•Capítulo 03•

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A última composição


O verão estava quase terminando, e geralmente as últimas semanas eram mais quentes do que as do inicio. Mas, hoje, no funeral do meu avô, o vento estavam tão frio quanto as correntes de outono ou inverno. Quando percebi algumas folhas secas espalhadas pelo chão, percebi que talvez a própria natureza lamentava a despedida. O céu estava menos azul, com algumas nuvens escuras ao longe. Tudo estava pesado, carregado de tristeza, embora o velório tivesse sido alegre e leve, as coisas no cemitério eram diferentes. Havia um silêncio profundo, só interrompido pelo som distante dos passos sobre a grama e o farfalhar das árvores. Eu estava parada, imóvel, de frente para a cova aberta. Não conseguia chorar tanto quando nos últimos dias, minha garganta estava seca e apertada, e o aquele peso no peito parecia ter voltado com tudo.

Olhei para o caixão de madeira escura que repousava ao lado da sepultura. A ideia de que ele estava lá dentro, de que eu nunca mais ouviria sua voz rouca me chamando, era algo que eu ainda não conseguia processar. Vovô sempre esteve lá, sempre. Ele me criou quando papai estava preso por meses nos voos. Quando minha mãe foi embora, ele foi o único que estendeu as mãos para papai e ofereceu amparo. O único que nos deu amor e segurança, e que acreditou em mim quando eu mesma pensei que não era o suficiente para manter ninguém perto.

As pessoas começaram a se aproximar da sepultura. O bispo disse algumas palavras bonitas, de acordo com a bíblia que nós tínhamos em mãos, mas sua voz estava como um áudio longe,  distante. Eu estava na casa das nossas memórias. Meus olhos se fixaram no caixão, e o tempo pareceu me presentear com um momento a sós.

Mas então, em meio a todos os rostos familiares, vi algo que fez meu coração acender, e eu não sabia se era raiva, ou outro sentimento. Ela estava lá. Minha mãe. Depois de catorze anos sem um sinal, sem uma palavra, e uma breve aparição no velório, ela estava ali, de pé, a bons metros de distância, com o rosto molhado de lágrimas. Ela olhava para o caixão com um misto de dor e arrependimento. Por um instante, nossos olhares se cruzaram, e ela desviou os olhos rapidamente, como se a vergonha a esmagasse. E eu adorei cada gota de lágrima.

Uma onda de ira estava crescendo dentro de mim, mas a voz do meu avô ecoou na minha mente: “A raiva é um fardo pesado, minha neta. Mais pesado do que o amor.” Respirei fundo, e aos poucos, aquilo que não era de mim foi se dissolvendo. Não havia espaço para isso ali, não naquele momento. Não no funeral do homem que me ensinou o que era ser gentil, generosa e paciente.

Então, fiz o que sabia que ele gostaria. Caminhei até o centro, perto do caixão, e puxei o violão que estava ao meu lado. Era o violão do vovô, o mesmo que ele tocava todas as noites antes de eu dormir, o mesmo que usou para me ensinar as primeiras notas quando eu era apenas uma menina, o mesmo instrumento que abençoava tantos ouvidos nas reuniões da congregação. Desta vez, eu tocaria para ele.

O murmúrio das pessoas ao redor cessou, e todos os olhares se voltaram para mim. Minhas mãos tremiam tanto, mas eu as posicionei nas cordas com cuidado. Era uma canção que ele escreveu para mim. Uma canção que ele nunca quis mostrar a ninguém, dizendo que era só nossa. “Guarde isso para quando eu me for, minha neta”, ele disse uma vez, com um sorriso triste. E acredito que tenha presenteado cada neto com algo de igual valor. Só que eu nunca pensei que teria que mostrá-la primeiro, e nem tão cedo.

Comecei a dedilhar as notas suavemente, e a melodia simples encheu o ar. Meus olhos estavam fixos no caixão enquanto eu cantava, quase sussurrando as palavras que ele havia escrito, e modificando algumas palavras.

“Nos seus olhos vejo uma estrela brilhar,
Teu sorriso vem como uma onda do mar.
Mesmo quando eu for, não vou partir,
Em cada nota, em cada momento familiar, eu vou estar aqui.”

A voz saiu mais fraca do que eu esperava, mas à medida que a música avançava, algo dentro de mim crescia. Cantar aquela canção para ele era a minha última maneira de dizer adeus. A dor ainda estava ali, esmagadora, mas a música... a música trazia algo de volta. Algo que ele me ensinou a valorizar: a vida que ele viveu. E a vida plena que eu gostaria de viver.

As pessoas ao meu redor começaram a chorar. Não era um choro silencioso; era um choro profundo, de saudade, de amor, de respeito. Sabiam o homem que o vovô tinha sido, sabiam da bondade infinita que ele espalhava por onde passava. E agora, eu estava ali, segurando o violão que foi seu, cantando as palavras que ele havia deixado como legado.

Enquanto a última nota se dissipava no ar, ergui os olhos e, mais uma vez, e vi minha mãe. Ela estava com as mãos cobrindo o rosto, soluçando de maneira descontrolada. Havia um desespero em seus olhos que eu nunca tinha visto antes. Ela chorava por ele, pelo pai que ela havia abandonado junto comigo? Ou chorava por si mesma, por tudo o que havia perdido?

Uma parte de mim queria sentir pena, outra parte queria gritar. Mas naquele momento, tudo o que eu conseguia sentir era um vazio enorme, misturado com a saudade do vovô. Ele teria perdoado, eu sabia disso. Ele teria acolhido minha mãe de braços abertos, sem hesitar. Mas eu não era como ele. Não ainda. Quando terminei minha última apresentação, o bispo me deu a oportunidade de falar algumas palavras.

—  Boa tarde a todos, Hoje, com o coração apertado, me despeço de um dos homens que considero um dos heróis do mundo: Émile Fontaine, meu avô. Ele foi um amigo, um conselheiro e um exemplo vivo do amor de Deus.

Algumas pessoas murmuram concordâncias e acenos de cabeça, enquanto outras, as da família, choram.

— Meu avô era um homem de fé inabalável. A cada dia, ele nos ensinava, com palavras e principalmente com ações, o que significava confiar em Deus em todas as circunstâncias. Sei que ele enfrentou momentos difíceis na vida, como todos nós, mas nunca o vi se queixar. Pelo contrário, ele sempre encontrava uma razão para agradecer. Mesmo nas dores, ele dizia: “Deus sabe o que faz.” Essa confiança é como uma lanterna, que ilumina minha vida, e pretendo sempre usar sempre nos dias escuros.

Em alguma parte do discurso, o coral da congresso começou a cantar, novamente o hino favorito de vovô. Avistei papai no meio das cabeças e continuei para encerrar.

— Pare Émile Fontaine, a família era seu tesouro mais precioso, e ele fez questão de que soubéssemos o valor de estarmos juntos. Agora, ele não se encontra entre nós, acredito que já está na presença de Deus, como ele sempre acreditou que estaria. Segundo a palavra de Deus, em 2 Timóteo 4:7 diz:  “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé.” E isso resume perfeitamente a vida dele. Ele viveu de forma plena e agora descansa nos braços do Pai.

Vovó Thereza, Marina e Laurel se achegaram até a sepultura, cada uma segurando três rosas vermelhas.

— Hoje, não digo adeus ao meu avô com tristeza, mas com gratidão. Gratidão por cada abraço, conselho e cada oração que ele fez por nós. Ele nos deixou um legado de amor e fé que carregaremos para sempre. Descanse em paz, vovô. Sua missão aqui terminou, mas o seu amor e as suas lições continuarão vivos em cada um de nós. E, um dia, nós nos encontraremos novamente.

E quando finalmente terminei, toda a família estava frente o buraco que selaria o corpo de Émile, mas nunca seu espírito.

Dei um último olhar para o caixão enquanto o desciam lentamente para a cova. As flores jogadas sobre ele caíram suavemente, cobrindo-o com uma manta de cores. E então, sem dizer mais nada, coloquei o violão de volta no chão e me afastei. Meus pés estavam pesados, e o caminho de volta parecia interminável.

A vida seguiria sem ele, mas algo dentro de mim havia mudado para sempre. Eu sabia que, de alguma forma, ele continuaria comigo, em cada acorde, em cada melodia, em cada decisão que eu tomasse daqui em diante. Ele havia me deixado não apenas uma canção, mas uma parte de si mesmo. E era com isso que eu seguiria.

Enquanto me afastava, pude ouvir o som da terra sendo jogada sobre o caixão. O som da despedida final. Fechei os olhos e respirei fundo segurando as lágrimas que estavam inundando minha visão. O funeral havia terminado, mas a saudade acabara de começar.


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