Capítulo 5 - A vulgar fidalga

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Aos dez anos de idade, as crianças neriquianas deixavam o Jardim de Infância e eram transferidas ou para a escola fidalga ou para a escola vulgar, conforme a casta à qual pertenciam. Sara Buarque foi matriculada em uma escola vulgar.

No primeiro dia de aula, quase não saiu da cama. A ideia de estudar entre as crianças da casta inferior lhe parecia insuportável. Foi dona Helena, com palavras acalentadoras, quem a convenceu a se levantar e enfrentar aquela nova realidade. Sara pegou seu uniforme — um conjunto de camisa, saia e meias num tom cinza escuro — e entrou no banheiro anexado de seu novo quarto para tomar um banho. Tal qual a vida escolar, as irmãs não compartilhavam mais o mesmo cômodo.

No café da manhã, Alana parecia ter a empolgação de quem sairia para uma viagem de férias. O uniforme dela era semelhante ao de Sara, porém azul, o mesmo azul das madeixas que ostentavam a fidalguia dela.

No caminho para a escola, as irmãs dividiram o banco traseiro do carro, mas a viagem conjunta terminou cedo. Sara foi deixada primeiro, em frente a um prédio de paredes acinzentadas e janelas opacas que provavelmente abrigaria seus próximos oito anos de estudo.

Os cabelos coloridos dos fidalgos agora não passavam de uma memória entre aqueles neriquianos de tons neutros. Sara era como eles, mas não se sentia um deles. Nesse sentido, nada havia mudado. Era a mesma sensação de estar na sala dos fidalgos no Jardim de infância. Por isso mesmo, refugiou-se novamente na carteira ao fundo da sala, próxima à janela. Trocou algumas palavras com um menino chamado Tiago e uma menina chamada Paola, e nenhuma com o restante da turma.

Com o passar dos dias, acabou optando pelas carteiras do meio pra frente, não raro sendo vista diante da mesa da professora. Ao contrário de sua época no Jardim de Infância, não havia o que reparar em Sara Buarque. Seu cabelo, sem cor, não destoava dos demais. O azul celeste presente somente nas unhas, nos olhos e nas sobrancelhas tornavam-na uma vulgar como todos à sua volta.

Mas eu não sou uma vulgar, dizia a si mesma.

Só que ela não estaria ali se fosse uma fidalga. Estaria com sua irmã, em outra escola, com outras companhias.

Alana lhe contava as maravilhas da escola fidalga, e Sara ia tomando nota ao observar as diferenças entre a sua e a dela. Na fidalga, o recreio durava o dobro do tempo e a cantina parecia vender o dobro de coisas para uma fila de estudantes muito menor; todas as salas de aula, e não só algumas, eram equipadas com ar-condicionado para ninguém derreter em dias de muito calor; havia uma biblioteca pequena, o que era melhor do que ter nenhuma; a carga horária das aulas era a mesma, mas a variedade de disciplinas era maior, incluindo aulas de música que Sara adoraria participar; até mesmo as matérias pareciam ser mais detalhadas, com livros didáticos mais grossos; e os professores e professoras eram todos fidalgos também!

Outra diferença era que, na escola fidalga, professores anunciavam nome e sobrenome durante a chamada. Na vulgar, por outro lado, o "Buarque" não importava. Ninguém ali apelava para o sobrenome, a não ser quando existiam duas pessoas com o mesmo nome. Às vezes, a garota se sentia como se não fosse Sara Buarque, somente Sara. Era uma identidade estranha, incômoda, como se estivesse vestindo uma roupa que não lhe pertencia.

Quem era a Sara que ela via no espelho do banheiro escolar? Era a mesma Sara refletida no banheiro de sua casa?

Sou Sara Buarque, afirmava-se em frente ao vidro.

Em contrapartida, a garota ocultava de seus colegas de classe o endereço residencial dos Buarque, afinal, nenhum vulgar poderia saber que morava em Lerofonte, uma cidade nobre populada quase que inteiramente por fidalgos. Ainda assim, na necessidade de um trabalho em grupo, Sara se locomovia até a casa de um dos vulgares, geralmente em Helió, e que não se diferenciava tanto assim do luxo de seu casarão de dois andares, pois, embora estudasse numa escola da casta inferior, ainda era a melhor escola vulgar da região Sudeste de Neriquia. Seus colegas eram de uma classe média de vulgares, com pais que exerciam profissões que lhes pagavam 6 mil latis por mês, o salário máximo que um vulgar tinha o direito de receber. Uma mixaria aos olhos de Sara. Seu pai ganhava 20 mil por mês, sem contar a pensão de 10 mil dada pelo Estado desde a morte de sua mãe.

Universo Aurano: Sara [e] AlanaOnde histórias criam vida. Descubra agora