**************************************
O culto ocorre. A igreja é grande. Nos flancos da nave, há duas fileiras verticais de assentos de madeira. Sentado num banco, no espaço que fica junto à parede, ANDRÉ confabula com os amigos. Falam sempre à socapa.
Jônatas (inclina-se; acha-se no meio do assento)
E aí, André?(André não tira os olhos do púlpito, mas deixa escapar um som bucal, que soa cheio de uma altivez juvenil)
Felipe (lança uma olhadela para o mesmo lugar; seu tom é sarcástico)
Já viram a cara? Eu, sei não, viu...Jônatas
Cara? (gracejante) É o que pra ter cara? Cara tens tu.André (para Felipe)
O irmão morreu faz nem um mês, queria o quê? Que sorrisse, ah vai!Jônatas (olha na direção do palanque; seu tom é inesperadamente sério)
Ainda mais pra ti.(André ri-se baixo; Felipe, dum jeito inconspícuo, mostra o dedo do meio a Jônatas)
Jônatas (alegria incontida)
Do nada ela aparece aqui. Do nada!Felipe
A família sempre frequentou nossa igreja.(dão uma pausa de alguns segundos, pois o pastor subiu brevemente o tom)
Jônatas (olha de novo para onde há pouco olhou, abaixando mais a voz)
Ela era do mundo.André (recua o braço perto da parede e coloca-o em cima o encosto do banco, sem desfixar os olhos do púlpito)
A gente continua sendo.Jônatas
Tô falando do mundo, o lá de fora.Felipe
Baile funk e o escambau.Jônatas (curiosidade sôfrega)
Ela ia?!André (resoluto)
Nada a ver: namorava só.Felipe (encara por mais tempo o local habitual)
Uma vez eu vi. (joga a isca)Jônatas (jocoso)
De novo essa história?! Danou-se. Parece que nunca viu.André (ri-se, fazendo que vai cair do banco)
Por isso.Felipe (sem desconcerto)
Se vocês tivessem lá pra ver... Ah rapaz! (ajeita-se no banco, aproxima-se dos outros para sussurrar) No meio da rua... quer dizer, na calçada, entre uma árvore e o carro do papai. Mas qualquer um podia ver. Uma mãozinha, ó. (gesticula)André
A gente sabe.Jônatas (destemido)
Na bunda.(o efeito que a palavra redonda provoca no trio deixa-os como que prendendo um riso enorme)
André (olha para Felipe, artimanhoso)
Tem certeza que foi lá?Jônatas (debochado)
Acha que ele ia esquecer?Felipe (orgulhosamente)
Tavam nos abraços. Pra mão descer era um a.Jônatas (confuso)
Um a?André (prolonga o vocábulo com vulgaridade)
Um "ah!"!Jônatas
Eita. A, de André.André (incomovido)
Que nada.Felipe (ávido)
Mas é sério. A rua estava vazia, nem vento tinha. Não sei, quer dizer, sei, como não pensavam em assalto. Além do mais, o carro, a árvore... Faltava o que pra mão descer?André
Você parar de espiar.Jônatas (quase intorrempendo o antecessor)
Será que ela é mesmo?Felipe (tom injustiçado)
Primeiro: A culpa não é minha se eu tava passando na hora. Segundo, Jona: Ainda duvida? Carla foi na casa dela...Jônatas (trunca, quase falando alto)
Casa?!Felipe
Tá longe de uma mansão. Deixa de ser...Jônatas (impaciente)
Tá, tá.Felipe (esquece; narração calma; volta a olhar o púlpito)
Carla foi fazer a unha da mãe dela. Contou pra mãinha. Só tavam mãe e filha em casa. Ela foi pedir, não sei, na sala. Ou falar sobre alguma coisa. Tava. (hesita)(os outros dois se agitam de leve, entre sorrisos. Jônatas acena negativamente, como dissimulando a expectativa de fogo pelo que estava prestes a ouvir)
Felipe (exaltação gradual)
É: sem, sem! Carla chega ficou... Nem conhecia a menina. Disse que nem cumprimentou direito, só deu um sorriso, "meia tímida". Suas palavras. "Meia tímida". Um quarto tímida; um pouco tímida. Quase tímida!André (malicioso)
Quase?Felipe
Quando a mãe pediu pra botar uma roupa.(ridente, Jônatas bate-lhe no ombro, como que o venerando)
André (meio hipnotizado pela própria frase)
Mas tava com calor...Felipe
Foi, reclamou do calor. (sorri para Jônatas) Sabe de cor ele. Tava lá, é?(André contorce os lábios, desfazendo um sorriso involuntário)
Felipe
Agora não reclamam por eu repetir história.Jônatas (certeiro)
Essa não é mentira.Felipe (olhos no sentido de sempre)
Essa eu não testemunhei.André
E sonha poder testemunhar.Felipe (afiado)
E tu crês mesmo que podes.André (cruza os braços e joga o olhar ao encontro do púlpito, perto do qual Isadora está sentada, num banco situado a sete bancos do do rapaz, na fileira à esquerda da dele. Tem o tom conspirativo)
Eu creio.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Eu Vou pro Inferno, e a Culpa É de Isadora Loredo
RomancePouco tempo depois da morte trágica do irmão, Isadora converte-se e passa a frequentar a igreja evangélica com os pais. O ambiente, porém, não se mostra tão acolhedor a ela como deveria, pois a sua presença passa a ser vista com olhos cheios de curi...