Agora são duas da tarde de um domingo, e eu me pego encarando o teto. Minha mãe está na sala, e meu pai, por algum motivo, não está em casa. O som da TV ecoa pela casa silenciosa. Não estava alto, nem era incômodo.
O tédio toma conta da minha mente, e a preguiça domina meu corpo. Nem mesmo a série que acompanho consegue me entreter. Sinto vontade de gritar, até que a tela do meu celular acende, e o nome do contato faz meus olhos brilharem.
"Bom dia"
"Você está bem?""Bom dia, Orion"
"Tô entediada, e você?""Estou bem"
"Você gosta de RPG, não é?"Fico confusa por alguns segundos. Tinha comentado isso com Orion há muito tempo; nem fazia ideia de que ele se lembrava.
"Sim, por quê?"
"Tem uma galera com quem eu jogo. Quer participar?"
Não tinha nada para fazer, mas conhecer pessoas novas sempre me assustou. Não por serem desconhecidos, mas porque não sei lidar bem com quem não conheço. A vergonha me faz esquecer as palavras na maioria das vezes.
Mas, sem nada para fazer, por que não tentar?
"Pode ser"
"Beleza, vou te mandar o convite."
O convite chega em questão de segundos. Sinto um frio na barriga. Tirando Orion, eu não conhecia ninguém no grupo.
Repenso todas as minhas decisões até agora; por um instante, penso em inventar alguma desculpa para desistir. Mas, se ele me convidou, é porque queria que eu estivesse lá.
— Vamos, Liora — encorajo a mim mesma — se você gaguejar, culpa o microfone. — Brinco.
Aceito o convite e logo entro no grupo. Eles já estão numa chamada, e entro com o microfone desligado.
— Ué, quem é esse aí? — alguém pergunta.
— Vamos, minha filha, vai ficar muda? — Orion me provoca. Ele ri, mas eu só sinto nervosismo.
— Quer que eu fale o quê? — pergunto, ligando o áudio, agradecendo por eles não verem o quanto eu estava tremendo.
— Qualquer coisa já tava bom.
— Implicância é o nome, né? — brinco com ele.
— Ah, deve ser.
— Conhece o sistema...? — a pessoa para, provavelmente tentando lembrar meu nome.
— Liora. E não, eu não conheço.
— Você não tem voz de Liora — outra pessoa comenta.
— Quer puxar assunto, faz direito — outro garoto diz.
— Perdão, mas qual o nome de vocês?
— Darian — o primeiro responde, sem cerimônias.
— Eu sou Cael, prazer — o segundo se apresenta.
— Quer meu nome também? — Orion pergunta, provocando.
— Completo, se possível, — brinco — dá pra comprar uma moto no teu nome.
— Se você conseguir subir — ele ri.
— Vou conseguir, é só levar um banquinho.
Orion ri das minhas brincadeiras. Darian e Cael com certeza estavam confusos, mas com razão; eles não me conheciam, e eu não os conhecia também.
Em pouco tempo, aprendo o básico do sistema que eles usam e crio uma ficha para minha personagem: uma guerreira humana. Era sem graça, admito, mas como era minha primeira vez, não queria nada muito complexo. Dei a ela cabelos ruivos e ondulados, olhos verdes e uma armadura com um broche de rosa.
Orion começa uma nova sessão. Ele cria todas as situações rapidamente e sem dificuldade, e aos poucos vou pegando o jeito.
O tempo passa. Descrevo as ações da minha personagem e falo como se fosse ela. O tédio vai embora, dando lugar a uma certa felicidade. Me enturmar não foi um bicho de sete cabeças.
— Com quem você tá falando? — a voz do meu pai me faz pular. Ele apareceu do nada na porta do meu quarto.
— Ahm, com as meninas.
— Que meninas?
— Brie e Elora — minto.
— Já tá na hora, não? — ele pergunta, deixando claro que queria que eu desligasse.
— Sim, senhor — digo enquanto ele sai em silêncio. Respiro fundo.
— O que foi isso? — Darian pergunta.
— Meu pai quer que eu saia — digo em voz baixa. — Foi muito bom jogar com vocês, mas preciso ir.
— Beleza, tchau, Liora — Darian e Cael dizem quase em uníssono.
— Vai lá, Liora — diz Orion, num tom que me acalma.
Saio da chamada. Sem perceber, já eram oito da noite; passei o dia nisso. Não nego que gostei da experiência. Só tinha jogado com meus primos antes, num sistema que eles mesmos criaram. A nostalgia foi boa.
Vou até a cozinha para beber água. Quando volto, escuto uma discussão na sala, mas não dou importância. Era comum.
Deito na cama e, logo, a tela do celular acende com uma notificação.
"Espero que tenha gostado"
Sorrio ao ver a mensagem de Orion. Ele realmente se importava comigo. Passar esse tempo a mais com ele me fez tão bem que me pego sorrindo como boba.
É estranho o que sinto perto dele. Ele me deixa confusa, mas mais leve. Perto dele, sinto que posso ser eu mesma, sem medo.
Não, isso está errado. Ele é só meu amigo. Não tem como eu sentir algo a mais. Ok, fico boba perto dele, sorrio sem esforço, às vezes sinto vontade de abraçá-lo, me encanto com seus olhos e a paixão com que fala do que gosta. Mas isso não significa nada... não é mesmo? Não tem nada além de uma amizade pura aqui... ou será que...
— Estou apaixonada...
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Talvez...
ChickLitLiora aparenta ter uma vida normal e bem-sucedida, além de aparentar ser perfeita desde seu nascimento. No entanto, por trás das paredes de sua casa, ela enfrenta um pesadelo constante. A cada dia, Liora luta para esconder os traumas e abusos que a...