda não houve resposta.

- Alguém como você, - o urso respirou pesadamente - não precisa dormir?

As últimas palavras soaram embaçadas, como ouvir a chuva caindo através do vidro de uma janela. Sua bota prendeu numa pedra maior, e ela foi com toda a força no chão. O urso correu, tentando segurar ela, mas não conseguiu impedir que ela caísse no chão. Brithil sentiu o focinho macio dele passar pelo seu rosto, mas não foi o suficiente para manter seus olhos abertos.

Ela começou a sentir o corpo se aquecer suavemente, sentindo o balançar calmo do urso. Ela escondeu o rosto no espaço entre as omoplatas dele, e fechou os olhos outra vez. Através do pelo grosso e meio comprido, ainda era possível ouvir as batidas do coração dele, que iam relaxando cada músculo dolorido, até que ela perdeu a consciência outra vez.

Quando finalmente abriu os olhos outra vez, já estava escuro. Ela moveu os dedos suavemente, sentindo os pelos de urso sob eles. Mas estes estavam um pouco frios. Ela suspirou baixinho, decepcionada. Não era ele. Era o cobertor da sua mochila. Ela tentou raciocinar, mas era como se seu cérebro doesse ao tentar usar. O urso colocou o cobertor de pele de urso no chão, como um colchão para ela não ficar deitada na terra úmida. Brithil ergueu um pouco a cabeça, tentando procurá-lo, mas o corpo dela doía demais.

Uma sombra cobriu a luz da fogueira, se aproximando dela. Ergueu o corpo dela suavemente se sentando ao seu lado, e colocou ela reclinada sobre si, com a cabeça encostando em seu peito. Aquela era uma sensação que a confundiu. Era o mesmo cheiro dele, de madeira, floresta e caça fresca, mas os pelos eram menores. E havia pele. Uma pele macia e muito quente. Brithil queria se levantar e fugir, mas ao mesmo tempo, o cheiro dele não permitia, e nem toda a dor que estava sentindo.

Ele passou os dedos nos cabelos dela, afastando-os do rosto, e aproximou uma tigela de madeira dos lábios dela. Brithil rosnou e se moveu, mas ele passou o outro braço ao redor dos ombros dela, abraçando e puxando mais perto.

- Todos precisam de comida. - ele falou, levando a tigela outra vez nos lábios dela.

Aquela voz grave e macia abraçou o corpo dela como as patas grandes e quentes dele faziam. De alguma forma, era ele, ou era uma alucinação provocada pelos dias sem comida. Ela bebeu aquela sopa, sentindo os pedacinhos de cenoura, beterraba e batata asterix, e era tão gostosa quanto as comidas que ela comia na infância. De repente, seus olhos se encheram de lágrimas, e ela podia ver outra vez o pequeno jardim de niphedils brancas que ficava na frente da sua casa, com paredes de pedra cobertas de musgo e de trepadeiras de tubérgias lilases. Ela amava aquelas flores mais do que tudo no mundo.

- Você tem os olhos mais brilhantes do mundo. - a voz dele se confundia com a voz da sua mãe na cabeça de Brithil, e ela se esforçava muito para ficar acordada. - Parecem as flores que brilham de noite, como pequenas constelações que dá para tocar.

- Melinyel mamil (Eu te amo mamãe) - Brithil sussurrou, fechando os olhos outra vez.

Brithil acordou sentindo o incômodo da luz do sol nas suas pálpebras. Pela sensação de calor que ela sentiu no seu rosto, talvez fosse bem perto do meio dia. Ela se sentou com muito esforço no cobertor de pele de urso negro, enquanto observava o fogo crepitar na lenha a sua frente. Olhando envolta devagar, ela não conseguia reconhecer onde estava. As árvores eram mais verdes e cobertas de musgos e plantas trepadeiras, e havia poucas poças de neve espalhadas aqui e ali. Ela passou os dedos na sua nuca, ouvindo o farfalhar das pedras e grama se tornar mais alto até que o urso castanho-escuro apareceu na sua frente, com pulinhos e saltitos como os de um filhote. Ele diminuiu o passo, e inclinando sua cabeça, soltou dos dentes uma rede de pescar com salmões pintados ainda se mexendo. Se aproximou dela devagar, e encostou seu focinho negro na testa dela, fazendo Brithil se arrepiar com a sensação das fungadas em sua pele.

- Quanto tempo fiquei desacordada? - ela passou os dedos no pescoço do urso, empurrando muito suavemente - Não reconheço este lugar.

- Estamos à um dia do Vau de Rohan. - ele disse, se afastando bem de mansinho, olhando para o rosto dela. - Tem mais comida aqui.

Ele se sentou, olhando atentamente para o rosto dela. Brithil se levantou devagar, e prendeu seus cabelos em um coque no alto da sua cabeça. O urso inclinou a cabeça para o lado, confuso. Ela se ajoelhou, inclinando-se para frente, e observou a fogueira mais de perto. Havia uma grande pedra meio chapada sobre as brasas, onde já haviam algumas cenouras e batatas tostando, subindo um cheiro maravilhoso. Ela pegou um dos peixes da rede, tirou a faca da cintura e limpou a barriga com cuidado. Seu corpo todo se arrepiou ao sentir o focinho quente e macio dele fungar na sua nuca, subindo para o seu cabelo, soltando o nó e fazendo ele cair sobre o rosto.

- Pare já com isso! - ela gritou, assustando ele.

O urso se sentou, caindo um pouco para trás. Nunca sentiu seu coração bater tão rápido, enquanto via a mulher virar para ele apontando aquela faca suja de sangue perto do rosto dele, com os olhos faiscando de raiva.

- Você não pode me assustar assim! - ela continuou a gritar - Ninguém tem permissão de me tocar sem meu consentimento! Nem mesmo um urso de 300kg! Nem mesmo você! Você entendeu bem?

Ele podia ouvir o próprio coração batendo nos pelos das suas orelhas. Nunca tinha batido tão alto. Ele ficou parado, observando ela se levantar, limpar os outros peixes e os levar para o rio, onde os lavou cuidadosamente. Ela era feroz, e ele adorava isso. Feroz como uma ursa selvagem protegendo seus filhotes. Ela retornou para perto da fogueira, e pediu que ele procurasse ervas frescas para temperar. Ele se levantou e saiu, mas nada faria o seu coração parar de bater tão forte quanto naquele momento. Ele achou uma ursa.

Fantasma - Uma lenda da florestaOnde histórias criam vida. Descubra agora