Capítulo 12 - O espelho de Greine (2)

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— O quê?! — Sara não conseguia processar o que acabara de ouvir. Sua própria espécie havia matado um parente de sangue. — Mas por quê? Como isso aconteceu?

Camilo desviou o olhar para o horizonte, seus lábios se movendo como se revirassem as palavras antes de soltá-las.

— O meu irmão... estava apaixonado por uma humana.

A revelação deixou Sara boquiaberta. Dentre os relacionamentos proibidos na espécie neriquiana, esse era o mais grave. Humanos não tinham aura, não eram dignos de se ter como parceiros. Além disso, esse tipo de união gerava um filho cuja qualidade aurânica era próxima de um vulgar ou pior, com características visuais que nem sempre batiam com as de um neriquiano. O Conselho Aurano, é claro, jamais permitiria que as terras do além-Leviatã fossem habitadas por pseudo-neriquianos. A miscigenação não só era desencorajada, como severamente punida.

— A humana se chamava Odete — continuou Camilo, ainda com o olhar e a mente distantes. — O Célio a salvou de um ataque de desgarrados na cidade pacata onde ela morava. Naquela época, meu irmão era apenas um aurano cumprindo o seu dever de proteger a moça e todos os moradores da cidade. Não havia nada entre eles dois, tanto que, ao fim da missão, ele foi embora.

Sara levou uma mecha de cabelo para trás da orelha após o vento costeiro bagunçá-lo. Aguardou, ansiosa, a continuação da história.

— Um tempo depois, Célio retornou à cidade mais uma vez como um dos encarregados em fazer a proteção do lugar. Foi nesse período que ele e a moça passaram a se conhecer melhor. E, eventualmente, acabaram se apaixonando. Mas, claro, mantiveram tudo em segredo.

— Mas foram descobertos, não é?

— Sim. Porém não naquele momento. Eles ficaram um bom tempo juntos, e não só na cidade natal de Odete. — Camilo esfregou os olhos. Talvez uma só xícara de café não tenha sido o bastante para mantê-lo bem desperto. — Célio foi chamado de volta à Neriquia, mas prometeu que voltaria para vê-la em seu período de férias. E quando voltou, trouxe na cabeça um plano bastante arriscado. Reencontrá-la era apenas o estágio final desse plano. Antes disso, ele já havia invadido um cofre estatal e roubado esse par de espelhos sem ninguém saber. Um, ele deixou no porão da casa dele. O outro...

Os olhos de Camilo se voltaram para a cabana, e Sara acompanhou o gesto.

— Então, no começo, o artefato não estava na nossa casa — observou a garota.

— A ideia era que Célio e Odete pudessem ficar juntos enquanto ele estivesse em Neriquia. Para isso, seu tio desistiu da função de sentinela no além-Leviatã e pediu transferência para as forças policiais de Neriquia. Desse modo, ele poderia ver a humana praticamente todos os dias quando chegasse em casa.

— E quando foi que você ficou sabendo disso tudo? — perguntou Sara, atenta à quantidade de detalhes que o pai compartilhava.

— Em algumas semanas depois que o Célio se estabeleceu no país. Mas, Sara, me responda uma coisa. — Camilo pôs uma das mãos na cintura e encarou a filha com seriedade. — O que você faria, se nos passeios que a gente fez nas fronteiras com o além-Leviatã, você flagrasse um neriquiano, fosse ele fidalgo ou vulgar, de namoro com um humano? Iria delatá-los? Mesmo sabendo que isso levaria à execução deles dois?

Sara abaixou a cabeça, sentindo um peso hipotético sobre os ombros. Sem entender direito o motivo, surgiu em sua mente a imagem de duas colegas de classe namorando no pátio da escola. Elas eram de casta vulgar, logo, não havia problema nisso. Mas e se fossem duas fidalgas? Relação homoafetiva entre os fidalgos só era criminalizada se ocorresse beijo em local público, à vista de outros neriquianos. A punição para esse ato não chegava à pena de morte, embora já tenha sido em tempos passados. Mas supondo que ela estivesse nessa outra época e que suas colegas fossem fidalgas, teria mesmo a frieza de ser a responsável por ceifar a vida delas?

Universo Aurano: Sara [e] AlanaOnde histórias criam vida. Descubra agora