O silêncio reinava absoluto dentro daquela casa, e assim que abro a porta, minha suspeita se confirma: "Não tem ninguém em casa". Um alívio imediato percorre meu corpo, mas logo é substituído pela pressa.
Tranco a porta rapidamente e ando a passos rápidos até o quarto, onde jogo minha mochila em um canto qualquer. Sinto uma onda de ansiedade apertar o peito, mas ignoro. "Rápido, antes que eles voltem", penso enquanto prendo o cabelo em um coque bagunçado.
Pego a vassoura na porta do banheiro. A luz forte do início da tarde revelava o quanto a poeira havia se acumulado. Cada movimento meu fazia partículas dançarem pelo ar, me fazendo coçar o nariz. Ligo a televisão no canal sete, o único que costumava abafar o desconforto, e começo a varrer. Poeira aqui, fios de barbante ali. "Não posso deixar nada fora do lugar".
Abro as cortinas para deixar o ar entrar, fecho as portas para não deixar rastros. Tudo precisava estar impecável em menos de duas horas. Qualquer descuido... não posso dar margem para erros.
Depois de um tempo, noto que o cheiro antes sufocante da poeira havia sido substituído pelo aroma suave de eucalipto. Os sofás pretos da sala estavam livres de fiapos, e as camas, sem o odor incômodo de suor. "Tudo perfeito", penso, mas o aperto no peito me lembra que a perfeição nunca é suficiente.
De repente, sou arrancada do meu devaneio por batidas desesperadas na porta, que ecoam pela casa.
— Liora! — ele grita do lado de fora. — Abre aqui!
O coração dispara. Sem dizer nada, caminho apressada até a porta. A chave gira, e o homem entra apressado, com o rosto carregado de tensão. Tento decifrar o motivo de sua irritação, mas sei que qualquer pergunta será inútil.
—Onde está a mãe? — pergunto, tentando quebrar o silêncio, mas sem olhar diretamente para ele, com medo de provocar algo.
— Está vindo por aí — responde de forma brusca, sem sequer me encarar. — Fez o almoço?
Sinto um nó se formar na garganta.
— Não... acabei de chegar — murmuro, com a voz mais baixa do que pretendia, já antecipando a reação que viria.
O silêncio que se segue é pior que qualquer grito. Ele me encara com uma mistura de frustração e desaprovação, como se o simples fato de eu não ter adivinhado suas expectativas fosse uma falha imperdoável. Queria explicar, me defender, mas as palavras ficam presas na garganta. Só consigo sentir o olhar pesado dele que parece me esmagar.
Ele não diz mais nada. Seu olhar, no entanto, fala por ele, carregado de ira contida. Desvia o rosto e segue para o corredor, deixando-me com o peso de sua insatisfação.
Logo em seguida, minha mãe entra pela porta com algumas sacolas. Seus passos são apressados, mas sua expressão não revela nada. Ela despeja o conteúdo das sacolas na mesa da cozinha: frutas, verduras, e uma lasanha congelada. O cheiro industrializado de comida me traz um amargo na boca.
— Só colocar no forno e fazer arroz — ela diz, sem qualquer emoção, como se fosse mais uma obrigação rotineira.
Ela se dirige ao quarto, murmurando algo que não consigo entender. "O que foi que fiz de errado desta vez?", penso, sentindo o estômago revirar. O tempo parece se arrastar enquanto encaro as sacolas. O almoço é rápido de fazer... é realmente tão difícil esperar alguns minutos?
O silêncio volta a tomar conta da casa, mas não é mais o alívio que senti ao chegar. É opressivo, sufocante, me fazendo sentir como se estivesse em dívida por algo que sequer entendo. De repente o volume da tv na sala se torna incomodo, qual a necessidade de aumentar?
Vou até meu quarto e coloco meus fones de ouvido, ajustando o volume conforme minha capacidade. Um audiolivro qualquer toca enquanto começo o preparo do almoço. Alho, gordura e sal, tudo o que é preciso para fazer um arroz soltinho e maravilhoso.
Naquele momento me sinto em paz, o latejar de minha cabeça deixa de existir quando o conflito da história se inicia e o forno aquece o suficiente para colocar a lasanha. Se existe algo que eu amo é pode cozinhar, ainda mais quando consigo misturar histórias a este momento. Porém como nem tudo são flores o momento de alegria volta ao caos quando sou trazida de volta novamente a realidade.
— LIORA! — escuto o grito abafado seguido por passos apressados pelo som dos fones. — Eu tô te chamando a um tempão!
— Desculpa, eu não escutei — tiro um dos fones, o deixando em cima da mesa.
— Vai acabar ficando surda escutando música nessa altura — ela diz, abrindo a geladeira e pegando uma garrafa de água.
Não iria retrucar, não queria responder, apenas abaixo minha cabeça sem dizer nada, retrucar neste momento seria a pior coisa que poderia fazer.
— Não vai falar nada? — ela continua, apenas querendo iniciar uma briga. — Tá bom então.
Seus passos apressados e irritados voltam para a sala. Devia dar o que ela queria? Não, não mesmo. Não sabia o que tinha acontecido com os dois hoje para chegarem tão irritados, e nem queria saber.
Em menos de meia hora o almoço estava pronto. Porém minhas "obrigações" com certeza não haviam acabado. Pego dois pratos e arrumo a comida nos dois: arroz enformado e uma fatia de lasanha bem cortada ao lado. Fiz um suco de limão para os dois, com a medida certa de açúcar e água.
— Aqui — caminho sem pressa para entregar o primeiro prato para minha mãe. — Fiz um suco também.
Ela agradece, porém este agradecimento não é nada comparado com o que é dito.
— Que suco melado — ela faz uma careta. — Coloca mais água nisso aqui, tá muito forte.
Mordo a pele interior de meus lábios enquanto pego o copo. Assim como pediu, assim fiz. Devolvi o suco para ela e logo após fui entregar o prato do outro, que logo julga assim que passo pela porta.
— Pra que isso? — reclama, se referindo ao arroz enformado.
Não respondo, apenas me viro e saio do quarto. Também não estava com fome, então fui direto para o meu quarto. "A prova, a prova, a prova..." minha mente repete incansavelmente. A prova no fim do ano, o primeiro ano do vestibular. Isso com certeza vai se tornar mais um dos meus demônios ao longo do ano.
Caderno, papel, caneta, tinta. As videoaulas se estendem de minutos a horas. Antes que eu perceba, a noite já caiu, trazendo consigo uma brisa refrescante e algumas folhas que invadem o meu quarto. Não queria fechar a janela, mas a árvore do vizinho estava jogando mais folhas para dentro do que o normal. Fecho a janela e deixo meus fones de lado.
É nesse momento que começo a ouvir os gritos. — Estão brigando. — Os passos pesados se aproximam do meu quarto. Volto rapidamente para a escrivaninha, pego o lápis com urgência. — O desespero. — A porta se abre lentamente. Não vejo quem é, mas posso sentir sua presença. Meu coração aperta enquanto finjo resolver um problema de matemática.
O rangido da porta se fechando parece mais alto do que o normal, e os passos se afastam. A briga recomeça do lado de fora. Nunca imaginei que um dia sentiria medo de alguém que deveria me proteger. Nunca pensei que errar poderia ser tão fatal... Pelo menos, não para aquele a quem chamo de pai.
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Talvez...
ChickLitLiora aparenta ter uma vida normal e bem-sucedida, além de aparentar ser perfeita desde seu nascimento. No entanto, por trás das paredes de sua casa, ela enfrenta um pesadelo constante. A cada dia, Liora luta para esconder os traumas e abusos que a...