Capítulo IX

18 0 0
                                    


— Mas você é meu amigo.

Essas palavras ecoaram em minha alma, desfazendo a fortaleza que tanto lutava para manter. Eu havia tentado, de todas as maneiras possíveis, incentivá-la a passar o aniversário com seus amigos da universidade, aqueles que socialmente seriam mais aceitáveis para saídas casuais, pessoas da sua idade. Mas foi essa simples frase — tão direta — que me desarmou por completo. Estela havia me convidado para comemorarmos seu aniversário, algo que claramente ultrapassava os limites que eu vinha tentando preservar.

Era um convite simples e inocente, mas que carregava um peso imenso. Por mais que tentasse resistir, cada vez que olhava para aquele pequeno beicinho que ela fazia involuntariamente ao tentar me convencer, me sentia incapaz de manter firmeza. Ela tinha um ar de menina, quase infantil, naquele momento — seus lábios entreabertos e o olhar que, de tão sincero, desmontava qualquer barreira. Como ela conseguia ser tão pueril, sem sequer perceber o impacto que suas palavras e gestos tinham sobre mim?

Minha luta interna estava se tornando insuportável. Ceder a esse desejo ia muito além de lhe comprar uma barra de chocolate para satisfazer um capricho. Havia algo diferente ali, algo que não podia ignorar. O desejo de estar comigo em um momento tão pessoal como seu aniversário, desafiava todas as fronteiras que eu tentava manter intactas.

Minha respiração ficou presa por um instante. Estela era minha amiga, sim, porém isso... Isso era diferente. Sabia que sua solidão a conduzia a esses pedidos, mas minha própria alma começava a se perder nas linhas sutis entre amizade e algo mais.

Eu precisava ser forte, para garantir minha missão de guiá-la com o coração casto, como sempre acreditei. Precisava ser mais direto, mais firme, com ela. Seu jeito travesso estava me desestabilizando, e eu estava permitindo que isso nos levasse por um caminho perigoso.

— Estela, isso não é apropriado. Você sabe disso. Sou um padre — finalmente abandonei as tentativas de evitar o assunto que tanto me incomodava, deixando as palavras que vinha contornando por muito tempo se manifestarem.

Ela não hesitou. Seu olhar se estreitou, desafiador:

— Padres não podem celebrar a vida de seus fiéis?

— Sim, mas em ocasiões formais, na igreja — respondi, mantendo minha voz controlada, ainda que uma tensão começasse a surgir entre nós.

Ela bufou, contrariada. Seus olhos me encaravam com uma faísca que me fez relutar. Um olhar de denúncia, como se ela soubesse que esses limites entre nós já haviam sido borrados, ainda que eu tentasse desesperadamente mantê-los. Antes que ela pudesse falar mais, antecipei-me, sentindo a necessidade de reafirmar minha posição.

— Tudo o que me propus a fazer ao seu lado, fora da igreja, foi pela sua saúde. Mas preciso que entenda que essa situação está se tornando... — ao invés de "insustentável", busquei por um eufemismo que a poupasse de um golpe direto — difícil.

Eu pretendia convencê-la da necessidade de contar a verdade aos pais sobre sua doença, pois o tratamento avançava, e a urgência de envolvê-los crescia a cada dia. Mas, então, vi a vida esvair-se dos olhos de Estela mais uma vez. Em questão de segundos, sua expressão mudou, e meu coração sofreu junto.

— Por favor... isso é muito importante pra mim. Esse aniversário... ele é muito importante pra mim. — Sua voz tremia levemente, como se, por trás de cada sílaba, estivesse a verdade de que esse poderia ser seu último aniversário. — Cada dia que insisto em viver, com a sua ajuda, tem sido muito importante pra mim.

Suspirei, quase me dando por vencido. Como poderia negar a Estela a minha companhia, única pessoa a quem ela confiara o segredo de sua doença? Como recusar a celebração de sua vida, uma data que, naquele momento, se tornava mais sagrada do que nunca? Estela vinha lutando não apenas contra a leucemia que minava suas forças, mas também contra o cansaço espiritual que ameaçava fazê-la desistir de tudo.

Estrela Guia ✨Onde histórias criam vida. Descubra agora