CAPÍTULO DEZENOVE: THOTENIC BRINCA COM COLHERES

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Eu congelei. Meu coração falhou. O pânico se tornou grande demais. Não sabia o quê fazer. Fiquei paralisado e não conseguia nem mesmo gritar. Calafrios percorriam por todo meu corpo. Levei um momento dolorosamente longo para perceber que o Mestre das Águias não se dirigia a mim.
Ele estava em um círculo de proteção que pulsava com uma luz cor de escarlate. Ele sacou sua espada de esgrima e a ponta ardeu como uma tocha de soldagem com a cor avermelhada. À sua direita, fora do círculo, havia um vaso verde do tamanho de um homem adulto. À sua esquerda, contorcendo-se em correntes brilhantes, estava uma criatura que eu reconheci como sendo um demônio. Só poderia ser isso. Ele tinha um corpo humanóide peludo, com a pele arroxeada, mas ao invés de uma cabeça, uma colher de sorvete gigante brotava de entre os seus ombros.
- Misericórdia! - Ele gritou com uma voz metálica e lacrimosa.
Não me pergunte como um demônio pode gritar com uma cabeça de colher, mas o som ressoou e ecoou como se fosse um diapasão gigante. O Mestre das Águias continuou cantando. O vaso verde vibrava com a luz.
O ser sussurrou:
Oberve bem, Magnus.
Sim, eu pensei de volta. Thotenic está fazendo algum tipo de ritual de invocação do mal!
Não, olhe bem!
Direcionei minha visão de ba para o Mestre da Tribo das Águias, que brilhava em seu círculo de proteção vermelho, enquanto o demônio-colher tentava se libertar freneticamente de suas correntes.
- Não fique nervoso, Morte-às-Colheres - Thotenic censurou. - Você sabe que eu preciso de um sacrifício para convocar a presença dele. Não é nada pessoal.
Não sei se ba podem franzir as sobrancelhas, mas se sim, eu absolutamente devo ter feito. Convocar a presença dele? Eu balancei a cabeça, perplexo.
A Sociedade dos Cinco não permitia que deuses menores matassem outros de sua própria espécie. Esse foi o principal motivo de todos nos odiarem. Como Mestre de Tribo, Thotenic supostamente deveria representar essa lei. Então o que ele estava fazendo, quebrando as regras, matando crocodilos inocentes e torturando demônios com cabeça de colher?
- Dói! - A pobre criatura gemeu. - Servirei você por cinquenta anos, Mestre. Por favor!
- Chega, chega - Thotenic respondeu, sem um traço de simpatia na voz. - Eu tenho que fazer uma execração. Somente a forma mais dolorosa de banimento vai gerar energia suficiente.
Das dobras de seu kimono, o Mestre das Águias puxou uma colher de sorvete comum e um caco de cerâmica, coberto com hieróglifos vermelhos. Ele ergueu os itens e começou a cantar:
- Eu te nomeio Morte-às-Colheres, o Servo dos Renegados, Aquele Que Se Transformou no Sorvete.
Enquanto o ren do demônio era dito, as correntes de energia soltaram vapor e se apertaram ao redor de seu corpo. Thotenic segurou a colher acima das chamas de sua espada. O demônio se debulhou e lamentou. Assim que o pequena colher ficou em brasas, o corpo do demônio começou a soltar fumaça.
Eu assistia tudo isso com horror enquanto o ser dizia em meus pensamentos:
Magnus, essa é a execração. É uma técnica que consegue fazer algo pequeno afetar algo grande, ligando-os. Quanto mais parecidos os itens forem, como a colher e o demônio, mais fácil é de ligá-los.
Como bonecos de vodu?, eu questionei, sem ousar despregar os olhos de Thotenic e do demônio-colher.
Eles funcionam com a mesma teoria. Mas a execração é uma técnica perigosa e proibida. Significa destruir uma coisa totalmente, apagando a sua forma física, e até mesmo o seu ren, da existência. É precisa de alguns deuses menores especializados para retirar esse tipo de técnica. Se feita errado, pode destruir quem a lança. Mas, se feita corretamente, a maioria das vítimas não tem a menor chance. Mortais normais, deuses menores, fantasmas, até mesmo demônios, podem sucumbir.
Thotenic realizava essa técnica proíbida como se a fizesse todos os dias. Ele continuou cantando enquanto a colher começava a derreter, e o demônio morria com ela. O Mestre das Águias deixou o caco de cerâmica cair no chão, com os hieróglifos vermelhos que descreviam o nome do demônio. Com uma palavra final de poder, Thotenic pisou no caco e o esmagou aos pedacinhos. Morte-às-Colheres havia dissolvido, assim como suas correntes de ka e todo o resto.
Normalmente, eu não sinto pena de demônios, mas não pude deixar de ficar com um nó na garganta. Eu não conseguia acreditar no jeito casual com que Thotenic havia extinguido o seu servo, só para poder ampliar sua técnica. Logo que o demônio foi embora, o fogo na espada do Mestre morreu. Hieróglifos queimaram ao redor do círculo de invocação.
Então o salão retumbou. Uma coluna de luz escarlate ergueu-se do chão do que costumava ser do demônio-colher, aos pés de Thotenic, deslizando até o jarro verde e começando a tremeluzir, como uma nuvem de pura energia. Então a essência do demônio foi sugada para ali dentro.
O grande jarro verde tremeu e uma voz lá do fundo disse:
Olá, Thotenic. Quanto tempo.
Inalei bruscamente. Eu tive de me forçar para me impedir de gritar. Eu conhecia aquela voz. Eu me lembrava de tudo muito bem, desde minha viagem pelo Mar de Chamas até a Costa de Escaravelhos. Eu nunca me esqueceria daquele olho maligno e cruel tentando sair de sua prisão.
- Você - Thotenic não parecia ao menos cansado da convocação. Ele parecia incrivelmente calmo para alguém que acabara de abordar uma coisa funesta. - Nós precisamos conversar.
O jarro verde e grande titubeou, como se uma coisa grande estivesse tentando entorta-lo.
Um vaso malaquita? A coisa parecia irritada. Realmente, Thotenic. Pensei que estávamos em condições mais amigáveis do que isso.
A risada de Thotenic parecia alguém esganando um gato.
- Excelente para constranger espíritos malignos, não é? E este salão tem mais malaquita do que qualquer outro lugar da Sociedade dos Cinco. Eu fui bastante prudente em ter isso construído em minha Tribo. - Seus olhos tremeram violentamente, com um tique nervoso incontrolável. - Agora, você vai me dizer o que eu preciso saber, ou essa jarra vai ficar ainda mais desconfortável.
Thotenic. A voz da coisa era cheia de malícia e maldade. O que você precisa saber pode ser bem diferente do que você quer saber. O seu lamentável acidente não te ensinou isso?
O Mestre das Águias estremeceu.
- Você vai cooperar - Ele disse em um tom de aço. - E depois você vai me dizer como neutralizar as outras Tribos. Você conhece as defesas da Sociedade dos Cinco melhor do que ninguém. Uma vez que eu os destrua, eu não vou ter opositores. E já conheço uma forma perfeita para atribuir toda a culpa para os mortais invasores.
Assim que o significado das palavras de Thotenic afundaram em mim, uma onda de fúria quase me fez cair do ar. Desta vez, o ser teve que impedir que eu gritasse.
Magnus, acalme-se!, ele ordenou. Você vai entregar sua posição!
Raiva fustigava minha cabeça, fazendo meus pensamentos rodopiarem sem nenhum sentido aparente, apenas ondulando em um instinto de socar a cara daquela ave estúpida.
Mas ele quer destruir a Sociedade dos Cinco!
Sim.
E quer colocar a culpa em nós!
Então apenas observe para descobrir mais sobre os plano de Thotenic, Magnus. O ser me repreendeu. Entrar em pânico não lhe ajudará em nada. Afinal, sua própria alma viajou até aqui por uma importante razão: alertar que sua vida corre perigo.
Eu tomei um fôlego instável. Me senti envergonhado por parecer alguém tão irritadinho. Ele estava certo, mas ainda assim... o Mestre das Águias estava falando sobre como aniquilar o próprio lar e colocar toda a culpa em nós. Que tipo de pessoa faz acordos com uma coisa sem forma e sussurrante?
Com exceção de mim e o ser. Aquilo era diferente.
A risada da coisa ecoou dentro do vaso verde.
Então, a cooperação e o segredo da queda da Sociedade dos Cinco? É só isso, Thotenic? Gostaria de saber o que os outros Mestres pensariam se descobrissem o seu verdadeiro plano, e o tipo de amigos que você tem.
O Mestre das Águias ergueu sua espada. A lâmina esculpida em prata recomeçou a queimar.
- Tenha cuidado com suas ameaças. Eu ainda sou um Mestre das Cinco Tribos e posso muito bem lhe destruir.
A coisa riu e o vaso tremeu. Ao longo da sala, caixas de vidro estremeceram. O candelabro fez um som estridente, como se um carrilhão de vento de três toneladas estivesse soprando.
Alguém está vindo, Thotenic. A coisa parecia estar se deleitando com toda a situação, como se a ameaça do Mestre das Águias não significasse nada, apenas o divertisse.
Eu pensei que a coisa estivesse blefando. Mas então houve um rangido de porta seguido por passos ecoando contra o chão. Uma águia se aproximou de Thotenic e curvou seu corpo em reverência. Ele era alto e magro como um espantalho, com garras no lugar de mãos e pés. Vestia uma antiga túnica e um himation branco, como uma espécie de capa que pendia em seus ombros. Seu bico curvava-se como uma adaga e seus olhos verdes brilhavam com uma ansiedade faminta. Quase... com fome.
- Estamos fazendo um excelente progresso, Mestre Thotenic! - A águia jurou, enquanto friccionava os joelhos e se erguia eretamente em frente ao Mestre das Águia. - Nós conseguimos mais cem demônios para nossas forças de ataque. Com sorte, teremos terminado ao pôr-do-sol daqui sete dias!
- Mas isto é inadmissível, Apachi. - Respondeu o Mestre de Tribo calmamente.
O servo vacilou.
- M-mas, Mestre... - Ele gaguejou. - Eu pensei...
- Não pense, Apachi. Nossos inimigos são mais engenhosos do que eu havia previsto. Principalmente aquele mortal arrogante, Khalid. Eles e seus amigos desabilitaram, temporariamente, um de meus melhores fornecedores da Cidadela. E agora aceleraram atrás de nós. Devemos terminar antes de eles chegarem. Ao pôr-do-sol daqui quatro dias. Não mais que isso. Será o entardecer de meu novo reino. Eu vou extinguir toda vida dessa sociedade condenada, e a Tribo das Águias irá prevalecer como um monumento ao meu poder! A última e eterna Tribo!
Meu coração quase parou com essas últimas palavras.
Thotenic sorriu cruelmente, como se ele fosse ficar feliz em ter Apachi obedecendo ou retalhado em pedaços.
- Você entendeu minhas ordens?
- Sim, Mestre! Mas... - Apachi deslocou o peso do corpo de um pé para o outro, como se estivesse tomando coragem para dizer algo. - Posso perguntar... por que parar por ai?
As narinas de Thotenic se inflaram.
- Você está a um passo da destruição, Apachi. Escolha suas próximas palavras com cuidado.
A águia começou a suar. Ele fechou os olhos, como se tentasse reorganizar os pensamentos.
- Bem, meu Mestre, a aniquilação total de apenas a Sociedade dos Cinco seria digno de seu glorioso poder? E se expandissemos nossos territórios... e dominassemos o Mundo Mortal?
- Se nós, de fato, conseguissemos realizar isso, iriamos criar tanto ka maligno que seria suficiente para mudar a balança da Ordem do Universo, alimentando bastante as forças do Caos. - Respondeu Thotenic, ríspido e frio, levando a mão ao punho de sua espada.
- Mas essa energia também poderia fortalecer nossa Tribo eternamente! - Desesperou-se Apachi. - E fazer de você Thotenic, O Mestre de Todos os Mundos!
Uma luz faminta dançou nos olhos do Mestre das Águias. Ele afastou a mão da bainha.
- Mestre de Todos os Mundos... isso soa muito bem. E como você faria isso, Apachi?
- Oh, não eu, meu Mestre. Eu sou um verme insignificante. Mas já você... - Apachi remexeu suas garras e seu bico se abriu em um sorriso definitivamente do mal. - Se pudesse capturar os outros... pense no poder que você poderia consumir. Com o plano certo...
Apachi se aproximou de Thotenic e inclinou o bico curvo em direção ao seu ouvido, sussurrando algo indecifrável. Thotenic parecia concordar, de agrado com a idéia, e a outra águia ficou satisfeita.
- Brilhante, Mestre Thotenic. - Apachi aplaudia estrondosamente enquanto se afastava de seu superior. - Um plano brilhante.
- Sim, fico feliz em ter pensado nisso. Não esperava nada menos de uma águia. Em breve, Apachi, muito em breve, todos irão se curvar perante a mim. Agora, saia, antes que eu o mate. Vá organizar nosso pequeno exército.
Apachi fez uma última reverência exagerada a Thotenic.
- Sim, Mestre.
Assim que Apachi se foi, o jarro voltou a se mexer.
Excelente. A voz da coisa perfurava minha mente como uma adaga. Era gélida e fria. Assim que tivermos um exército completo, lideraremos a vanguarda!
Thotenic pareceu insatisfeito.
- Você quer dizer que eu liderarei a vanguarda contra a Cidadela?
É claro, a coisa respondeu, com a voz calma, mas firme. Foi isso o que eu quis dizer.
Thotenic não pareceu convencido.
- E eu terei a Sociedade do Cinco em pedaços? - Perguntou Thotenic, mas seu tom estava terrivelmente brando, deixando claro que só havia uma opção para a resposta.
Eu irei ajuda-lo, prometeu a coisa, com um divertimento maligno na voz. O sacrifício do demônio foi uma prova de seu juramento. Você quer poder. Eu lhe darei poder. Estará além de todos. Em breve você dominará a Sociedade dos Cinco e o Mundo Mortal. Mas não quer seus opositores mortos? Não quer ver as outras Tribos destruídas?
Um tremor percorreu pelo corpo de Thotenic.
- Sim.
O jarro grande brilhou, com uma luz esmeralda enchendo o ambiente.
Então prepare a força de ataque. Assim que estiver concluído, prosseguiremos. Primeiro, a Sociedade dos Cinco será reduzida à cinzas. Assim que as Tribos importunas forem eliminadas, marcharemos até o Mundo Mortal.
Thotenic assentiu.
- Então eu acredito que esteja na hora de colocar meus peões em uso.
Eu me retesei. Peões?
Subitamente, o Mestre das Águias parou, como se tivesse tido uma revelação. Então ele se virou e olhou para o alto, diretamente para mim, como se soubesse que eu estava lá o tempo todo, e me deu um sorriso do tipo vou-te-fazer-em-pedaços.
O Mestre das Águias falou numa voz bem mais alta e clara, que preencheu toda a sala em um tom agourento.
- O que você acha, Khalid?
Eu queria abrir minhas asas e voar. Eu tinha que sair dali e alertar Kevin. Mas minhas asas não funcionavam. Eu apenas fiquei paralisado, enquanto Thotenic abria suas asas e levantava sua espada, vindo em minha direção, pronto para me matar.

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