•Capítulo 10•

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Relações e atritos

A reunião da igreja foi ótima, fiquei impressionada com o entusiasmo de Vicente e Carina. Vicente, principalmente, parecia estar cheio de perguntas, querendo saber mais sobre os valores que nós vivíamos e como ele poderia se envolver mais na comunidade. Carina não conseguia esconder o sorriso; pela primeira vez desde que fugimos da briga, mais cedo, ela conseguiu se manter coerente em assuntos que conversávamos, com leveza e alegria. Diogo estava sério, após o dia que passamos juntos, nós quatro, percebi que esse era o normal dele. Ele sempre se mantinha silencioso e observador, não entregando mais do que o suficiente. Ainda assim, eu via seus olhares para as crianças, quando Carina pulava no auge das músicas animadas, e Vicente corria de um lado para o outro na gincana dos pequenos adoradores, ele entregava o brilho de felicidade pelos irmãos, e eu sabia que era fiel e verdadeiro.

O dia foi abençoado. E estávamos prontos para finalizar a noite com tranquilidade, quando, ao chegar em casa, encontramos  Suzanna sentada no mesmo sofá que estava chorando mais cedo. O olhar distante, e uma taça de vinho na mão. Eu não sabia como vinho havia entrado naquela casa, mas sabia que precisava falar com ela.

  Até o dia de hoje, todas as tentativas de iniciar uma conversa se transformaram em uma barreira de ressentimento e silêncio entre nós duas. Não sou fácil, e não pretendo me tornar, mas, o que quer que aquilo fosse, precisava acabar. Hoje.

— Você parece feliz...— me surpreendi quando ela disse, sem desviar os olhos da janela.

— As crianças gostaram da igreja, — respondi, cautelosa. E após minutos sem resposta, fiz a coisa mais tola que poderia fazer. — Talvez, você pudesse ir algum dia também.

Minha mãe soltou uma risada suave, mas amarga.

— Naomi, eu não vou mais à igreja. Achei que isso já estava claro.

— Está, sim. — segui sua a taça de vinho em sua mão. — Mas, por quê? — perguntei, tentando manter a calma. — O que mudou, Suzanna? Você sempre foi tão... devota. Ou talvez não fosse você a mulher que mais me incentivava a me envolver, talvez seja uma ilusão que minha mente tenha criado.

Suzanna finalmente olhou para mim, seus olhos cansados e cheios de uma tristeza que eu não esperava.

— Muita coisa aconteceu, Naomi. Coisas que você talvez nunca entenda. Eu não sou mais a mesma pessoa que era quando te deixei. A fé... simplesmente não faz mais sentido pra mim. E você não deveria julgar alguém se não sabe metade da história. — eu não deveria julgar, é verdade. Mas saber é meu direito.

  Senti um nó se formar em minha garganta. Eu poderia dizer tudo que eu estava pensando, sem parecer uma transtornada? Ela tinha ido embora e, com isso, levou não só sua presença física, mas também a espiritual que um dia nos uniu. E agora, ao mesmo tempo em que eu lutava contra minha própria dor, eu  tentava abrir espaço para os filhos dela, que pareciam buscar algo que não encontravam na própria mãe.

— Eu só queria que você tentasse, — murmurei, com os olhos também cansados. — Se não quiser fazer isso por si, faça por Vinci e Carina. — então apelei. — Se esse incentivo não for o suficiente, faça por sua primeira filha, a garotinha de seis anos que ficou indefesa e sozinha. Seja uma mãe melhor para eles do que foi para mim.

Ela não respondeu. Apenas voltou seu olhar para a janela, como se as palavras fossem distantes, inalcançáveis. E naquele momento, percebi que talvez não pudesse mudar Suzanna, minha mãe, mas podia tentar abrir seu coração para os outros. Carina e Vicente, de alguma forma, representavam uma nova chance, um laço inesperado que poderia trazer uma nova forma de esperança.

Então, me afastei do hall. Subi as escadas fazendo uma breve oração silenciosa. Não sabia o que o futuro lhe reservava, mas eu tentaria, por mais difícil que fosse, abrir espaço para a reconciliação, afinal, Deus nos incentiva a perdoar os outros para sermos perdoados — mesmo que essa reconciliação viesse de um jeito inesperado para nós duas.


****


O sábado amanheceu surpreendentemente quente, o sol parecia brilhar com uma intensidade insana. Nas últimas semanas tivemos muito trabalho, decoramos festas por todo o estado e alguns deles, exigiram todo o nosso tempo. Então, passei o último mês na casa do meu pai.

Hoje era sábado, aniversário de casamento de Marina e papai. Enquanto Laurel dirigia em direção a cidade vizinha, Vernox, tentando manter a atenção na estrada, era impossível não rir com o diálogo dos aniversariantes, no banco detrás. Era uma discordância sobre um passeio no shopping, que fizemos após uma manhã agitada, decorando uma igreja católica, para um batizado. Papai estava dizendo, com uma expressão frustrada, que guardou todas as sacolas, sem reclamar; enquanto Marina, com um sorriso, justificava o gasto como uma advogada experiente. Laurel e eu, sentadas na frente, apenas observávamos a conversa com risadas contidas.

— Sério mesmo? Foram uns quatro pares de sapatos. Eu achava que você já tinha uns... sei lá... cinquenta pares! — papai não disse em tom de acusação, só estava tentando entender o motivo.

—  Tenho só uns trinta. — Marina disse, simplesmente . — E além do mais, todos os quatro eram irresistíveis! Estavam com 50% de desconto. Se eu não comprasse, seria uma perda de oportunidade, e a oportunidade, meu querido marido, é única. — então, riu descontrolada.

Com um tom sarcástico, papai rebateu.

— Ah, claro! Porque saltos dourados são sinônimos de “oportunidade”, e gastar uma fortuna no shopping e algo lógico, não é? — Laurel quase freou o carro, engasgando com os dois. — Gastar para não perder dinheiro, esse é o dilema.

Marina cruzou os braços.

— Pelo menos, eu uso os sapatos que não saem da moda. Diferente das suas sandálias de Jesus, que Deus me perdoe. — Uma carranca horrorosa surgiu no rosto de papai.

— Isso não é verdade! — Indagou indignado — Eu comprei novos pares mês passado!

— Mês passado? —  ela arqueou uma sobrancelha. — A última vez que você foi a uma loja de sapatos, As garotas iam se formar no ensino médio!

— Ah, claro que não! Elas compraram vestido de formatura há alguns meses atrás... — papai se defendeu. — E essa nem é a questão! Não preciso de duzentos pares de sapatos, já fico em paz com apenas três.

— Em paz? Você ficou duas horas martelando na minha cabeça sobre estar sem sapatos sociais para as reuniões da empresa aérea.

— Não há defesa para esse fato, papai! Eu me lembro muito bem dessa noite. — Foi Laurel quem disse.

— E o assunto ainda rendeu até mim! Papai despejou suas lamúrias quando foi se despedir de mim, antes do próximo voo. — eu gargalhei.

— Muito engraçado, muito engraçado. Vocês mulheres sempre unidas contra minha pessoa.

— Se você estivesse com a razão, não estariam do meu lado. — provocou.

— É, talvez você tenha razão. — riu desistindo de sua defesa — Acho que preciso providenciar alguns defensores, quem sabe, para daqui a nove meses?

— Pelo amor de Deus, Rômulo! Já estamos velhos para isso. — Marina disse, sorrindo. Pelo que eu vi, a ideia não deixou de agradá-la.

— Aparentemente, estou destinado a sempre perder nas discussões de família. — papai deu suspiros exagerados.

— Ah, quero deixar registrado que adoraria pequenos bebês chorando pela casa. Isso seria um luxo que nunca vivi. — Laurel passou por um quebra mola, antes de chegar ao estacionamento do restaurante.

— Por mim, já podemos pensar na decoração do chá de bebê. — Eu encarei o relógio. — Já estamos sem tempo para planejar a maior festa da família.

— Já vejo que terei que trabalhar dobrado, tenho mulheres bem exigentes. — rimos, todos juntos.


Antes de sairmos do carro, Marina chamou nossa atenção para a fila que estava no fim do estacionamento. Ambos nos olhamos por um momento, e depois caímos na risada, juntos.

— Talvez, esse almoço de aniversário não saia antes das sete da noite! — Papai murmurou abrindo a porta.

A entrada era por ordem de chegada. Era o dia do almoço romântico, e embora fosse uma coisa de casal, várias famílias compareçam a este lugar. O ambiente era lindo e confortável. Era mais uma tradição que mantínhamos há anos, desde que Marina decidiu nos inserir em tudo o que fazia. Sempre aos sábados, sempre no mesmo restaurante. A vida pode ser imprevisível às vezes, mas eu não me importava. Pelo menos ali, com meu pai e minha madrasta, tudo era constante, eu amava isso.

Eu estava em um ponto da minha vida em que já não podia receber muitas surpresas. Especialmente quando se tratava da minha mãe. Já havia deixado de tocar no assunto abandono, porém, eu ainda desejava as respostas das perguntas que sempre tiraram meu sono. E descobri que Suzanna, é mestra em não dar muitas explicações. A ausência dela me marcou mais do que eu gostaria de admitir. E agora, depois de anos, ela havia reaparecido, casada com um homem que eu não conhecia, morando com ele e os três filhos dele — os gêmeos que eu descobri amar e um enteado mais velho, que eu imagino ser  quase da minha idade. Eles formavam uma nova família, uma com a qual eu ainda não sabia como lidar, e que por ordem do destino, ou posso dizer, meu avô. Estão morando na mesma casa que eu.

Suspirei profundamente antes de sair do carro. Eu sabia que meu pai já estava lá na fila, com minha madrasta. Eles se esqueceram que eu fiz as reservas?
Caminhei em direção as pessoas, ajustando a bolsa no ombro, tentando não pensar muito na sensação de oitenta graus que fazia. Meu vestido esvoaçava de acordo com meus passos, e eu apenas desejava uma buchinha para prender minhas tranças em um rabo de cavalo. Laurel também usava um vestido, porém, mais reto.

  A fila estava abarrotada de pessoas. Pessoas falando, crianças correndo entre os adultos, o cheiro de churrasco vindo até nossas narinas e voltando para salão. A fila de espera estava maior que o habitual, mas como tínhamos reserva, caminhei diretamente até a hostess para confirmar nossa mesa. Enquanto esperava, dei uma olhada ao redor. O restaurante estava mais luxuoso do que me lembrava. O ambiente é  sofisticado e moderno, com grandes janelas de vidro que chegam até o segundo andar, e oferecem uma vista espetacular para o exterior, destacando os  edifícios de arquitetura vitoriana, iluminados pelos raios de sol, embora Vernox não seja uma grande cidade, foram construídos vários estabelecimentos e comércios, que poderiam substituir qualquer ponto turístico.

O interior mobiliado com mesas de mármore redondas, cuidadosamente organizadas, com taças de vinho, pratos e talheres dispostos de forma elegante. As cadeiras de veludo bege adicionaram um toque de conforto e classe, enquanto pequenas lâmpadas de mesa douradas proporcionaram uma iluminação suave e íntima, perfeita para o tema do dia.

O restaurante tem dois andares. No segundo andar, há um mezanino que oferece uma vista panorâmica tanto do interior do restaurante quanto da paisagem externa. As mesas no andar superior são igualmente bem decoradas, mas o ambiente é um pouco mais reservado, com uma sensação mais íntima. As escadas que conectam os andares têm corrimãos dourados e pisos de madeira escura, complementando a atmosfera sofisticada e luxuosa do local.

Para o tema, que é “Um dia apaixonado”, o restaurante foi decorado com rosas vermelhas em todos os cantos. Pétalas de rosa são espalhadas sobre as mesas de mármore e pequenos buquês adornam cada mesa, junto às velas acesas, criando uma atmosfera romântica. Corações pendurados no teto e luzes vermelhas suaves completam o clima de amor no ar. Balões em formato de coração flutuam delicadamente ao redor do restaurante, e os garçons vestem detalhes em vermelho, contribuindo para a temática romântica da noite.

Entre um conjunto de quatro mesas, há uma árvore relativamente grande, dentro de um vaso que parece genuinamente pesado. As árvores são macieiras, que estão com os troncos pintados de várias cores. Rosa, Vermelho, azul e Branco, cada uma com desenhos de múltiplas formas. O espaço estava perfeito para casais que buscam uma noite especial em um ambiente requintado e cativante. Ou, famílias que procuram vivenciar mais um ano de tradição, como era o meu caso.

A hostess nos direcionou ao andar de cima. Liderei a entrada, seguida por Laurel, Marina e por último, papai. Marina usava um vestido elegante, longo e marfim, com as pérolas que papai lhe dera de presente mais cedo. Já papai, estava simples. Uma camisa social branca e uma calça preta, assim como devia se vestir nos voos.
Antes de nos sentarmos, Eddie Franco, veio ao nosso encontro. Ele é o dono do estabelecimento, e filho mais novo de Edgar Franco, o advogado da família. Ele cumprimentou primeiro a mim, com um beijo leve na bochecha, e seguiu para cumprimentar ao outros. Havia um homem parado, observando a interação do proprietário conosco, era bem familiar. A medida que Eddie puxava assuntos aleatórios e ria com papai, minha memória buscava a lembrança, o homem parado tinha os mesmos cabelos platinados que alguém que eu já vira.

  E foi aí que eu entendi. Era Celso. O novo marido de minha mãe. Então, eu a vi. Minha mãe estava logo à frente, de pé, junto ao corrimão do mezanino. As crianças estavam com as caras na barra e apontando para algo lá embaixo.
  Ao lado dela estava seu enteado, Diogo, que mexia no celular com a expressão séria, a mesma que ficou dentro do carro. O tempo pareceu congelar por um momento. Meu estômago revirou.

Ela também me viu. Talvez tenha me visto primeiro. Seus olhos se encontraram com os meus, e pude notar um breve lampejo de surpresa. Ela não esperava me ver ali, assim como eu não esperava vê-la. O marido dela direcionou algo para mim, mas eu mantive os olhos nela.

Quando ela apontou com a cabeça para Celso, não consegui desobedecer. Ele queria falar comigo?

Eu sabia que meu pai e minha madrasta estavam do meu lado, sem perceberem o que estava acontecendo ali. O restaurante, provavelmente estava cheio de gente, não queria nenhum alvoroço, precisava de um canto tranquilo.

O marido de minha mãe aguardava impaciente. Mas antes que eu pudesse ir até o banheiro, a voz de Celso cortou o ar.

— Olá! Que coincidência! — disse ele, com um sorriso largo, vindo em minha direção, eu quis socá-lo. — Parece que o destino quis que nos encontrássemos hoje.

Minha mãe não sorriu, ela estava  hesitante, como se também estivesse lutando para decidir o que fazer com aquela coincidência. Fiquei parada, sem saber o que dizer, enquanto ele se aproximava ainda mais.

— Estamos aqui para comemorar o aniversário do Diogo — ele apontou para o filho, que ergueu os olhos do celular apenas o tempo suficiente para lançar um olhar irritado na minha direção. — O que acha de juntarmos as mesas? Podemos fazer uma grande reunião de família, não é?

Meu coração acelerou. A ideia de dividir o mesmo espaço com duas famílias que mal se conheciam — uma das quais eu mesma ainda não sabia como pertencia — parecia sufocante. Mas eu não queria ser indelicada. O marido da minha mãe estava tentando ser amigável, ou apenas inconveniente? Eu não queria criar mais tensão do que já existia, e nem que os gêmeos pensassem que eu não os queria perto.

Antes que eu pudesse responder, minha mãe já estava a caminho, ela deu um passo à frente e disse:

— Se você estiver confortável com isso, claro... —  a voz suave, quase suplicante, balançando de leve a cabeça com um “não”, não dito.

Eu a olhei nos olhos, tentando decifrar o que se passava dentro dela. Eu queria gritar que não, que não estava confortável, que aquilo tudo era absurdo. Mas então me lembrei das últimas conversas que tivemos, das tentativas dela de se reaproximar, de criar algum tipo de laço. Será que essa era mais uma dessas tentativas? Uma chance de consertar algo?

— Claro — murmurei, embora a palavra tenha saído com mais dificuldade do que eu esperava. — Não vejo problema.

Meu pai e minha madrasta chegaram logo depois, e a surpresa foi palpável nos rostos deles ao verem minha mãe e sua nova família. A reação do meu pai foi de cautela, mas ele concordou com a sugestão de juntar as mesas, provavelmente preocupado em me deixar desconfortável se recusasse.

Em questão de minutos, o restaurante rearranjou as mesas para acomodar todos nós. Uma mesa quadrada, grande o suficiente. Dez lugares no total, oito poltronas nos meios e duas em cada lateral. Eu me sentei na primeira cadeira da ponta, como se eu fosse a anfitriã do lugar, Vicente estava a minha direita e Laurel a minha esquerda, depois Marina e papai.

Do outro lado, minha mãe também se sentou na ponta, com Celso, Carina e o enteado, dos lados direito, chegando até Vicente. Os gêmeos, já estavam impacientes, jogando pedaços de pão um no outro. Diogo, do lado de Carina, a repreendia baixinho antes de retornar ao celular, e se tornar alheio ao que a tensão que estava na mesa.

No início, tudo foi uma estranha mistura de formalidade e tensão, interrompida por tentativas forçadas de conversa. O marido da minha mãe se esforçava para criar algum tipo de harmonia, falando sobre coisas triviais como o clima e o trânsito, enquanto os gêmeos tagarelavam sobre desenhos animados. Meu pai, por sua vez, respondia educadamente, mas eu podia ver o desconforto em seus olhos. Ele nunca lidou bem com a presença da minha mãe desde o divórcio.

Suzanna? Ela estava lá, tentando parecer à vontade, mas eu a conhecia o suficiente para ver que também estava desconfortável. Nossos olhares se encontraram algumas vezes, e a sensação de que havia tanto não dito entre nós era sufocante. Mas eu não sabia por onde começar. Como é que se começa a lidar com uma mãe que te abandonou e, anos depois, surge com uma nova vida? Eu conversava alegremente com minha madrasta, que foi minha mãe.

Quando finalmente chegou os pedidos, o clima parecia menos tenso, embora ainda longe de relaxado. As conversas se tornaram mais fáceis, pelo menos na superfície. Mas, dentro de mim, havia uma tempestade. Eu estava ali, no meio de duas famílias, tentando entender quem eu era nesse emaranhado de relações. No final das contas, talvez aquela coincidência de encontros não fosse apenas um acaso do destino, mas uma chance de encarar aquilo que eu vinha evitando há anos.

Quando o almoço terminou, ainda tinha a sobremesa. Eu não aguentava mais encarar o marido de minha mãe, ele precisava calar a boca. Enquanto eu debatia se devia lançar um saleiro em Celso, senti um belisco leve.

— Apesar de eu amar uma novela dramática, esse clima hostil já está afetando minha sanidade. — Laurel sussurrou. — Que tal jogarmos o jogo de sempre?

Eu apenas assenti, essa coisa de ex-casais seguirem suas vidas e manterem uma relação é piada. Conheço alguns casos que realmente funcionaram, mas, estavam longe do caso dos meus pais.

Prestei atenção na voz doce de Laurel em meio a tantas vezes austeras.

— Tá vendo aquele cara com a mochila vermelha? — perguntou, me cutucando com o ombro. Estamos sentadas lado a lado, observando o fluxo de pessoas entrarem aos poucos .

O barulho das conversas se misturam com as vozes da dupla sertaneja que se apresenta no mini palco no centro do restaurante. Podíamos perceber que algumas músicas eram improvisadas, ainda assim, muito boas.

— Hm… Aquele ali perto da árvore vermelha com corações azuis? — apontei disfarçadamente com o queixo.

— Esse mesmo! — Confirmou, animada. — Ele está tentando reatar com a namorada, tenho certeza. Deve ser programador. Sabe aquele tipo que usa fones enormes, trabalha remoto e toma café gelado porque esquece na mesa? — ri, pela ousadia de Laurel. — Ela, provavelmente, está no banheiro, pensando em como foi aceitar um almoço romântico com um cara que nem sabe entregar um buquê de rosas olhando nos olhos.

— Você se superou, amiga. Só me resta concordar com esse enredo de comédia romântica.


— Exato! — ela riu, empolgada. — E agora ele deve estar bolando o plano de sua vida, porque é agora ou nunca. Tudo ou nada. Ou conquista de novo a namorada, ou vai ficar sozinho para sempre.

Marina nos encara de soslaio e sorri. Ela nos conhece como a palma da mão, e sabe que esse é nosso jogo secreto. Inventar histórias para pessoas aleatórias e, depois, uma desafiar a outra a encontrar aquela pessoa no meio do caos. Particularmente, sempre considerei Laurel mais criativa que eu. Porém, eu sempre fui esperta.

— E se a gente tentar achar um “livreiro frustrado” no meio desse mar de gente? — Ela pergunta com um brilho nos olhos.

— Duvido você achar — provoco. — Embora, qualquer pessoa solteira em um jantar romântico para casais, possa ser considerada um “livreiro frustrado”. — eu disse, piscando para ela.

— Inclusive nós duas, já entendi. — Laurel fez um beicinho.

Mas então, ela se levanta sem aviso e começa a caminhar com a confiança de quem já sabe exatamente onde está indo. Eu, sem ter tempo para raciocinar, corro disfarçadamente atrás dela, rindo. Na verdade, a alcanço com passos apressados.


— Você nem olhou direito! Como vai saber? — reclamo, quando igualo nossos corpos.


Me ignorando, Laurel segue até o bar, e se senta. Há mais três banquetas vazias do lado esquerdo, onde me sento nervosa, olho ao redor, sem entender.


— Ali — diz baixinho, apontando para um rapaz de óculos quadrado, sentado em uma mesa redonda, de apenas dois lugares. Vestido com uma camisa cinza simples, esguio e vermelho, a mochila cor de lama, jogada aos pés.

O cara está absorto no laptop que ocupa quase toda a mesa, fones enormes nos ouvidos. O café ao lado dele é grande e pela metade, o gelo quase derretido. O olhar perdido no infinito é um clichê tão óbvio que me faz rir alto.

Laurel se vira e me encara com uma expressão vitoriosa.


— E aí, o que ele tá pensando agora? — suspiro e observo o sujeito mais uma vez. Ele parece tão real quanto nossa ficção.


— Ele está pensando em como seria se ele tivesse a coragem de vender tudo e começar do zero.


Laurel sorri, ajeita os cabelos curtinhos e me puxa pela mão. — Acho que Deus aprovaria se servíssemos de inspiração para alguém, hoje. Concorda?


Mais uma vez, não tive tempo para raciocinar, ela me puxou para frente, deixando para trás mais uma banqueta vazia.





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