Desço do ônibus e começo a cruzar uma parte da cidade. Ainda são duas e meia, então tenho tempo o suficiente para chegar lá. Entre esbarrões e quase tombos, finalmente chego à frente do prédio.Não conheço o porteiro, não tenho intimidade com ele, e por isso não sinto obrigação de falar nada. Vou direto ao elevador. Nono andar. Quando a porta está para fechar, uma mão interrompe o sensor e impede que ela se feche.
Um senhor entra junto comigo e aperta o botão do décimo terceiro andar. Não gosto de pegar elevador com outras pessoas, especialmente quando a pessoa é um senhor que me olha de cima a baixo, de canto de olho.
Isso é desconfortável.
Dou graças a Deus quando a porta se abre. Saio quase correndo do elevador e sigo até a porta do consultório. Aperto a campainha, e logo a assistente aparece para me receber.
— Espera só um minutinho que ela já vai te atender — diz, sorrindo, antes de voltar para a sala da dentista. Pelo som das risadas, já sei. Ukyo está aqui.
— Ok, até semana que vem — ele se despede, saindo do consultório com um sorriso no rosto, mas para ao me ver. — Liora! Você por aqui?
— Nossa, quanta surpresa — respondo com a expressão fechada.
— Não seja assim, só estou tentando te fazer rir.
— Não funcionou. — Levanto-me, já sabendo que logo me chamariam.
— Qual cor você vai escolher dessa vez?
— Qual você colocou?
— Preto.
— Então vou colocar preto também.
— Vai ficar me copiando?
— Foi você quem começou com isso, lembra?
— Liora, vamos? — a assistente me chama da porta.
Caminho até a sala, deixando Ukyo para trás. No início, ele não sabia como puxar conversa, então inventou essa história de colocar a mesma cor de borracha no aparelho que eu.
Quando percebi o que ele estava fazendo, comecei a sair do consultório sem sorrir, só para ver sua reação. Ele sempre ficava confuso. A partir disso, passei a fazer o mesmo que ele. Parecíamos duas crianças. No fundo, era engraçado.
Um dia, ele pediu desculpas, achando que eu tinha me sentido incomodada com aquilo. E, desde então, continuamos assim.
— Vê se tem algo incomodando — a dentista posiciona um espelho para que eu possa conferir.
— Não, tudo certo. — Levanto-me e vou pagar a consulta.
— Mesmo dia, mês que vem? — pergunta a assistente.
— E mesmo horário também — respondo, entregando o dinheiro certinho.
— Ótimo. Vou te mandar uma mensagem para confirmar.
Faço um gesto de agradecimento com a cabeça e saio do consultório. Como sempre, passo no banheiro antes de ir embora para dar uma última olhada nos dentes. Quando saio, dou de cara com Ukyo, andando de um lado para o outro, como se estivesse perdido.
— Vão achar que você escapou de um manicômio se continuar assim — digo, cruzando os braços.
— Eu estava te esperando.
— E por quê? — Aperto o botão do elevador. — Você vai para lá, e eu vou para cá. Caminhos opostos.
Ele segue a direção apontada por minha mão e dá um sorriso cínico. Está aprontando alguma coisa, com certeza.
Nos despedimos com um aperto de mão e um aceno de cabeça. Coloco meus fones e começo a caminhar de volta, tentando ignorar o barulho da cidade.
— O que você está fazendo? — pergunto quando paro no sinal e o vejo ao meu lado.
— Achei que seria uma boa te fazer companhia — diz, com as mãos para trás. — Vou te proteger até você chegar no ponto do ônibus.
— Ukyo, não precisa...
— Precisa sim — ele me interrompe.
Sei que insistir não vai adiantar. Não nos conhecemos há tanto tempo, mas o suficiente para eu saber que ele é teimoso. Como uma criança que faz pirraça quando não consegue o que quer.
Conversamos durante todo o caminho. Descubro que sua cor favorita é amarelo, que ele gosta de sorvete de passas ao rum e que seu gosto para livros é, no mínimo, questionável.
Ele adora romances clichês, o que me dá a chance perfeita para zombar dele. Também joga alguns jogos que eu conheço, mas nunca tive a oportunidade de jogar. E prefere séries a filmes.
— Então é aqui que você pega seu transporte de luxo? — pergunta, apontando para o ponto de ônibus.
— É. — Dou um sorriso de canto. — Obrigada por ter me acompanhado até aqui.
— Não precisa agradecer. Sei que você estava com medo. — Ele ri.
— Medo de quê? Tá maluco?
— Você sabe, Liora.
Ele estende a mão, e eu aperto, encerrando nossa despedida.
Enquanto ele se afasta, não consigo evitar uma sensação de alívio. Algo nele me intriga. Como ele percebeu algo que eu não disse? Será que deixei transparecer?
Não importa. O que importa é que ele percebeu e se preocupou. Não sei exatamente quando meu medo ficou tão visível, mas andar sozinha pelas ruas sempre me deixou paranoica.
E, de certa forma, foi bom saber que temos coisas em comum. Talvez ele realmente se torne um amigo de longa data.
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Talvez...
ChickLitLiora aparenta ter uma vida normal e bem-sucedida, além de aparentar ser perfeita desde seu nascimento. No entanto, por trás das paredes de sua casa, ela enfrenta um pesadelo constante. A cada dia, Liora luta para esconder os traumas e abusos que a...