Ando pela calçada em transe, provavelmente escutaria mais de meus pais, receberia palavras de repressão. Só queria chegar em casa, deitar na cama e dormir até os dezoito anos, assim poderia arrumar um emprego e juntar dinheiro suficiente para sair daqui.Abro a porta já esperando o baque de sempre. Passo pela cozinha e pelo banheiro, sem prestar atenção em mais nada. Cheiros diferentes infestam o local. O aroma amadeirado se mistura à fragrância de rosas. Parece que desta vez a sorte sorriu para mim.
— Tio?
— Olá, minha princesa. — Ele se levanta do sofá, vindo em minha direção com os braços abertos. — Prefere um aperto de mão?
Sua pergunta é respondida com um abraço apertado. Não confiava em ninguém para abraçar, não depois do que lembrei sobre meu passado. Mas seus braços me trazem conforto, como o de um pai abraçando o filho que acabou de se machucar andando de bicicleta ou brincando de bola.
— Acho que sua pergunta já foi respondida, Julian. — Minha tia sorri. Não era de sangue, mas era melhor do que muitas que já eram da família desde o ventre.
— Então, como você está?
— Ela está bem, Julian. — Meu pai responde por mim no mesmo instante.
— Ora, Daelon, ela pode responder por si mesma.
— Estou bem, tio.
Julian não é tolo. Pela mandíbula travada e pelas unhas cravadas em minha mão, ele sabe. Sabe que não estou bem. E ela, Carmila, também sabe.
— Bom, já que é assim, que tal te levarmos para jantar fora? — Carmila sugere. — Acho que seu pai não seria contra, certo?
Ele fica em silêncio por um instante e, relutante, concorda com a cabeça.
— Vá se arrumar. — Meu tio sorri de orelha a orelha. — Carmila trouxe uma roupa que tenho certeza de que você vai amar.
— Por que continua comprando essas coisas para ela? Já tem roupas demais.
— Sim, mas roupas de que ela não gosta. — Julian retruca, e meu pai se cala na mesma hora.
Ignoro a discussão dos adultos e corro para o quarto como uma criança. Assim que entro, vejo uma linda caixa amarrada com um laço vermelho. Dentro dela, um belo vestido preto que chega aos joelhos.
Era elegante, com mangas compridas de tule que permitiam suportar o calor. Meus braços não queimariam. O decote em formato de coração me faz hesitar, pois o que falta em algumas, em mim há de sobra.
Ignorei esse detalhe. Carmila sempre soube escolher roupas que me deixassem confortável.
Visto o vestido e percebo que ele oferece sustentação para o busto. O tecido leve ajuda a amenizar o calor. No entanto, ainda me incomodam os ombros e as costas, pois não há como escondê-los. Calço o salto baixo preto que também estava na caixa. Os acessórios prateados combinam comigo — nunca gostei de dourado.
— Terminou, querida? — Ouço Carmila do outro lado da porta.
— Sim.
Abro a porta, revelando meu visual. Um leve sorriso surge em meu rosto cansado.
— Posso arrumar seu cabelo? — Ela entra e fecha a porta, abafando o som da discussão dos homens.
— Claro.
Eu me sentia como uma criança ao lado dela. Carmila era exatamente o tipo de mulher com quem muitos sonhavam: serena, sincera, gentil e amável.
Ela penteia meus cabelos com cuidado, os amarra e pega uma pequena caixa de grampos. Borrifa água e passa creme nas mechas, enrolando-as e prendendo-as uma a uma. No final, forma um coque elegante no topo da cabeça, com dois pequenos cachos soltos ao lado das orelhas. Eu realmente parecia uma princesa.
Depois disso, passo uma leve maquiagem. Não sabia me maquiar muito bem, então minha tia teve que ajudar.
— Está pronta? — A voz de Julian soa do outro lado da porta.
— Vamos. — Abro a porta, animada.
Caminhamos até o carro. Entro no banco de trás e coloco o cinto enquanto meus tios se acomodam na frente. Logo, o carro parte, e começamos a deixar a cidade para trás.
Sei que meu pai está furioso. Ele odeia quando meu tio vem me visitar e me leva para algum lugar sem que ele saiba do que estamos falando. Odeia não ter controle sobre tudo. E Julian sabe disso.
— Querida, vi que você está um pouco tensa... Está tudo bem? — Julian pergunta, com um olhar cuidadoso.
— Hm? Claro.
— Sabe... — Ele sorri. — Tem algo que você quer me contar?
Minha garganta se aperta, mas não respondo.
— Ela tem algumas marcas nos braços. — Carmila revela suavemente, lançando-me um olhar compreensivo.
— E nas costas também? — Julian pergunta, atento à minha reação.
Engulo em seco. Não queria falar, mas eles eram as únicas pessoas em quem eu confiava. Eu precisava contar.
— Aulas de dança.
— Aulas de dança? — Carmila franze a testa.
— Ele não quer que eu faça. Mesmo com minha mãe insistindo.
— Mas você já fez aulas antes, não fez?
— Sim, mas minha mãe acha que preciso emagrecer.
— Quanto você está pesando agora? — Julian pergunta diretamente.
— Sessenta e cinco quilos.
— Ok, pra sua altura é um pouco demais — ele diz com sinceridade —, mas não chega a afetar tanto sua saúde.
— Eu sei. — Encosto a cabeça na janela, sentindo o frio do vidro contra a pele. — Mas, às vezes, meu peso me incomoda.
— Se você quiser mudar, podemos te ajudar, querida. — Carmila sorri gentilmente.
Não sei o que responder. Preciso de tempo para pensar. Aceitar a ajuda deles certamente enfureceria meu pai.
Fecho os olhos, deixando a brisa refrescante do ar-condicionado me envolver. A sensação é libertadora, como se, naquele momento, no banco daquele carro, eu estivesse finalmente em paz.
O Sol começará a se por.
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Talvez...
ChickLitLiora aparenta ter uma vida normal e bem-sucedida, além de aparentar ser perfeita desde seu nascimento. No entanto, por trás das paredes de sua casa, ela enfrenta um pesadelo constante. A cada dia, Liora luta para esconder os traumas e abusos que a...