Saí do clube de natação com o corpo leve, como se a água tivesse levado consigo parte das minhas preocupações. O sol começava a despontar no horizonte, tingindo o céu de um azul suave. Pensei por um instante se deveria passar no mercado para repor alguns itens da despensa. Olhei o celular para ver as horas, quando a mensagem de Estela apareceu na tela, trazendo uma espécie de calor familiar.Ela havia me enviado uma foto de um rascunho. A fachada da igreja, desenhada por seus traços, revelava a profundidade do seu olhar, como se capturasse algo que ia além da simples arquitetura. Fiquei por um momento contemplando o desenho, cada linha, cada sombra. Havia algo na maneira como ela enxergava o mundo que me tocava de forma especial.
Nas últimas semanas, Estela se tornara uma presença constante em meu cotidiano. Nossas conversas fluíam de forma natural. Quando não nos víamos ao fim das missas, trocávamos pequenas reflexões por mensagens sobre músicas, livros ou sobre as provas e projetos da faculdade que a consumiam.
Enquanto caminhava em direção ao mercado, um pensamento insistente voltou a me rondar: "metástase". O diagnóstico dela era como uma sombra que pairava sobre nós, sempre presente, e, embora eu tentasse afastar esse receio, ele retornava com força. Já havia, em nossas conversas, sondado com cautela se ela aceitaria minha companhia para iniciar o tratamento, ao que Estela sempre respondia que pensaria com carinho.
Mas a ausência de seus pais, o fato de ela estar lidando com tudo tão sozinha, me inquietava. Havia algo ali que eu ainda não compreendia, algo que escapava às minhas tentativas de racionalizar. E o tempo... o tempo era um adversário que não poderia ser ignorado. Cada dia que passava sem o tratamento parecia ser uma batalha perdida.
Buscando um alívio para a inquietação que começava a se instalar, tentei me ancorar na certeza de que meu humilde papel era estar ao lado dela. Ajudá-la a enfrentar esse momento, guiar suas dores, mesmo que fosse apenas para oferecer companhia. A fé me dizia que há um propósito em tudo, e esse propósito se revelaria no tempo certo.
Antes de iniciar minhas compras, peguei o celular e, quase por instinto, enviei uma mensagem: "Precisa de algo do mercado?" Era uma forma discreta de dizer que eu estava ali. Uma lembrança silenciosa de que, apesar de tudo, eu estaria sempre por perto.
A resposta dela chegou rápido, e um sorriso inevitável tomou conta de mim ao ler: "Chocolate".
Aquele toque de travessura, apesar de tudo que ela enfrentava, era algo pelo qual eu agradecia a Deus. Era como se, em meio ao peso da doença, Estela tentasse manter uma leveza dentro de si, intacta. E, de certa forma, era essa energia que me cativava cada vez mais.
Enquanto caminhava entre as prateleiras do mercado, escolhi algumas frutas, pensando no quanto ela precisaria de mais força. Tirei uma foto das maçãs e bananas, enviando-a com a mensagem: "Você precisa comer isso, mocinha."
O tom paternal e brincalhão que adotei me soou estranho por um momento. Parecia destoar da minha postura habitual, do padre que, por tanto tempo, mantive à distância de qualquer informalidade. Mas, ao mesmo tempo, era natural entre nós. A amizade que fomos construindo, se enraizava de forma simples, sem alarde.
A paz que tentava trazer para a vida dela estava, de algum modo, se revertendo em mim também. A cada gesto que conscientemente tomava para transformar os dias de Estela em momentos de serenidade, sentia Deus mais próximo, reafirmando que as escolhas que eu fazia, por mais incomuns que fossem, estavam alinhadas com algo maior. Não era uma questão de simples certezas, e começava a entender que os caminhos da fé exigiam flexibilidade, a habilidade de perceber as nuances, as sutis variações que moldam o verdadeiro serviço.
Estela estava me mostrado que, dentro do chamado de servir a Deus, havia espaços novos, lugares que eu nunca havia explorado.
O celular vibrou no bolso da minha calça novamente. Ao desbloquear a tela, li sua mensagem, cheia de uma irreverência costumeira:
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Estrela Guia ✨
Romansa✝️ Ao longo de seus quarenta e poucos anos, Gregório interessava-se apenas por seu ofício de sacerdote. Desde noviço, aprendera a se dedicar à fé e aos rituais da igreja, tornando-se um padre culto e respeitado em sua comunidade. ✨ Mas tudo muda qua...