Capítulo V

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O silêncio dentro do carro era quase insuportável. Estela, ao meu lado, estava quieta, com o olhar perdido na janela, observando a paisagem que passava lá fora. Enquanto dirigia pelas ruas escuras, os pensamentos se acumulavam dentro de mim, feito uma tempestade à espera de romper. A preocupação por ela me consumia, mas misturada a isso, havia também uma culpa silenciosa. Estávamos numa posição que meus votos sacerdotais certamente não previam. Aceitar levá-la para casa, ao invés de insistir no hospital, já parecia ultrapassar limites que eu deveria respeitar. E, ainda assim, simplesmente não podia deixá-la sozinha naquela condição.

Ela tinha desmaiado, a palidez em seu rosto me alarmara profundamente. E, no entanto, ali estava ela, recostada, como se nada de mais houvesse acontecido. E havia algo mais. Algo que me irritava. Sua teimosia, a maneira como se recusara a aceitar qualquer ajuda, quase me tirou do sério.

— Não vai colocar Fleetwood Mac no rádio pra tocar? — a voz de Estela cortou o silêncio.

Olhei para ela, completamente confuso com a pergunta. Havia um quê de travessura em sua expressão, algo que não esperava naquele momento.

Ela revirou os olhos, soltando um suspiro impaciente.

— Foi só uma brincadeira — disse, mas deixou escapar uma risada curta, como se já estivesse acostumada a rir de situações graves feito aquela.

Por mais desconfortável que fosse o momento, sua risada quebrou algo em mim. Um pequeno sorriso se formou em meus lábios, quase involuntariamente.

— Eu não podia deixar de me preocupar com sua saúde, Estela — comentei, tentando manter meu tom comedido.

Ela se virou para mim, os olhos com aquele brilho travesso.

— Você é um padre muito dedicado aos seus fiéis — revidou, com um sorriso que tentava aliviar a tensão entre nós.

Aquelas palavras me atingiram de maneira estranha, me devolvendo à realidade de forma súbita. Sim, eu era apenas um padre. Um guia espiritual, um conselheiro. E não poderia me esquecer disso. O sorriso que eu esboçava desapareceu lentamente, enquanto as palavras dela ecoavam dentro de mim.

Estacionei o carro em frente de onde Estela morava, e por um momento fiquei apenas observando o edifício. Era distante do campus da universidade, afastado da agitação estudantil. O pensamento me pegou de surpresa: ela morava sozinha? E há quanto tempo? Seus pais, onde estariam? Uma súbita curiosidade me atravessou, não apenas pela sua vida cotidiana, mas pela razão de sua solidão. Seria por escolha ou necessidade? O que eles estariam fazendo, em outra cidade, distantes dela?

Antes que pudesse continuar me perdendo em minhas próprias indagações, Estela me interrompeu com sua voz suave, ainda um pouco sem graça.

— Obrigada pela ajuda, padre Gregório. De verdade. — Ela sorriu, vacilando, quase como se também estivesse se desculpando, de maneira indireta, por sua teimosia anterior.

Eu apenas assenti, sem saber ao certo o que responder. Enquanto ela se preparava para sair do carro, uma nova onda de pensamentos me envolveu. Eu deveria acompanhá-la até a porta do apartamento? Certamente, isso era o mínimo que alguém faria em uma situação dessas. Mas, no instante seguinte, me repreendi. Fazer isso passaria os limites, já há muito confusos.

No entanto, a preocupação com sua saúde voltava a martelar na minha mente. E se ela não estivesse bem? E se voltasse a desmaiar uma vez que estivesse sozinha? O que teria acontecido para ela ter quase perdido a consciência duas vezes?

De repente, comecei a observar Estela com outros olhos. Ela sempre fora pálida e muito magra. Embora seus olhos fossem vivos e seu sorriso cada vez mais costumeiro em nossas conversas, havia algo que não se encaixava. A verdade é que Estela não parecia muito saudável, apesar da leveza que tentava demonstrar. Seria esse o motivo de sua angústia constante? Essa impressão cresceu em mim com força, como se, pela primeira vez, eu estivesse enxergando algo mais profundo do que suas palavras ou atitudes queriam revelar.

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