CAPÍTULO VINTE: BONECOS DE ARGILA SÃO MAUS

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Desejei ter colocado uma coleira na aranha branca e escorregadia. Ela seguia tão rápido que na maior parte do tempo eu nem mesmo conseguia vê-la. Se não fosse pela excelente audição de Liah e Tenzin, que haviam me seguido com Kevin após muitos protestos e xingamentos, eu nunca saberia em que direção estava indo.
Percorremos um túnel de mármore, então disparamos para a esquerda e quase caímos em um abismo. Kevin me agarrou e me puxou de volta antes que eu despencasse. A passagem continuava à nossa frente, mas não havia piso por cerca de trinta metros, apenas a escuridão vazia e uma série de traves de aço no teto. A aranha branca estava no meio do caminho, lançando uma fibra de teia grudenta e balançando-se de barra em barra.
- Jura? - Resmungou Liah, em descrença. - Odeio barras!
Ela saltou, agarrou a primeira trave e começou a atravessar. Não tinha medo de deuses menores armados e não tinha medo de mergulhar de uma serie de barras para a morte. Vá entender.
Liah chegou ao lado oposto e correu atrás da aranha. Tenzin a seguiu. Quando alcançou o outro lado, olhou para trás e viu Kevin pendurando-se entre as traves. Ele atravessou em três balançadas: o que foi ótimo, pois no momento exato em que ele aterrissava, a última barra de ferro soltou-se com seu peso.
Eu estendi os braços para o lado em protesto.
- Cara! Você me deixou preso aqui!
Kevin me lançou um sorriso torto.
- Desculpa, ai!
Balancei a cabeça, em frustração. Eu estava empacado do lado inverso de meus companheiros em um precipício. Considerei minhas opções. Era perigoso demais tentar pular. Não havia escada ou corda. Mas estranhamente, a frustração não tomou conta de mim como um exército de cupins. Não podia perder tempo ali. Precisava descobrir para aonde aquela aranha iria nos levar.
Muito bem... como passar em segurança pelo abismo sem despencar para uma morte horrível?
Você poderia saltar, sugeriu o ser.
A idéia era tão ridícula que eu quase ri, mas era melhor que nada.
Eu dei alguns passos para trás e fechei os olhos, procurando estabilizar minha respiração. Então eu me agachei no chão empoeirado e me preparei. Do outro lado do abismo, Kevin e Tenzin balançaram os braços freneticamente, gritando em uníssono:
- Não faça nada estúpido, Magnus!
Tarde demais, pessoal, pensei.
Antes que eu perdesse a coragem, eu saltei para frente, em direção ao precipício. Imediatamente, meu plano começou a dar errado e eu comecei a despencar para a escuridão. Senti uma pontada de dor em minha têmpora direita, como se alfinetes gelados estivessem sendo cravados a esmo em meu crânio. Subitamente, meu corpo parou e flutuou pelo ar, completamente fluído e sem peso. Tinha a sensação de estar me equilibrando em uma corda bamba, oscilando fracamente de um lado para o outro sobre um enorme abismo.
Muito bem, Magnus. Elogiou o ser. Você continua me surpreendendo!
Eu me concentrei e inclinei meu corpo para trás, arremessando meus ambos braços para frente, mentalizando o comando "voar". Pude sentir os ventos dobrando-se ao meu redor, impulsionando-me em direção a beirada do abismo. Era uma deliciosa sensação ter as correntes de ar dançando contra meu rosto, mas não tinha tempo a perder com isso. Precisavamos encontrar a aranha.
Eu rapidamente direcionei os ventos para uma descida controlada para o outro lado do precipicio. Kevin e Tenzin estavam boquiabertos, analisando o ângulo em que eu curvei os joelhos para absorver o impacto. O som de meu pouso foi baixo, como o baque surdo de um livro sendo posto com leveza em uma mesa.
- Uou! - Exclamou Tenzin. - Isso é muito legal! Por que não disse nada antes?
- Não queria parecer estranho. - Respondi com sinceridade.
Kevin abriu um sorriso largo, e uma lembrança nebulosa veio a minha mente, mas logo sumiu, tão rápido quanto apareceu.
- Cara, esse camaleão aqui tem o poder de controlar os ventos. - Falou ele. - Liah é capaz de lançar ondas de poder dos punhos e ser incrivelmente chata. Eu consigo transformar as coisas em cinzas. Você não é mais estranho que a gente. E, claro, talvez também saiba voar envolto em fogo, saltar de um prédio e gritar: "Em Chamas!"
Eu forcei um sorriso, resistindo a vontade de socar algo. Você não pensaria isso se soubesse que um ser divino e irritante está dividindo um espaço em minha mente, tive vontade de gritar, mas disse:
- Se eu fizesse isso, você veria um garoto magrelo pegando fogo caindo para morte gritando, e eu diria algo mais forte e obsceno que um simples "Em Chamas!". Agora, vamos!
Continuamos seguindo em frente e passamos por um esqueleto encolhido no túnel. Ele usava restos de uma túnica grega. Não podemos identificar de que deus menor pertencia aquele esqueleto, pois o crânio estava amassado e destruído. Como se algo com muita força tivesse acertado sua cabeça. A aranha não diminuiu o ritmo. Escorreguei em uma pilha de destroços de metal, mas quando virei a mão envolta em chamas na direção dela, percebi que eram armas: espadas, adagas, lanças, centenas delas. Todas estavam queimadas ou tortas.
Tenzin disparou para frente e me virei para Kevin.
- Como você se sente?
Por alguma razão, todo o seu corpo ficou tenso. Ele olhou para mim como se eu estivesse tentando encurralá-lo.
- Do que você está falando?
- O acidente no salão. A aranha espiã. Do que você acha que eu estou falando?
Os tendões de seu pescoço relaxaram.
- Certo... desculpe, só uma noite estranha. Eu não cheguei a enxergar a coisa bem, então pode me dar uma breve explicação do que estamos seguindo?
Me perguntei o que eu disse para chateá-lo, mas decidi deixar isso passar. Eu descrevi a aranha gorda e branca. Kevin, apesar de piadista, era geralmente calmo com as coisas. E também era um bom ouvinte. Mas ele ainda parecia cauteloso e nervoso. Quando eu terminei de falar, um gota de suor percorreu por seu pescoço.
- Uma aranha branca com olhos laranjas? - Ele franziu o cenho. - E por que tanto drama?
- Tenzin acha que ela não representa perigo nenhum. Apenas estava na caverna para nos espionar. Mesmo assim, vale a pena investigar.
Meu amigo balançou a cabeça.
- Bem... agora conhece nossas fraquezas, eu acho. Sabe que eu sou frágil contra kriptonyta e Liah a snickers.
Eu não podia ajudar, mas sorri.
- É. Só que não era isso que eu estava pensando. Aquela luz cinza que você explodiu a esfinge com as mãos... e o jeito que você a transformou em pó...
- Como eu fiz isso? - Kevin concluiu, dando de ombros. - Honestamente, Magnus, eu não sei. Estive pensando sobre isso desde então, e... foi só instinto. Primeiro eu pensei que talvez a esfinge tivesse algum tipo de técnica de autodestruição colocado nela, e eu sem querer eu a acionei. Normalmente, as coisas quebram na minha mão. Ou viram pó. Tanto faz.
- Mas isso não explicaria se você conseguisse fazer isso de novo.
- Não - Ele concordou. Parecia até mais distraído pelo incidente do que eu. Atravessamos por um corredor com um emaranhado de teias de aranha e conseguimos ganhar a substância grudenta em nossos cabelos, mas Kevin nem mesmo tentou limpar.
- Kevin... - Eu hesitei, não querendo empurrá-lo. - Essa nova habilidade de transformar as coisas em pó: não teria nada a ver com... você sabe... - Eu dirigi o olhar para frente, para garantir que Liah e Tenzin estivessem em uma distância segura para não me ouvirem. - Sobre nós sermos herdeiros do Sangue dos Faraós?
Lá estava ele de novo: o olhar de um animal enjaulado.
- Eu sei - Eu disse rapidamente. - Não é da minha conta. Mas ultimamente, você tem parecido perturbado. Se tiver alguma coisa que eu possa fazer...
Kevin olhou para baixo. Ele parecia muito deprimido, principalmente com os fiapos de teia pendendo em sua cabeça.
- Ás vezes me pergunto por que vim para cá. - Kevin suspirou tristonhamente.
- Você está brincando? - Perguntei. - Estavamos destinados a vir para a Sociedade dos Cinco! Esse lugar precisava da Balada Épica do Kevin! Você é um ótimo espadachim. Um dos melhores! E ainda dispara papel-higiênico das mãos! Não estariamos aqui sem você.
Meu amigo balançou a cabeça, como se não acreditasse em nenhuma das minhas palavras.
- Obrigado. Mas o timing... é como uma piada de mau gosto. As coisas são complicadas para mim, Magnus. E o futuro... eu não sei.
Senti que ele estava falando sobre mais do que o nosso prazo de três dias para salvar o mundo.
- Olha, se tiver um problema... - Eu disse. - Se é alguma coisa que eu tenha feito...
Kevin flexionou os dedos. Talvez fosse só minha imaginação, mas eu pensei ter visto nuvens de vapor cinzento saírem dos dedos dele, como se apenas falar sobre seu estranho poder o tivesse ativado.
- Claro que não, cara. Você tem sido um bom amigo.
- Então... se está falando sobre Tenzin... ou Li-iah... - Eu gaguejei um pouco. - Ela é uma boa felina. Eu sei que ela pode ser um pouco irritante, mas...?
[Certo, Liah. Talvez eu não devesse dizer aquilo. Mas você não é exatamente legal quando está com alguém. Isso pode fazer um cara ficar desconfortável.]
Kevin na verdade riu.
- Não, não é nada com Liah. Mesmo ela sendo irritante, sem dúvidas nenhuma. Mas gosto dela, também. Eu só...
- Shii! - Tenzin assobiu tão alto, que me fez pular. Ele havia parado à alguns metros de distância. Me virei e percebi que ele estava olhando para a frente. Não parecia nada demais. Mas enquanto eu investigava mais de perto, percebi que algo estava errado. As luzes dos corredores estavam bem mais claras. Havia um sofá destruído tombado no chão. Senti um gosto metálico na boca. Como podia haver um sofá naquele lugar? E o mais importante: de quem pertencia aquele móvel? Me concentrei em deslocar os olhos até poder ver uma porta na minha frente.
Ela tinha sido esmagada em pedaços.
- O que há de errado? - Perguntei, com Liah retornando, se aproximando de mim e de meu amigo. - O que é isso?
- Fora o sofá e a porta semidestruída? - Kevin disse, suando frio. - Eu também não sei!
- Vocês não estão ouvindo? - Surpreendeu-se a felina. - Parece com uma grande fornalha queimando.
Eu apurei os ouvidos, mas não escutei nada, e Kevin também pareceu não ter notado, mesmo avançando em alguns passos. O camaleão havia sumido por alguns segundos, mas já havia retornado para o lado de Kevin, ambos sussurrando. Liah encontrava-se à minha direita. Estavamos prestes a nos aproximar deles, quando algo explodiu no corredor. Foi um estrondo forte, como se uma grande banana de dinamite fosse acionada, com estampidos de concreto se partindo e metal se retorcendo. Uma nuvem de poeira veio em nossa direção, obscurecendo a pouca visão na penumbra do túnel.
Estreitei os olhos para ver melhor, paralisado de medo. Consegui avistar a Kevin e Tenzin correndo por uma passagem lateral, desaparecendo na escuridão. Liah me agarrou pela camisa e me obrigou a correr.
- Vamos! - Berrou em meio ao rugido de pedras ruíndo.
Eu assenti e nos arrastamos para longe da destruição subterrânea, rumo ao interior daquele lugar.
Uma boa parte do teto desabou à frente de nós. Isso impedia que seguissemos pela direção tomada por nossos amigos. Ouvi o barulho de rompimento acima de nós e cheguei a conclusão que não tinhamos mais escolhas. Ou tempo.
Relutante, virei e corri com Liah em uma disparada louca para as sombras.

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