CAPÍTULO VINTE E CINCO: CARA, CASSINOS SÃO A NOVA MODA

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Não, apenas estou brincando com você dessa vez.
pareceu que eu iria morrer.
Qualquer um pode adorar a sensação de ser jogado em um abismo aparentemente sem fim no meio do labirinto do Subterrâneo.
Magnus Khalid, não.
Eu me debatia desesperadamente em grande altitude, agitando meus braços em pleno ar como um verdadeiro pinguim tentando alçar vôo e gritava com total medo (o que não foi muito discreto). Não sei bem o porquê que não tentei controlar os ventos e diminuir a velocidade da queda. Eu acho que até mesmo alguém experiente poderia sucumbir ao pânico.
Quando você está despencando de milhares metros de altura com as roupas pegando fogo, esquece de pensar racionalmente, como tipo: Nossa, eu sei voar.
O que acontece é que a parte irracional de seu cérebro toma o controle e você pensa enlouquecidamente: ARGH, MEU DEUS, EU ESTOU CAINDO E VOU MORRER! AHHHHHHH!
A queda pareceu durar horas, mas só deve ter passado um ou dois segundos. Durante esse tempo, pensei em vários dos mais criativos nomes para Echidnas. O rio aproximava-se em minha direção na velocidade de um caminhão. O vento arrancava o fôlego dos meus pulmões. Meus olhos lacrimejavam com a dor do veneno circulando em minhas veias. Obsidianas, paredes e neblina giravam ao meu redor, entrando e saindo do meu campo de visão como um giroscópio acelerado.
E então...
Cata-puuum!
Eu atingi o rio com um turbilhão de bolhas. Minhas costelas se partiram com o impacto. Dor branca e quente atravessou meu tórax. Parecia que meu estômago havia ingerido vidro diluido. Eu afundei sem conciência nas águas de tonalidade cinzenta, certo de que acabaria engolido por trinta metros de profundidade e perdido para sempre na lama.

...

É perturbador despertar em forma de ba.
Eu flutuava pelas águas escuras. Minhas asas brilhantes batiam enquanto tentava descobrir como estava subindo. Achei que meu corpo estava em algum lugar próximo, possivelmente já afogado no rio, mas não consegui descobrir como voltar para ele. Por que diabos o ser tinha sugerido que eu saltasse para um abismo? E por que eu concordei com essa ideia estúpidamente suicida? Esperava que meu ba de algum jeito pudesse sobreviver à morte, mas estar preso em forma de alada flamejante em vez de me asfixiar em um rio não parecia uma grande melhora de vida.
Uma corrente forte de ar me pegou e arrastou para longe. A água mudou para uma névoa fria e assustadora. Lamentações e rosnados encheram a escuridão ao meu redor. Meu novo estômago de ba estava se inquietando com a terrível e desconfortável sensação de frio. Minha aceleração diminuiu e quando as trevas se dissiparam, eu estava novamente no interior do Palácio das Águias.
Com um candelabro macabro balançando funebremente no teto abobado, o salão ainda parecia o mesmo, possuindo o padrão octogonal gigantesco e com adornos cor de cobre polidos no alto. As paredes continuvam envolvidas em colunas esmeraldas e ligadas a imensas portas douradas.
O lugar até hoje consegue revirar minhas entranhas por completo e me fazer transpirar como um porco. Aquele espaço me lembrava a uma casa mal-assombrada de algum filme qualquer de terror antigo. A minha pulsação ameaçou a cair, mas percebi que não havia ninguém presente na sala do Mestre da Babaquise Eterna, além do vaso verde do tamanho de um homem. Apesar disso, as sombras do cômodo ferviam como uma sopa de tinta de caneta.
Está tão perto de ser destruído, heroizinho, uma voz repentina de desaprovação ecoou do jarro. E ainda não consegue ver.
Era aquela coisa maligna que conversara com Thotenic. Sua voz estava diferente de antes. Parecia mais física agora, menos estilhaçada, como se ele tivesse falando de um corpo sólido... qualquer que fosse sua condição anterior.
Não vai fazer nenhuma de suas clássicas piadas, garoto?, perguntou aquela coisa, com uma ondulação de desprezo destacando-se em seu tom desagradável. Eu esperava mais bravura de você.
Ele desferiu risadas gélidas e ásperas, como facas sendo afiadas. Tentei falar, mas eu tinha ficado sem coragem nenhuma. O melhor que conseguia era não fugir enquanto gritava. Eu já sentira medo, mas aquilo era totalmente diferente. A voz daquela coisa parecia refletir meus piores medos e os intensificá-los em cem vezes, apenas com a ressonância de suas palavras.
Eu pensei em termos uma conversa em particular, ele continuou, remexendo-se em seu jarro verde. E tenho muito a agradecer. Você assegurou minha volta. O ódio e a inveja são ferramentas muita poderosas.
A escuridão da sala ficou mais densa e pesada. Eu tentei me afastar voando do Palácio das Águias, mas era como se estivesse imerso em concreto molhado. O tempo corria lento. Minha respiração quase parou. O vaso verde titubeou novamente, precipitando-se terrivelmente ao chão.
Um favor, a coisa disse, com um prazer nefasto na voz. Eu sempre cumpro minhas dívidas. Quem sabe um vislumbre nos aliados que você abandonou...
As trevas me envolveram como dedos gananciosos e minha forma de ave majestosa foi transportada para um espaço diferente.
Eu estava sobre uma construção alta, com a silhueta de casas bélicas espalhando-se à minha volta em uma paisagem noturna. Um vento frio açoitava minhas penas enquanto meu ba sobrevoava o ar com graciosidade. Algumas nuvens se juntavam acima de mim também. Relâmpagos cortavam o céu. O ar estava metálico, cheirando uma chuva iminente. O lugar estava iluminado, mas as luzes não pareciam estar funcionando direito. Ficavam mudando de azul-claro para verde-escuro como se estivessem em disputa.
Diretamente no topo da obra, erguia-se uma figura cinzenta e assombrosa. Na penumbra da escuridão, o contorno da sombra vagamente humanoide trajava uma majestosa manta branca semelhante à um haori japonês sob um kimono negro e esvoaçante pelos ventos agressores. Uma faixa em sua cintura prendia uma espada de esgrima imponente.
Um clarão elétrico produzido entre duas nuvens banhou a fisionomia do desconhecido com uma luz intensa e eu quase soltei um verdadeiro ganido de cão.
Um homem-águia situava-se abaixo de mim. E eu o conhecia muito bem. Sofisticados prendedores brancos encontravam-se cravados em seus longos cabelos cascateados como piche. Seu rosto era glorioso e magnânimo, mas seus olhos cinzentos queimavam como mercúrio líquido, com uma avidez sinistra.
Era o Mestre de Tribo responsável por minha vida estar em um completo inferno e deus menor que planejava destruir o mundo, Thotenic.
Abaixo dele, uma legião de seres humanoides reuniam-se como um grande concerto de pop no Rock in Rio. No início, eu pensei que o Mestre de Tribo estava apresentando um show. Uma terrível visão repentina da águia maligna e a Katy Perry fazendo um dueto em This Is How We Do cruzou meus pensamentos [É sério, Tezin. Se gosta de visuais extravagantes e frutas falantes, você tem a obrigação de ouvir as músicas dela!]
Depois de tentar afastar aquela imagem perturbadora de minha cabeça, percebi que uma verdadeira unidade de demônios agrupava-se diante da construção gigantesca.
Encontrando-se em um espaço definitivamente pequeno e disforme, havia uma variedade horrível de criaturas com garras de galinha, patas ou pernas de insetos. Alguns tinham pelos. Outros tinham escamas e pele viscosa. No lugar da cabeça, muitos tinham armas ou ferramentas que brotavam de seus pescoços: martelos, espadas, machados, serras elétricas e até algumas chaves de fenda. Os pregos tortos e os parafusos mal-encaixados deviam realmente odiá-los.
Mas pelo menos milhares de demônios estavam presentes entre a multidão, empurrando-se e acotuvelando com voracidade para enxergarem o topo da construção. Alguns tentavam fazer o seu caminho pelo mar de criatura horrendas à força, mas quaisquer que fossem, eles eram sempre repelidos para trás violentamente. Outros estavam empoleirados em rochedos altos, limpando suas asas e penas imundas. Vinte ou trinta demônios com cabeça de alicates formavam um círculo aberto, murmurando e balançando o corpo em uma cantiga, talvez em uma versão de ferramentos demôniacas cantando músicas gospel.
Comparado com aquelas criaturas sobrenaturais, Morte-Ás-Colheres, o demônio que Thotenic havia execrado, parecia quase tão normal quanto um garoto no intervalo do Ensino Fundamental.
O Mestre das Águias se dirigia ao seu pequeno exército grotesco com frieza e sem emoção, como se eles não representassem nada além de meros peões no esquema de seu jogo doentio, prontos para serem movidos e descartados. Ele brandia seu punho como um verdadeiro ditador nazista enquanto grasnava com a rigidez de um czariano, mas seu bico dourado estava retorcido em um sorriso cruel de rapina divina, como se destruir civilizações ocidentais fossem conquistas incríveis.
E eu pensando que tirar nota dez na prova de história fosse um grande triunfo.
Os demônios berravam e urravam em alegria com as palavras de Thotenic, remexendo as cabeças de ferramentas de forma ameaçadora. A inteligência não devia ser o ponto forte das criaturas. Eu não podia ouvir o Mestre das Águias, mas o significado era óbvio. Ele estava fazendo o típico discurso de cara malvado, como: Galera, vamos esmagar a Sociedade dos Cinco e dizimar o Mundo Mortal. Vai ser demais!
Respeitosamente ao seu lado, Apachi estava observando as criaturas demônicas abaixo com desdém. Ele ainda se parecia com um espantalho, vestindo uma túnica grega abaixo de uma armadura de ouro decorada com um himation esmeralda pendendo elegantemente em seus ombros.
Seu rosto parecia quase fantasmagórico sob seu elmo elaborado, com os olhos penetrantes, a face demasiadamente magra e os lábios finos e sem cor.
Sua expressão estava sem aldor, mas suas linhas faciais comprimiam-se em tensão, dando a impressão da águia estar reprimindo um sentimento que não consegui identificar.
Antes que eu pudesse decidir me afastar daquela comoção repugnante, serpentes invisíveis se envolveram ao redor de meu peito de ba e fui tracionado para fora do lugar bruscamente. Eu era movido à força sobre as sombras, levado pela névoa em uma velocidade ofuscante. Quando minha visão clareou novamente, houve uma rápida série de informações que quase não pude processar. Eu vi Sobek, o Mestre dos Crocodilos, envolto em sombras enquanto descia por uma caverna iluminada por tochas apoiadas em paredes ásperas. Ele vestia o mesmo kimono escuro e manta clara sobre as costas que Thotenic. As moedas em seu cabelo vermelho trançado tintilavam conforme caminhava. A grossa cicatriz em seu rosto parecia mais horrível que o normal, com o olho leitoso como nata reluzindo com uma sobrecarga desconhecida.
Seguindo à suas costas, dois homens-crocodilos estavam avançando em silêncio. Era a mesma dupla de répteis furtivos que haviam me acordado e encaminhado para os Rituais de Iniciação depois de minha pequena viagem pelo Mundo Interior. Contudo, eles trajavam armaduras completas de bronze e empunhavam tridentes ameaçadores dessa vez. Seus dreadlocks azuis e roxos na altura dos ombros eram como verdadeiros faróis fluorecentes na escuridão. Eu notei que o primeiro crocodilo estava encarando o chão de cara feia. O segundo girava seu tridente com expressão emburrada. Aparentemente, eu perdi uma boa discussão entre eles. Talvez o dreadlocks roxos não tenha divido seus moranguetes com o dreadlocks azuis.
Qualquer que fosse a resposta, assim que os três crocodilos alcançaram o fim da caverna, prendi o folêgo. Eu me encontrava debaixo d'água. Bem, mesmo tendo grande preferência a fogo, isso não foi um problema para mim. Minha forma de ave respirava normamente e as penas nem mesmo umedeceram. Mas ainda fiquei um pouco preocupado quando um baleia-assassina nadou próxima a entrada da caverna escura de onde os répteis estavam, encarando-os com atenção enquanto descia traquilamente para maior profundidade submarina.
Sobek e seus subordinados foram lançados para o alto em um gêiser. Enquanto subiam mais alto do que quadrados vermelhos que suspeitosamente pareciam ser telhados de edifícios, eu sobrevoei a área e avistei um palácio tão grande que fazia a Cidadela parecer um brinquedo Lego, com pátios amplos, jardins e pavilhões pontuados por colunas. Os caminhos eram demarcados com pérolas reluzentes como luzes de Festa Junina. Tubarões e golfinhos do tamanho de casas saíam e entravam em disparada pelas janelas de proporções gigantescas. Os jardins eram esculpidos com colônias de coral e plantas marinhas brilhantes.
O Mestre dos Crocodilos e os outros répteis nadaram até o pátio principal. Ele estava em sua capacidade total de guerreiros armados com tantos tridentes que poderiam fundar uma pequena cidade chamada Garfos Medonhos. Alguns ajeitavam suas cotas de malhas. Outros afiavam lanças e espadas. Um deles avançou apressadamente até o Mestre dos Crocodilos.
Eu rapidamente presumi que ele era familiar. Possuía braços verdes e musculosos circulados com bandanas de prata entre os músculos escamosos, cabelos trançados em dreadlocks verdes desgrenhados e barba entrelaçada com corais e estrelas-do-mar. Ele também estava vestido para combate em uma armadura de couro reforçada e segurava um tridente de ferro na mão. Então o reconheci terminamente ao avistar uma sobrancelha tostada com o formato vagamente similar a de um punho em sua testa.
Era Oceano, o Tenente dos Crocodilos, vulgo imbecil que nos atacara na Cidadela. Ele fez uma profunda reverência ao seu Mestre e acertou o piso do pátio com a extremidade de sua lâmina de três dentes. Sobek sorriu com ferocidade enquanto os guerreiros-répteis se ajoelharam e estalaram suas armas contras os escudos.
Névoa espirralou sobre mim e a cena mudou novamente.
Eu me vi em um vinhedo abandonado. Diante de mim, estendiam-se dezenas hectares de parreiras pendendo em alinhamentos de treliças de madeira, como minúsculas rosas retorcidas. Na extremidade mais distante dos campos, havia um vilarejo simples brilhando alaranjadamente no horizonte. À cerca de trintra metros de distância, com um pátio extenso circundado por colunas de mármore, a terra macia mergulhava em mar claro e límpido cintilando à luz do sol. A água banhava delicadamente a beirada do terreno plano. Ao norte, próximo a uma construção que parecia uma pequena igreja com um holofote na torre do campanário, todo um exército estava acampado em campos oscilantes como tentáculos de uma anêmona-do-mar gigantes.
Ou talvez eu que estivesse com espécies marinhas na cabeça após aparentemente visitar a Crocodinopólis.
Os seres responsáveis por terem escavado a área haviam feito com uma precisão militar fantástica: fossos de cinco metros de profundidade, paredes de terra com pontas de madeira em torno do perímetro e uma torre de vigia em cada canto armado com uma balista. No interior, tendas estavam dispostas em bem-organizadas fileiras cinzentas tremulando como aço derretido.
Atrás deles, um campo de grama alta balançava agradavelmente ao vento. Não havia som, mas avistei aquele tenente com longos cabelos brancos, Kyorukakuh, ordenando os camaleões, reunindo-os em fileiras de guerreiros abaixo da sombra da estrutura elevada. Depois me dei conta de que se tratava de um faról. Duzias de répteis esguios corriam pelo espaço, carregando armaduras e entregando armas a todos, em um verdadeiro vendaval de escudos e lâminas.
Apenas Nagato, o Mestre dos Camaleões, não estava vestido para batalha. Ele caminhava pela campina e conferia as formações militares com meticulosidade, tendo os cordões de centelhas de linho de seu chapéu de palha balançando a cada passo. Seu habitual sorriso descontraído desaparecera, substituído por um olhar sombrio de determinação.
Eu deveria me sentir animado. O Mestre dos Camaleões foi um dos únicos deuses menores que Kevin e eu conhecemos na Sociedade dos Cinco que nos ajudara e protegera desde que haviamos chegado ao subsolo do Mundo Mortal. Talvez ele estivesse se mobilizando para garantir a segurança de sua Tribo contra uma batalha iminente no equinócio de outono, mas o exército formado encontrava-se em tamanha inferioridade númerica comparada a legião de demônios de Thotenic que os guerreiros não possuiam a menor chance.
Todavia, mesmo sendo uma força pequena, mal chegando a duzentos camaleões, pareciam todos bem-treinados e bem-organizados. Eles possuiam uma postura mais ereta e confiante. Seus braços não tremiam com o peso das armas e sua respiração não estava descompassada com o esforço de trajar uma armadura.
Se o famoso imperador Júlio César voltasse dos mortos, ele não teria dúvidas em recrutar as tropas e transformá-las em valorosos defensores de Roma.
Ao longe, enxerguei trirremes gregas flutuando no mar. Ao longo das colinas, onagros eram preparados para uma invasão. Alguns camaleões patrulhavam os campos. Outros observavam o céu em cada torre de vigia, atentos a ataques aéreos.
Subitamente, percebi que Nagato estava me estudando com atenção. E eu não fazia a mínima ideia de como isso era possível. Meu ba não devia ser visível para ninguém. Entretanto, sendo qual fosse a explicação lógica, o Mestre dos Camaleões não parecia particularmente surpreso ou ofendido com a presenção de uma ave majestosa o encarando com cara de trouxa.
O camaleão sorriu descontraídamente para mim e lançou uma piscadela cospiratória antes que a paisagem mudasse mais uma vez.
Então eu fui guiado até uma sala enorme. Parecia uma oficina, com vários elevadores hidráulicos. Em alguns viam-se carruagens, mas em outros havia coisas mais estranhas: um garoto de bronze com a cabeça solta e um punhado de arames pendurados de seu tronco, uma manopla de prata que parecia ligada a um carregador de baterias e um computador feito inteiramente de bronze imperial ligado a dezenas de armas de fogo.
Projetos menores atracavam-se em uma dúzia de bancadas de trabalho como se tivessem sido começados e depois largados na metade da construção. Eu via ferramentas penduradas ao longo das paredes. Cada uma delas tinha o contorno desenhado em um quadro, mas nada parecia estar no lugar certo. O martelo pendia na parte da chave de fenda. Uma serra elétrica em chamas encontrava-se onde deveria estar uma machadinha com rodinhas infantis.
Sob uma confortável poltrona de couro no centro da sala, Delfim repousava distraídamente. Sua cabeça estava completamente enfaixada, como se estivesse usando um turbante. Eu fiquei atordoado. Mesmo tendo enfrentado o próprio Mestre dos Leões em uma luta fatal, Delfim exibia dores e feridas moderadas. Eu recordei do samurai-gigante erguendo-se sob a Cidadela e atacando Kenpachi como uma colossal máquina de destruição enquanto trazia casas abaixo com sem dificuldades. O castor se provara muito mais poderoso do que qualquer um jamais teria imaginado após conhecê-lo pessoalmente.
Quando ele entrou na batalha, sua estatura pequena e seu coração gentil constratavam em grande conflito com sua atitude feroz e implacável. A leoa Sekhmet exaltara uma vez no Jardim dos Deuses que o Mestre dos Castores ocultava um verdadeiro demônio dentro de si. Agora duvidava que ela tivesse falado apenas em figura de linguagem, embora eu ainda gostasse bastante do Mestre dos Castores.
Sua pelagem marrom-clara estava desproporcional com inúmeros cortes e arranhões, mas fora isso, Delfim estava bem vivo. Ele também parecia bastante absorto em seus pensamentos. Queria acreditar que o castor estivesse ponderando em criar inúmeras e novas engenhocas malucas, mas suas feições facial contraiam-se em um ressentimento grave. Seus olhos estavam perdidos em um ponto distante da sala, encarando um vazio com uma amargura bem perceptível. Lembrei-me que o Mestre dos Leões havia mencionado algo sobre seu filho antes de Delfim atacá-lo furiosamente, mas minhas memórias estavam tão embaralhadas que eu não conseguia montar um quebra-cabeça conexo de suas exatas palavras.
Senti meu rosto de ba arder de vergonha. Eu estava tão preocupado com a segurança de meus amigos que havia esquecido completamente da batalha que Delfim combatera com Kenpachi para que nós pudessemos escapar. Tenho total conciência de que nossa fuga falharia se ele não tivesse nos apoiado. Agora, o velho castor parecia estar considerando se suas escolhas tinham valido a pena.
Mas o pior era a sensação sufocante presa em meu peito. Minha lingua parecia feita de algodão. O sentimento era quase insuportável. Eu não tinha parado para pensar nem um instante sequer se Delfim havia sobrevido ou não após termos escapado da Cidadela (ok, essa não era totalmente culpa minha, já que estava ocupado demais tentando sobreviver ao Subterrâneo e tal, mas mesmo assim...)
Eu fiquei parcialmente agradecido quando o espaço se deslocou à minha volta. Não sei se conseguia ver o Mestre dos Castores sem me sentir um lixo de pessoa. Repentinamente, eu vi dois felinos próximos entre ruínas abandonadas. Um deles era claramente Kenpachi, o Cara dos Leões e sujeito surtado que tentara me matar no Coliseu [Pensei que seria bom mencionar o assunto novamente, Liah. Tipo, só para refrescar a memória].
Eu nunca esqueceria aquele rosto duro e maltrado que faria o semblante de um lutador de boxe parecer quase deslumbrante marcado com aquele sorriso selvagem e exultante, quase ultrapassando a linha tênue de insanidade. Sua juba extravagante estava seca e rígida, como se ele tivesse tomado um banho rápido e usado sabão de pedra como shampoo. O outro deus menor presente era uma felina. Seu pelo era dourado como lava derretida e sua armadura pareciam tecida com ligas de fogo. Seus cabelos negros consistiam-se em uma longa e densa juba de leão. Ela poderia ser considerada bonita, mas seus fundos olhos sombrios e ameaçadores deviam estragar completamente seu perfil em um site de encontros.
A felina estava ajoelhada no chão de pedra, sustentando um dos braços no joelho enquanto assentia honrosamente diante das ordens do Mestre dos Leões. Procurei fazer linguagem labial entre eles, mas só consegui captar uma palavra no dialeto rápido e áspero de Kenpachi: caçar.
Então fiz questão de retratar alguns detalhes esquisitos. Primeiro, minha visão se concentrou no centro da localização dos felinos, que se assemelhava bastante com uma espécie de santuário. Baseava-se em uma fortaleza antiga localizada no alto de uma colina quase tão impressionante quanto um montanha verdejante. Elevava-se cerca de cento e vinte metros acima de penhascos íngremes encimados por muralhas de calcário. No alto, templos em ruínas e guindastes modernos reluziam como prata ao luar.
Segundo, as maçãs pronunciadas no rosto comprido de Kenpachi estavam lisas, sem nenhum machucado aparentemente visível resultante de sua batalha contra Delfim. Já as mangas do seu manto branco haviam sido rasgadas e o kimono escuro estava esburacado em diversos pontos, como se ele tivesse nadado em uma piscina de cutelos cegos. As vestes em farrapos davam uma aparência irregular ao Mestre dos Leões (mas para ser justo, ter dois metros de altura e sair por ai gritando "lute comigo!" não era algo exatamente regular).
Finalmente, Kenpachi ordenou algo com toda certeza ruim para a Tenente dos Leões, pois seus lábios se repuxaram em um sorriso particularmente perturbador, até mesmo para ele. Os olhos de Sekhmet brilharam como se tivesse acabado de ganhar uma adaga ensanguentada.
Repentinamente, eu estava em outro lugar, sobrevoando o Subterrâneo. Tive esperanças de encontrar meus amigos a salvo, mas não foi com que me deparei. Eu estava em um túnel largo. O teto erguia-se a mais de seis metros de altura e era decorado com com elaboradas pinturas de águias pousadas em galhos de álamo-branco. Meus olhos quase saltaram das órbitas de tamanha surpresa. Minhas penas farfalharam. Minha garganta se fechou com a sensação de ter engolido uma sacola de bolinhas de gude enquanto eu despencava em uma cachoeira de água gelada.
Posivelmente, com grandes probabilidades positivas, aquele era o túnel onde a entrada e rota de invasão para o centro da Tribo das Águias se encontrava no meio do emarainhado de caminhos mortais pelo Subterrâneo.
Estudando as seções decoradas e o chão do túnel repleto de cacos de cerâmicas e moedas de ouro, a Tenente Hisane estava em uma armadura romana completa. Não havia como confundi-la erroneamente. Os cabelos negros da águia caiam pelos seus ombros e estavam trançados nas costas. Seu rosto marcado com linhas de expressão possuia uma compenetração severa e calculista de uma ave de elite treinada. As medalhas em sua armadura haviam desaparecido, mas isso parecia deixá-la ainda mais autoritária do que antes. E seus olhos me deixavam nervoso. Eram negros como petróleo e reluziam como combustível, prontos para incêndiarem e destruirem tudo que ameaçar entrar em seu caminho.
Ela estava flanqueada por duas outras águias armadas com lanças. Atrás da Tenente, havia uma fileira de aves em armaduras de guerra. Não consegui identificar a expressão deles, mas sua presença já era auto-explicativa: Thotenic havia enviado um esquadrão de águias para garantir sua vitória sobre a Sociedade dos Cinco.
Hisane e suas aves-guerreiras estavam estudando um mapa sobre a claridade luminosa de um lampião fraco no breu do labirinto sombrio.
A Tenente das Águias amaldiçoou em egípcio.
- Deveria ser a última volta.
Ela amassou o mapa e o lançou para trás.
- Senhora! - Uma das aves protestou.
- Mapas são inúteis aqui - Hisane retrucou rispidamente. - Não se preocupe, eu os acharei.
- Tenente, é verdade que quanto maior o grupo...
- É maior a chance de se perder? - Hisane completou, impertubável. - Sim, é verdade. Por que acha que só mandamos exploradores sozinhos para começar? Mas não se preocupe. Em breve, nós o encontraremos, então poderemos impedir a locomoção do ataque por aqui.
- Mas como conseguiremos achá-lo?
Hisane deu um passo à frente e flexionou os dedos.
- Ah, eles irão nos ajudar. Tudo o que temos de fazer é continuarmos seguindo as ordens de Thotenic e os alcançaremos. É impossível de ir para a entrada no Palácio das Águias sem passar por esse caminho. Este é o por quê de estarmos aqui. Nós só temos que permanecer esperando até...
- Senhora! - Uma nova voz veio pelo corredor.
Outro garoto-ave em uma armadura grega correu adiante, carregando uma tocha.
- Merlina encontrou o rastro.
Hisane fez uma careta.
- Tem certeza, Caleg?
- Sim, senhora! É melhor você vir rápido. Eles estão acampando no Subterrâneo. Quase o encurralamos.
- São eles?
- Acredito que sim, senhora.
Hisane assentiu. Sua expressão ficou nublada como uma tempestade e seus olhos faíscaram como trovões.
- Gunine e Urlanda - Anunciou a Tenente, fazendo as duas águias em seus ombros avançaram rapidamente até ela. Então a Tenente de Tribo desembainhou uma longa espada de esgrima. - O descanço terminou. Daqui para frente, nós seguimos sozinhas.
A minha visão de ba se tornou um borrão indistinto e as paredes do Subterrâneo se dissolveram em uma confusão de imagens difusas. As palavras do jovem-águia ainda ecoavam em meus ouvidos.
Eles estão acampando no Subterrâneo.
Eu senti minha forma de ave majestosa sendo rebocada para outro espaço através da névoa pertubadora preenchida de rosnado e grunhidos assustadores. Em pouco tempo, eu circulava o ar de uma área tão vasta e gigantesca que mal conseguia assimilar a paisagem em torno de mim.
Nos bons e velhos tempos, quando ainda morava com minha mãe, eu visitava o centro de Campinas com frequência. Conseguia ver o espaço da cidade simples inteira, do Terminal Central até o Calçadão da Treze de Maio. O lugar onde estava era maior do que isso. Oferecia talvez uns oito quilômetros quadrados. Quando eu pisquei, descobri que o céu da tarde estava brilhando como cobalto, listrado com as nuvens alaranjadas. O ar estava fresco e limpo. Bandos de gansos voavam acima. As palmeiras estavam altas e a grama era verde-claro. [Sim, Liah, eu sei que parece bobagem. Mas a grama era realmente mais verde na Sociedade dos Cinco.]
Eu estava rodopiando sobre um templo altivo. Por fora das muralhas, blocos de pedras espessas e extensas subiam à dez metros de altura, esplandecendo sob a claridade de raios de luz. Todo o complexo deveria ter pelo menos um quilômetro quadrado. O sol estava se pondo às minhas costas. Tudo à frente estava banhado em luz vermelha: a areia, um oceano gelado, as montanhas no horizonte. Mesmo as folhas das palmeiras pareciam que estavam tingidas de sangue.
O ser iria amar esse lugar, eu pensei, recordando da aparência do Mundo Interior.
À direita, campos, estradas e bosques reluziam em uma luminosidade escarlate. Bem abaixo deles, havia um vale avermelhado, como uma ilha de vulcão, cercado por colinas inclinadas, ao norte. Eu vi algumas construções parecidas com antigos templos gregos, uma mansão dourada, um lago e um monte de terra esburacado de sessenta metros de altura, aparentemente em chamas azuis.
Porém, antes de poder realmente processar tudo o que via, meu ba se lançou até o interior do castelo, onde atravessei um saguão alinhado repleto de felinos barulhentos. Fileiras de colunas pintadas de colorido estavam cobertos de castiçais de ferro segurando tochas em chamas. Palmeiras em vasos e plantas floridas de hibisco estavam colocadas em vários pontos estrátegicos do lugar. Janelas grandes tinham vista para fora, que eu acho que seria uma ótima vista se você gostasse areia esmaltada em luz vermelha.
As próprias paredes foram pintadas com a vida egípcia após a morte, junto com lemas hieroglíficos alegres como imortalidade com segurança e a vida começa agora!
Eram pelo menos cinquenta leões presentes. Os felinos mais jovens tinham aparência de nove anos e corriam pelo espaço, gritando de alegria e brincando de pega-pega com os coleguinhas, causavam deteriorando os felinos em seu caminho em um completo caos. Alguns adultos espalhavam-se enquanto outros caiam. Outros oscilavam loucamente, como se tivessem sido pegos em um mini-tornado ao redor de suas pernas.
Os mais velhos deviam estar na terceira idade, não se agitando muito em seus lugares. Eram basicamente uma dúzia de figuras murchas vestidas de linho sentadas nos sofás ao redor da sala, olhando para o espaço enquanto discutiam com os outros com alegria. Alguns vagueavam pela sala, empurrando pólos de rodinhas com sacos sanguíneos. Todos vestiam braceletes com seus nomes em hieróglifos. Alguns pareciam humanos, mas sempre tinham cabeças de leões. Um felino velho com um fino bigode no estilo Fu Manchu balançava para frente e para trás em uma cadeira dobrável de metal, debicando um jogo de senet em uma mesa de café, completamente concentrado. Uma mulher idosa com uma cabeça de leoa grisalha corria ao redor em uma cadeira de rodas, balbuciando miau freneticamente. Um homem enrugado de pelo escuro não muito mais alto que eu abraçava uma coluna de calcário e chorava suavemente, como se estivesse com medo da coluna deixá-lo.
Ele me lembrava bastante um garoto estranho do orfanato Renegados chamado Arthur não-sei-de-quê. Para ser sincero, nunca fomos tão próximos assim para mim lembrar seu sobrenome após tanto tempo. Mas a questão é que, nem mesmo a Diretora Emerlinda conseguia desgrudar o menino do seu estimado e surpreendentemente bem-cuidado dragão de brinquedo, o grande Wyvern ou algo parecido.
E pensando bem agora, irei adicionar para a minha lista de lugares menos favoritos além de salas de aula e hospitais: casas de pessoas velhas.
Isso pode soar estranho para você, mas se mora com os seus avós, não acho que considero a sua casa ou apartamento como um lar de pessoa velha. Eu quis dizer instituições. Casas de idosos. Asilos. Esses são os piores. Eles cheiram como uma horrível mistura de cantinas, materiais de limpeza e aposentados. Os presidiários (desculpe, pacientes) sempre parecem tão infelizes. E as casas têm absurdos nomes felizes, como Repouso dos Senhores Ensolarados.
Cara, dá um tempo.
Mesmo assim, os felinos pareciam felizes e relaxados sorvendo o líquido de algumas canecas enquanto descansavam em seus assentos reclináveis. Eu literalmente passei voando acima deles, disparando pelo saguão e avistando empregados-leões. Eles vestiam uniformes médicos brancos e passavam pelo espaço atarefados, carregando bandejas de medicamentos e empurrando cadeiras de rodas pelo pavilhão.
Finalmente, eu alcancei um escritório aberto com a área de um ginásio escolar que poderia ser considerado o maior chalé de caça do mundo. O piso de madeira estava cheio com peles de animais exóticos: zebras, leopardos, uma pantera com asas de beixa-flor e um réptíl de trinta metros de comprimento que eu não gostaria de ter encontrado quando vivo. Na parede da direita, fogo estalava em uma lareira do tamanho de uma garagem. Colunas de madeira maciça sustentavam o teto, que tinha fileiras de lanças no lugar do caibro. Escudos polidos cobriam as paredes. A sala parecia irradiar luz de todos os lados, com um brilho quente e dourado como uma forte tarde de verão após você ter saído de uma extensa sessão de cinema.
Na frente de toda a decoração magnifíca, três felinos encontravam-se em um debate intenso. Separados entre uma trabalhada mesa de mogno ocupando quase todo espaço do escritório, dois deles estavam em uma tarefa bem importante, examinando um mapa abarrotado de hieroglíficos brilhantes e runas flutuantes sobre o móvel enquanto um outro leão na direção oposta desandava a contestar algo como:
- ... pensem nas possibilidades!
Uma das figuras suspirou. Sendo um dos seres debruçados atrás da mesa estudando mapa, a leoa tirou os olhos da representação gráfica reduzida. Ela tinha um lenço verde-fluorecente ao redor de seu pescoço e o seu cabelo loiro curto caía livremente na altura das orelhas. Ela vestia uma calça de linho escura e uma jaqueta laranja com hieriglíficos bordados ao redor da gola e dos punhos. Havia linhas detalhadas em volta dos ombros da blusa e um cinto de ouro pendurava um molho de chaves antigas com um machado de lâmina única nas costas.
A felina parecia a madrinha de um casamento do Mortal Kombat.
Não eram todos que conseguiam parecerem atraentes combinando as cores verde e laranja, mas ela conseguia. Com os olhos radiantes como sol alaranjado e o machado cintilando com luz própria, a felina parecia muito bem-ajustada, como mulher-no-comando.
- Não diga - Respondeu ela sarcásticamente ao outro indivíduo que estava discutindo. - Qual o problema com Jideron?
O leão na parede contrária se remexeu de um pé para o outro.
- Ah, Jideron não é muito, como posso dizer... carismático. Vocês sabem. Sempre que pedem a sua opinião sobre assuntos importantes, ele murmura: "Ah, sei lá. Tanto faz". Mas eu poderia fazer minha parte de forma muito mais eficiente. Meu primeiro movimento tático seria abrir cassinos.
- Cassinos? - Perguntou a felina com lenço verde, revirando os olhos e escorregando seu dedo indicador para uma área montanhosa cercada de runas roxas no digrama gráfico.
- É, seria perfeito, já que estamos acolhendo um monte de aposentados entediados. E nós também temos muitos dragões aprisionados na Toca das Formigas. Poderiamos organizar corridas no céu. Com dragões. Seriamos imbatíveis.
Mesmo a contragosto, eu tive que concordar que corridas de dragões seriam iradas. Entretanto, quando o leão disse Toca das Formigas, senti uma apreensão terrível tomar conta de meus pensamentos do mesmo modo que um navio pirata saquearia um barco desprotegido. Qualquer que fosse a aparência da prisão de dragões, não parecia um lugar onde eu desejaria tirar férias.
A deusa menor armada com um machado encarou o leão ao seu lado. Ele também estava estudando o mapa com atenção, girando as pontas dos dedos no gráfico e criando novos símbolos cintilantes suspensos sob o pergaminho desgastado. Hieroglíficos ardiam com uma luz ofuscante quando eram formados, pairando e rodopiando animadamente pelo mapa com vida própria, como pequenos insetos caminhando em uma mesa de piquenique repleta de açúcar.
O leão era esguio e musculoso, com cabelos dourados e olhos castanhos fervendo com energia da mesma maneira que café escuro. Eles deviam ser sua característica mais impressionante, sendo ao mesmo tempo opacos e cintilantes. Lembravam um fóssil que minha mãe tinha guardado no armário em casa, uma concha de um animal marítimo semelhante ao naútilo chamado amonite. Parecia ter um brilho interno, como se tivesse absorvido milhões de anos de lembranças enquanto ficou enterrado no fundo do mar.
Os olhos do leão tinham o mesmo tipo de brilho.
Ele também trajava um típico uniforme de Mestres de Tribo, com um longo kimono negro aberto, expondo seu peito largo e proeminente. Contudo, logo constatei que a versão de sua capa era uma grande variação comparada aos outros mantos que eu já vira, sendo uma espécie haori branco elaborado com ornamentos dourados e golas altas, detalhadas com elegantes bordas de ouro protegendo o pescoço. Uma espada gigantesca situava-se em suas costas, com o mesmo tamanho do leão.
Sua lâmina era tão grande que provavelmente deve ter feito minha espada negra tremer na base na Dimensão Mágica Surreal.
Trajando vestimentas de Mestre de Tribo e possuindo um ar incrivelmente solene... Quem era esse leão?
Suas sobrancelhas se uniram em sinal de exasperação quando começou a dizer, com voz grave preenchendo todo escritório:
- Pela última vez, Crawler...
Eu fiquei tão estupefato que quase despenquei do alto do escritório e me esborrachei feio contra piso polido do espaço em minha forma de ba.
Crawler?, pensei em descrença.
Eu examinei o leão cinzento mais distante na com certa cautela. E quando eu digo cinzento, quero dizer que as roupas dele eram do tom mais puro e lindo de cinza que já vi. Mesma a lua à meia-noite não teria sido tão prateada. Ele usava um terno bem cortado de quatro peças feito de cota de malha, uma gravata, uma camisa e calças sob medida que pareciam tecidas em mercúrio, com dois facões medonhos presos na cintura. As correntes e anéis caros em seus punhos haviam sumido, mas eu ainda podia imaginá-lo como dono imoral e estiloso de um taverna ilegal.
Seu rosto continuava sobrenaturalmente bonito, como se talhado com luar, e sua juba não estava raspada e presa em um rabo de cavalo egípcio. O cabelo encontrava-se comprido e penteado para trás, imaculadamente ajeitado com gel.
Se a lua ganhasse vida e precisasse de um consultor de moda, Crawler seria o cara certo para o serviço.
Eu não fazia ideia de como ele podia estar vivo após nosso combate na Taverna do Chefe, mas o leão parecia em carne e osso ao erguer as mãos em súplica em direção dos dois felinos analisando o pergaminho acima da mesa. Seus olhos de tubarão brilhavam com a mesma ganância de um funcionário bancário, como se considerasse o quanto poderia lucrar em dinheiro ao colocar a própria mãe à venda.
- Senhor, só considere a ideia - A voz dele estava grave e ressonante, com um tom levemente estrangeiro, talvez escandinavo ou alemão. - Como atual Tenente da Tribo dos Leões e com excelentes conhecimentos na área comercial, eu acredito que posso trazer grandes mudanças com...
- Crawler, nada de cassinos - Interrompeu o deus menor com roupas de Mestre de Tribo alheiamente, apertando a ponte do nariz enquanto gerava cada vez mais insígnias no mapa e as posicionava em pontos específicos e particularmente tortuosos na representação desenhada.
O Tenente dos Leões deu de ombros.
- É claro, Mestre. O senhor foi muito inteligente. Entendo que precisamos manter o foco em nosso inimigo mortal, a máfia romana.
- Hã... - A felina ajustou a gola de sua jaqueta laranja. - Eu acho que não ouvi direito... você disse máfia romana?
Crawler dispensou a pergunta com um aceno de mão, fazendo a cota de malha em seu peito ondular como papel-alumínio.
- Esqueça, Tamirah. Mesmo com esse pequeno empecilho no caminho dos negócio, não é um problema tão ruim assim. Ainda poderemos operar pelas Cinco Tribos: empréstimos, proteção, caça-níqueis...
- Caça-níqueis. - Respondeu a leoa que deveria ser Tamirah, cética. - Parece incrível.
Ela parecia estar brincando, embora fosse difícil ter certeza. O rosto dela era cheio de um humor tenso, os olhos sempre em movimentos alertas, os lábios comprimidos, como se ela estivesse reprimindo uma gargalhada ou esperando um ataque. Suas feições eram estranhamente familiares. Eu conseguia imagina-lá fazendo comédia stand-up, mas talvez não com o machado no cinto.
Durante o tempo que eu observava Tamirah, Crawler assentia tão fervorosamente com cabeça que tive medo que ela se desprendesse de seu pescoço.
- Fazem muito sucesso. - Ele estendeu os braços espalhafatosamente, como se tentasse impressionar os felinos com sua incrível magnitude prateada. - Além do mais, também deveriamos mudar o nome de nossa Tribo para atender as demandas do mercado. Quando ouvem o nome Al-Hamrah Makan, todos fazem um sinal de proteção contra o Mau-Olhado. Areias Vermelhas não é um nome marcante. Parece mais um lugar ruim e muito amaldiçoado. Eu não visitaria uma Tribo assim. - Crawler fez um beicinho com a boca. - Mas outra possibilidade seria aplicar um grande golpe de sorte com agentes de apostas e...
Leon, o leão atrás da escrivaninha, finalmente desviou a atenção do mapa e levantou a mão em um gesto claro para impedir que Crawler continuasse falando. O felino se voltou para a leoa próxima e perguntou:
- Cassinos? - Perguntou ele, erguendo as sobrancelhas. - Jura?
- São a última moda, senhor! - Assegurou o Tenente dos Leões.
- Ele realmente tem se superado ultimamente - Murmurou Tamirah, contendo um sorriso travesso.
O deus menor com cabelos dourados fechou os olhos enquanto suspirava.
- Tam, não é tarde. Você ainda pode se tornar oficialmente minha Tenente...
- Mestre! - Crawler protestou, pigarreando. - Eu ainda estou aqui!
- ... eu teria muito menos com que me preocupar. - Completou Leon, voltando o olhar para o mapa acima da escrivaninha e movendo alguns hieroglíficos azuis para fora de um vulcão gráfico bem realista. - Além de me poupar uma grande dor de cabeça em relação a segurança dos idosos em cassinos.
Surgiu uma ruga nos cantos da boca de Tamirah.
- E perder toda essa diversão?
Quando Crawler começou a se manifestar para contradizer algo, um alto CLANG! com estrondo metálico preencheu a sala com um som vibrante. Um dos escudos havia caido no chão. A parte chapada da arma estremeceu no piso.
Algo... alguém... estava debaixo do escudo.
Os três leões lançaram um olhar conflituoso em direção à peça larga de metal caida enquanto andavam cautelosamente até sua localização. A tensão no escritório estava perigosamente estável, tornando cada pequeno eco proveniente do saguão do castelo alto e reverberante. Os dedos de Crawler deslizaram para o cabo de seus machete, mas a leoa chamada Tamirah gesticulou freneticamente com a mão, sinalizando para que ele se segurasse. Os olhos da felina estavam vidrados. Leon agarrou o pedaço de chapa ondulada de defesa e disse sem emitir som nenhum, Um, dois, três!
Então foi quando tudo começou a dar errado.

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AVISO:

Olá, Caros Leitores
Quero agradecer a todos que leram Sociedade dos Cinco e a Jornada pela Cidadela (ou SDC) até aqui, e gostaria de pedir desculpas para vocês, porque não poderei disponibilizar o cap seguinte neste domingo.
Minha ausência semanal possui a explicação racional de minha imaginação e produtividade estarem enfrentando algo pior do que enfrentar o sedento Mestre dos Leões com um machado assustador em beco escuro: o temido e medonho Bloqueio Criativo!
O próximo cap encontra-se completamente estruturado e ordenado, mas não estou conseguindo escrevê-lo de uma maneira bacana, então não irei postá-lo até essa doença sumir para manter a qualidade de sempre.
Entretanto, eu vou aproveitar a oportunidade para reescrever os caps anteriores do livro, pois quero utilizar a experiência que obtive até aqui para que mais pessoas tenham acesso a Sociedade dos Cinco.
Porém, a trama NÃO vai mudar!
Eu apenas estou escrevendo a mesma história de uma melhor forma e acertando em todos os mínimos detalhes, procurando adicionar mais desenvolvimento de personagem, cronologia da escola e construção do mundo.
Eu sei que tenho demorado para postar um novo cap, mas estou buscando pesquisas mais profundas em determinados assuntos para evitar caps rasos, sem deixar de mencionar nos trabalhosos detalhes de narrativa e nas privações de contradições cometidas na sucessão de eventos.
A reconstrução do enredo do livro e a revisão está se provando tão intensa que fui obrigado a dividir dois capítulos em quatro para a leitura não se tornar extensa e confusa, então aconselho que vocês releiam os upgrades significativos dos primeiros caps.
Enfim, acredito que não irei demorar para refazê-los, já que a essência da história está quase inteiramente transcrita. Eu também espero que o irritante Bloqueio Criativo desapareça após essas mudanças e que a jornada de Magnus continue sendo trilhada!
Que força do ser esteja com você!
Espero novamente que possam entender e desejo um ótimo fim de semana para vocês.
Sintam-se livres para deixarem suas opiniões nos comentários ou por mensagens privadas e não esqueçam de votar também, pois ajuda bastante!
Vlw pela compreenssão e apoio!

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Dec 20, 2015 ⏰

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