Meus joelhos com certeza ficariam marcados pelo rejunte do banheiro. Não posso fazer barulho. Alguns dos ossos da minha mão ficavam mais vermelhos enquanto raspavam pelos meus dentes. Minha mão estava suja, e eu também me sentia assim.O desespero era grande de certa forma. Temia que, a qualquer segundo, minha tia entrasse e ouvisse o que eu fazia. Eles ficariam decepcionados, com raiva, e provavelmente brigariam comigo por isso.
Levantei-me da beira do vaso sanitário e limpei as bordas do assento e meus dedos. Tossi, tentando aliviar a garganta, e usei papel higiênico para limpar as mãos antes de dar descarga. Ajustei minha postura, passei o dorso da mão nos cantos da boca e inspirei fundo.
Ao sair, lavei a boca na pia de maneira desajeitada. Não era bonito, mas quem se importa? Algumas mulheres passaram atrás de mim, rindo e cochichando. Era coisa delas, e eu tentei não prestar atenção.
A porta se abriu, e o som dos saltos altos revelou quem vinha.
— Liora, vamos? — Carmila parou ao meu lado.
— Vamos.
Peguei um papel para enxugar as mãos e a acompanhei até a saída. Julian nos esperava no carro. O ar quente da noite foi cortado assim que entramos e o ar-condicionado gelado nos envolveu.
Recostei a cabeça no banco, fechei os olhos e respirei fundo. O cansaço pesava no meu corpo, e minhas pernas se cruzaram automaticamente. Aquela era a única posição que me deixava confortável com o banco da frente limitando meus movimentos.
— Daelon não deixou você ficar lá em casa hoje — lamentou meu tio.
— Não daria nem se eu quisesse. Tenho aula amanhã, e já começaram os trabalhos do bimestre.
— Poderíamos te levar para a escola. Acordamos cedo todos os dias, então não seria problema — Carmila sugeriu.
— Sei bem disso — sorri, lembrando do som do rádio que Julian sempre ligava quando eu os visitava e ele se preparava para o trabalho. — Vocês me acostumaram a acordar às cinco da manhã.
Eles riram. A rotina dos dois era corrida e exaustiva, mas eu entendia. Não os culpava por tirar meu sono e o dos meus primos quando eu estava na casa deles.
De repente, o silêncio se instalou no carro. Era bom, mas desconfortável ao mesmo tempo. Carmila e Julian trocavam olhares, como se se comunicassem sem falar.
— Liora — meu tio finalmente quebrou o silêncio —, há quanto tempo você faz isso?
Abri os olhos na mesma hora. Senti o peito apertar, e uma leve onda de náusea me percorreu. Do que ele estava falando? O olhar dele alternava entre a estrada e o retrovisor, tentando captar minha resposta antes mesmo de eu abrir a boca.
— Isso o quê? — minha voz quase falhou.
— Sua mão direita está vermelha e machucada.
Olhei para minha mão e senti um nó na garganta. Como ele percebeu?
— Ah... Isso. Eu devo ter me arranhado em alguma parede...
— Liora, não precisa mentir para mim. Há quanto tempo?
Baixei a cabeça. As palavras se embaralhavam na minha mente.
— Um ano e dois meses...
Ele inspirou fundo, e o ar pareceu pesado por alguns segundos. Eu sabia que tinha o decepcionado. A expressão dele era difícil de interpretar, mas desgosto, raiva e frustração estavam lá, nítidos. E eu não o culpava por isso.
— Por que... — ele hesitou por um segundo, mas a pergunta veio como uma faca. — Por que você não me pediu ajuda?
Olhei para ele, confusa.
— O senhor não está com raiva de mim?
— Um pouco, mas não pelo motivo que você acha.
Aquelas palavras me desarmaram. Eu esperava gritos, ofensas, qualquer coisa. Por um momento, esqueci que ele não era meu pai. Ele era Julian, o tio que sempre tentava me proteger do que pudesse me machucar, até mesmo de mim mesma.
— Estamos preocupados com você, Liora — Carmila disse, estendendo uma garrafa para mim. — Beba isso, vai te fazer bem.
Peguei o isotônico sem muito ânimo.
— Preocupados com o quê? Eu estou bem.
— Seus relatórios sempre foram detalhados, com mais de uma página e uma escrita impecável — Julian comentou, sem tirar os olhos da estrada.
— Mas...? — perguntei, já antecipando o que viria.
— Agora eles estão curtos, rasos... preguiçosos.
Carmila virou-se um pouco para mim, seus olhos suaves mas firmes.
— Estamos aqui para te ajudar, Liora. Vamos fazer o que estiver ao nosso alcance, mas você precisa nos contar se estiver com problemas.
Eu sabia que eles estavam tentando. Mas naquele momento, cara a cara, não consegui. As palavras não saíram.
— Prometo que o próximo relatório será mais específico, tio.
Julian soltou um suspiro leve. Não era o que ele queria ouvir, mas entendeu meu recado. Eu tentaria ser mais honesta com ele. Ou pelo menos tentaria.
O resto do caminho foi preenchido com conversas leves e músicas baixas no rádio. Mesmo assim, o barulho ao meu redor parecia distante e ensurdecedor ao mesmo tempo. Minha cabeça doía, e meus olhos se fechavam com piscadas fortes. Eu já conhecia aquele mal-estar. Sabia que logo passaria.
Depois de quase meia hora, chegamos em casa. Era tarde, mas as luzes ainda estavam acesas. Julian foi na frente e bateu duas vezes na porta. Ela se abriu quase de imediato.
— Que demora — resmungou meu pai, dando espaço para entrarmos.
— A velhice está te deixando rabugento, Daelon — Julian brincou, dando dois tapinhas no ombro dele. — E olha que você é o mais novo de nós.
— Olá, Julian — minha mãe o cumprimentou com um sorriso. — Carmila.
— Olá, Selene — Carmila respondeu com delicadeza. — Desculpa pela demora. Queríamos aproveitar ao máximo o tempo com a Liora.
— Ainda bem, porque vamos demorar a voltar — Julian comentou.
— Uma pena — meu pai rebateu com um cinismo evidente.
Minha mãe lançou um olhar sugestivo para meu tio e minha tia.
— Se quiserem dormir aqui, fiquem à vontade.
Um brilho de esperança surgiu em mim, mas logo foi apagado pelo olhar cortante que meu pai lançou para ela.
— Obrigada, Selene, mas não precisa.
— Ainda temos nosso apartamento em Vorate — disse Julian.
— Tem certeza? — minha mãe insistiu, mas ele confirmou com um aceno.
Chegou a hora da despedida. O dia havia sido bom, e isso me tirou da rotina sufocante que eu conhecia.
Julian me puxou para um abraço apertado. Meu coração apertou, mas a saudade que eu sentiria seria doce.
— Quando você volta para Baratus? — sussurrei durante o abraço.
— Ainda este ano — ele prometeu, beijando o topo da minha cabeça.
— Liora, isso é para você — Carmila entregou uma caixa pequena e achatada. Não me preocupei com o conteúdo. Apenas a abracei com força. — Até breve, florzinha.
Os dois se despediram dos meus pais, e logo a porta foi fechada. Ouvi o som dos pneus na estrada enquanto o carro se afastava.
Hoje foi um bom dia. Foi bom para mim.
— Preciso de um banho.
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Talvez...
ChickLitLiora aparenta ter uma vida normal e bem-sucedida, além de aparentar ser perfeita desde seu nascimento. No entanto, por trás das paredes de sua casa, ela enfrenta um pesadelo constante. A cada dia, Liora luta para esconder os traumas e abusos que a...