12 - O funeral

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- Vai ficar tudo bem! Vai ficar tudo bem! Vai ficar tudo bem!

A escuridão ainda não havia tomado a floresta por completo, o brilho teimoso do sol já posto iluminava o caminho, o rio, a cabana. Brithil corria, segurando junto a seu peito o corpo do seu pequeno amigo, falando palavras na tentativa de acalmar o pequeno e a si mesma. Não queria imaginar o que ele havia visto, nem o terror que havia sentido. Atrás dela, a vila ainda ardia em chamas, e a luz do fogo brilhava no caminho até o rio.

- Vai ficar tudo bem! Vai ficar tudo bem! - Brithil falava, talvez mais para si mesma.

A distância entre a vila e a sua cabana nunca pareceu tão longa. Com um suave sentimento de alívio, Brithil chegou no seu terreno já conhecido, vendo a sua esquerda a sua cabana, e mais adiante, perto do rio, os corpos dos três orcs que ela matou. Ela correu para a direita, e deitou o garoto recostado no carvalho, onde a alguns dias havia a convocação do Mestre de Kipperdale para a reunião.

Desesperada, ela entrou em sua cabana, e pegou seu cobertor de pele de urso negro e sua capa, desolada por não ter nenhuma erva medicinal. Voltou para junto do pequeno, e arrumou a capa e o cobertor sobre o corpo dele, segurando-o em seu colo outra vez.

- Thil... - ele tossiu, os olhinhos brilhantes assustados. - Tô com medo.

- Não precisa ter medo. - ela acariciou os cabelos dele - Vai ficar tudo bem. Você vai adormecer, e quando acordar, verá praias de areia branca, o mar azul, e não vai sentir dor. E então os seus avós e os guerreiros do passado irão te abraçar e te receber, e você vai viver outras aventuras com eles.

Brithil lutava para não deixar as lágrimas caírem.

- E um dia eu vou te ver novamente, e você me contará tudo. - ela sorriu.

- Não parece ruim. - ele sussurrou.

- E não é. Você estará em paz. - ela acariciou os cabelos dele.

Sentindo a dor em seu peito aumentar, e a respiração do garoto ficar cada vez mais pesada e difícil, Brithil sussurrou uma canção, uma canção de ninar que ela aprendera há muito tempo em uma das suas viagens.

Deite
Sua cabeça doce e cansada
A noite está começando
Você chegou ao fim da jornada
Durma agora
E sonhe com os que vieram antes
Eles estão chamando
Das praias distantes

Por que você chora?
O que são essas lágrimas no rosto?
Logo você verá
Que todo esse medo passará...
Seguro em meus braços
Você apenas dorme

O que você consegue ver
No horizonte?
Por que a gaivota branca canta?
Através do mar
Uma lua pálida se levanta
Os navios vieram para te levar para casa

E tudo se tornará
Em um vidro prateado
Uma luz sobra a água
Navios cinzas navegam para o oeste

Ela deu um beijo na testa do seu pequeno amigo, abraçando forte seu corpo, agora inerte e sem vida. Brithil não segurou mais nenhuma lágrima, e deixou que a dor do seu coração latejasse. Não era justo aquilo estar acontecendo. Não era justo uma criatura tão doce ter um fim tão terrível e inesperado. Como ela pôde deixar isso acontecer? Como ela pôde ser tão desatenta? Como ela não viu a horda de orcs se aproximar da vila?

Ela ouviu uma respiração alta perto dela, mas não se moveu. Brithil sabia que o urso estava sentado ao lado dela, esperando seu próximo passo. Mas ela não ia se mexer. Era o momento de chorar.

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A lua brilhava alto no céu. Brithil sentia o vento gelado fazer seus ossos doerem, mas não se importava. Sob a luz da fogueira, ela terminava de cavar uma cova na terra escura, nas raízes do carvalho. Ela cavou uma cova funda, grande o suficiente para seu propósito.

Com toda a cerimônia que sabia, ela havia enrolado o corpo dele em seu lençol, com algumas amoras silvestres e ramos de alecrim que ela ainda tinha. Pegou seu doce amigo nos braços, e deitou delicadamente naquela cama de terra. Depois, ajoelhou-se ao lado, e as lágrimas voltaram aos seus olhos. Era uma despedida.

- Eu nunca consegui te levar em sua primeira aventura. - ela soluçou - Me perdoe, Vicky. Você teria sido um grande guerreiro, milorde. Eu nunca vou te esquecer.

Então cobriu a cova com terra escura até que estivesse nivelada. Pegando a adaga que costumava ficar debaixo do seu colchão, ela a cravou fundo na árvore e deixou ali, como uma lápide, um memorial.

Naquela noite fria, deitando ali, junto a fogueira, ela chorou até adormecer.

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Brithil abriu os olhos, sentindo a neve fria tocar seu rosto. O sol ainda não despontara no horizonte, e o céu estava cinza e escuro. Mas apesar da neve, ela sentia-se aquecida e reconfortada. O urso respirava pesadamente, adormecido profundamente. Sua pata esquerda servia de travesseiro para ela, e a direita servia de cobertor. Brithil tocou o pelo macio com a ponta dos dedos, e o urso suspirou, satisfeito. Suas pálpebras pesaram, e ela adormeceu outra vez.

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Era quase meio dia quando ela despertou realmente. A neve se alojava em pequenos montes sobre o telhado da cabana, e sobre alguns galhos das árvores. A fogueira não estava mais acesa, mas algumas brasas ainda permaneciam quentes. Ela olhou ao seu redor, constatando que estava sozinha. Não conseguia pensar, como normalmente acontece quando se acorda depois de um sono profundo. Ela se levantou, dobrando em seu braço o cobertor de pele de urso negro, e então caminhou até entrar em sua cabana.

Tudo estava do jeito que ela havia deixado. As janelas abertas, o pão com compota de amora sobre a mesa. Seu coração doeu, uma lágrima correu pelo seu rosto. Era a primeira manhã em dois anos que ela passava sem seu doce amiguinho.

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Brithil derrubou a lenha, arrumando com carinho. O sol já estava em três quartos do céu, aproximando-se do horizonte. Ela passou o dia juntando pedaços de madeira das casas e arrumando juntos, como uma grande esteira no meio da vila. Depois, deitou cerimoniosamente os corpos sobre a madeira, um a um, agrupando pelas famílias. Ela não conhecia a todos, mas sabia um pouco quem era filho, irmão, primo, mãe, avó. Ela pronunciava os nomes daqueles que sabia quando os colocava sobre a madeira, como uma forma de honrar quem foram. Por fim, carregou com respeito o corpo do grande mestre de Kipperdale, o honrado Deere Monroe, que lhe permitiu morar na vila. Era um bom homem, sempre justo. E amava demais seu povo e sua família.

Brithil o deitou ao lado de sua filha, Farah. Ela ainda usava o vestido de noiva. Brithil sentiu dor em seu coração enquanto lhe cobria o rosto com o véu vermelho que segundo a antiga tradição deveria proteger a noiva dos maus espíritos, e colocou um buquê das últimas flores silvestres em seus dedos.

Por fim, ela olhou para todos. A vila inteira, destruída. Ela bateu duas pedras do rio uma contra a outra, acendendo uma pequena fogueira. Ela assistiu o fogo aumentar, ganhar força, então mergulhou uma tora de madeira nele, incendiando-a.

- O destino não permitiu que vocês repousassem no frio sono da morte em um túmulo. - ela caminhou até a base da esteira de madeira que fizera - Então, povo de Kipperdale, eu, como a guardiã, conduzo vocês aos reinos de seus ancestrais pelas labaredas dos reis bárbaros de outrora, a morte digna dos guerreiros bravos e almas destemidas.

E colocou fogo na base. Ele começou lento, suave, beijando a madeira de maneira insegura. Foi subindo aos poucos, e tocou a pele do primeiro corpo. Então se espalhou, tocando outro, e outro, e ainda outro. Em pouco tempo, todos ardiam em labaredas altas. Brithil também incendiou as casas que ainda permaneciam intactas, e queimou os restos daquelas que já haviam sido destruídas. Então retornou até a entrada da vila, e assistiu as chamas fazerem seu trabalho.

- Que sejam recebidos como homens valentes, guerreiros, corajosos. Foi uma honra poder servir a vocês. - ela disse, encerrando sua cerimônia.

Fantasma - Uma lenda da florestaOnde histórias criam vida. Descubra agora