Capítulo 02

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Balanço o meu copo, na esperança de que o gelo dilua o suco gummy carregado de vodka barata. A sala é pequena e praticamente vazia, inundada por uma escuridão profunda, que se fragmenta quando a luz do lado de fora rasteja para dentro através dos projetores. A iluminação dentro da casa é densa, baixa, em contraste com o surto de cores vibrantes que acontece do outro lado. 

Observo os dançarinos na pista improvisada através da porta do jardim, enquanto me afundo ainda mais no sofá, o funk estalando em meus ouvidos como se eu estivesse ao lado da caixa de som. Roberta, minha companheira de copo, desapareceu, ela deve estar fumando com os maconheiros, ou pegando algum deles. Ela disse que ia dar uma volta — código secreto para procurar algo, ou alguém, interessante —, mas ainda não voltou.

Olho para minha própria bebida alaranjada, praticamente no final, em um tom duvidoso por causa da parca iluminação. Quero estar bêbada o suficiente para dançar sem me importar com os olhares, mas o álcool não bate tão forte em quem começou a beber com treze anos. E, sem tomar os antidepressivos, minha resistência é ainda maior.

Minha mãe foi a primeira pessoa a me oferecer. Dois dedinhos de vinho em ocasiões especiais. Quando eu ia para a casa do meu pai, ele vivia confundindo a garrafa de água com a de cachaça. Depois de se separar da minha mãe, a geladeira dele tinha mais bebidas alcoólicas do que comida. Até os remédios pela manhã ele tomava com cerveja. Eu o ligava todas as tardes, assim que saia do cursinho, para contar como tinha sido o dia e lembrá-lo de tomar água. Até que ele parou de atender.

O final da bebida desce rasgando minha garganta, puro gosto de gasolina acumulado no fundo. Apoio a mão no braço do sofá e coloco os calcanhares firmes no chão para ficar de pé, mas um movimento brusco em minha direção me faz parar. Ele vem cambaleante, com um copo tão neon que brilha nas sombras da sala, e o estofamento se afunda no momento em que ele se joga do meu lado.

Minha respiração quase para por um segundo e meu coração dispara como se eu tivesse cheirado cocaína. A presença dele tem um sabor alucinógeno.

Sua cabeça pende para trás, apoiada no encosto, e os cabelos pretos se espalham ao redor do falso couro, em ondas suaves. Sua expressão é serena enquanto mantém os olhos fechados. Eu nunca o olhei tão de perto, isso é insano. Mesmo espiando-o de longe, foram raras as situações em que me senti verdadeiramente próxima a ele. Entre elas, a primeira vez que nos encontramos e quando me aceitou no seu perfil privado do instagram.

Entretenho-me com as fotos que tira, é como ver o mundo através dos seus olhos. As imagens são cheias de tremuras e má iluminação, ângulos que não favorecem em nada a silhueta estritamente delineada de seu maxilar, o rosto alongado e os traços marcantes. Ele gosta de tirar selfies de moletom, com boné, ou com o cabelo tampando os olhos, como se tivesse medo de ser mostrado.

Me assusta saber tanto dele, suas roupas e poses preferidas, até a maneira como tira suas fotos. Eu me sinto um pouco obsessiva, mas não estou fazendo mal a ninguém. É só um crush de faculdade.

— O que tem de tão interessante no meu rosto que você não para de me encarar?

Seus cílios tremem sob a luz roxa que subitamente atravessa a sala, e seus olhos se abrem suavemente, as íris escuras automaticamente sobre mim. O vazio em meu estômago se revira e minha boca seca no mesmo instante.

— Achei que você já tinha morrido. — A resposta na ponta da língua pega até a mim mesma de surpresa, mas tenho medo de que ele me ache uma esquisita, então continuo falando. Preciso preencher o silêncio antes que ele vá embora. — Tava pensando em pegar sua bebida antes de você deixar ela cair no chão.

Ele olha de soslaio para o meu copo vazio e dá mais um gole em seu próprio, estalando a língua quando o gosto não parece agradá-lo tanto assim.

— Gosta de cerveja?

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