Entre o pão e a revolta
A música suave tocava ao fundo enquanto eu colocava as últimas rosas brancas nos vasos de vidro espalhados pelas mesas. O salão estava começando a ganhar vida. Tecidos em tons de creme e dourado cobriam as cadeiras, e guirlandas de eucalipto pendiam dos arcos. Parecia uma cena tirada de um sonho — o tipo de sonho que meu avô sempre dizia que um dia viveríamos todos no céu, com luz, alegria e amor em cada canto. Apesar da ideia inicial da noiva ter sido Era vitoriana, quando minha madrasta, Laurel e eu apresentamos nossos trabalhos, ela logo se apaixonou.Émile amava festas, especialmente casamentos. “É como uma amostra da união que Deus tem com seu povo”, dizia ele, sorrindo, os olhos cheios de significado. As palavras dele ecoaram na minha mente enquanto eu ajustava um arranjo torto sobre a mesa dos noivos. Tudo ainda era muito recente. Fazia dois meses desde que o vovô nos deixou, mas a dor não parecia diminuir. Era como uma onda, que de vez em quando recuava, mas logo voltava, forte e inesperada. Avassaladora.
Voltar ao trabalho foi difícil nas primeiras semanas. Cada detalhe das festas que eu decorava me lembrava dele de alguma forma. Mas ao mesmo tempo, era uma forma de me distrair, de encher os dias com algo além do vazio que ficou desde que ele se foi.
Enquanto ajeitava uma cortina de luzes de LED sobre o palco onde a banda tocaria, meu celular vibrou no bolso do vestido personalizado que todas nós usávamos como uniforme.
— Olá? — atendi, sem reconhecer o número.
— É Naomi? Naomi Fontaine? — perguntou uma voz masculina do outro lado da linha.
— Sim, sou eu.
— Aqui é Edgar Franco, advogado da família. Estou ligando para informar que a leitura do testamento do seu avô será amanhã, às dez da manhã, no escritório particular. Todos os herdeiros estão convocados.
Fiquei em silêncio por um momento, sentindo a garganta apertar. A palavra “testamento” parecia tão fria, tão final. Era como se esse fosse o último elo que ainda me conectava ao vovô.
— Tudo bem... Eu estarei lá — respondi, tentando manter a voz firme.
— Sei que este é um momento difícil. Se precisar de algo, estou à disposição.
— Obrigada, Edgar.
Desliguei e fiquei parada por alguns segundos, o celular ainda na mão. Tentei processar a ideia de que amanhã estaríamos todos reunidos para ouvir as últimas vontades do vovô. Ele era um homem simples, mas suas composições gospel tinham um valor imenso, tanto espiritual quanto financeiro. Algumas das músicas que ele compôs eram cantadas em igrejas do país inteiro, e outras traduzidas para fora.
Meu coração estava acelerado, e precisei me sentar às pressas antes de cair. Um misto de curiosidade e medo. O que será que ele havia deixado para nós que precisasse da presença de Edgar? Será que haveria alguma mensagem final?
— Naomi? Está tudo bem? — perguntou Marina, minha madrasta, me observando com o cenho franzido.
Respirei fundo e guardei o celular no bolso.
— Sim, só uma ligação. Nada demais.
Marina me lançou um olhar desconfiado, mas não insistiu. Sabíamos respeitar o espaço uma da outra, o que fortalecia cada vez mais nosso laço.
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Corações De Primavera - Série Estação de Recomeços
EspiritualSinopse: Desde a infância, Naomi aprendeu a lidar com a dor do abandono. Sua mãe a deixou, mas em meio à solidão, ela encontrou consolo nos braços de Deus, transformando a fé em sua âncora. Com o apoio de seu avô, Clara construiu uma vida cheia de...