•Capítulo 05•

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Memórias e um “quê” de loucura

Ao chegar em casa — na casa de  vovó Thereza — tomei uma ducha rápida e me joguei no sofá. A casa de vovô era grande demais, tinha vinte e dois cômodos, bem amplos e arejados. Quando vivo, vovô dividiu os cômodos para casa membro da família.

Vovó Thereza preferia os cômodos debaixo, pois eram de fácil acesso para ela, sua deficiência na perna restringia alguns movimentos chave. Então, na época, Rômulo, meu pai e Suzana ficaram com quatro cômodos no andar de cima.

Embora meu avô tivesse mais dois filhos homens, eles se casaram e construíram uma vida em uma cidade próxima. Apenas meus primos vieram morar aqui, devido ao projeto da congregação. Quando Marina chegou em nossas vidas, ela se recusou a morar aqui, com razão. Então, papai se mudou para a casa dela, que fica a poucos metros daqui.

Quando completei dezoito anos, voltei para a casa dos meus avós, com o consentimento do meu pai, não que fosse um fator extremamente necessário, mas era importante para mim.

O silêncio dos cômodos parecia amplificar a saudade. Vovó Thereza estava na congregação, um chá de mulheres. Então eu podia abrir o piano elétrico que ficava no hall da ala B. Passei os dedos pelas teclas, sem realmente tocar nada. Era ali que ele sempre se sentava quando acabava de compor. Aquele espaço parecia tão vazio sem ele.

Peguei um caderno de partituras antigo que ele havia me dado em algum Natal. Na primeira página, estava escrito: “Para Naomi, com amor.” Nas letras dele, um misto de garrancho e amor.

As lágrimas vieram antes que eu pudesse segurá-las. Chorei em silêncio, abraçada ao caderno, tentando aceitar que ele não estaria mais fisicamente ao meu lado, mas que sua música e seu amor viveriam para sempre em mim.

Amanhã, na leitura do testamento, descobriria o que mais ele havia deixado para nós. Mas, de alguma forma, eu já sabia que seu maior legado não estaria contido em nenhum documento. Estava nas melodias que ele espalhou pelo mundo e nos ensinamentos que deixou em nós.

Fechei o caderno e toquei algumas notas no piano, quase sem pensar. Uma melodia simples e suave, que parecia se formar sozinha. Era comum em Saspher, no meio da noite ou madrugada, melodias de todos os tipos serem ouvidas. Aqui todos gostam de música, e nossas músicas são incríveis.

Saspher é uma daquelas cidades que poderiam ser cenários de filmes antigos. Pequena, acolhedora, e com a sensação de que o tempo não passa, ele para, para observar os moradores e suas rotinas tranquilas. Para os forasteiros ou os de cidade grande, talvez não exista muito para se ver. Não temos grandes atrações turísticas, nem eventos chamativos que enchem as ruas de visitantes. Saspher é simples, mas, afinal, no simples também se encontra a beleza.

O centro da cidade é pequeno, com lojas que parecem nunca reformar as fachadas. Desde que me lembro, a padaria da esquina, que passa de geração em geração na família Mendonça, ainda vende as melhores rosquinhas recheadas da região. O cheiro de café fresco e de massa assada sempre inunda a rua toda pelas manhãs, e quase uma lei de estado, os moradores irem tomar um café na padaria, mesmo que seja  rápido. Gosto de caminhar até lá, ouvir as conversas triviais entre os fregueses e ver como, apesar de tudo, as pessoas aqui se conhecem de verdade.

Saspher tem também um lago ao norte, onde as famílias vão aos finais de semana para pescar ou fazer piqueniques. No verão, as crianças correm por toda parte, rindo e jogando balões d’água umas nas outras. O céu aqui era sempre decorado com estrelas, era impressionante, mesmo nas maiores tempestades, pontinhos cintilantes sempre apareciam por detrás das nuvens. A noite, eu amava observar o reflexo do céu no lago, como se fosse um espelho infinito. Gosto de pensar que, em Saspher, é fácil perceber essas pequenas belezas que, em uma cidade grande, seriam apenas coisas normais.

A minha casa — casa dos meus avós — fica em uma das ruas secundárias, longe a bagunça do centro. Diversos pinheiros faziam sombra nas calçadas, pela grossura dos troncos, já eram muito antigas. Me lembro que as flores do jardim da frente de casa, foram plantadas por minha mãe. Ela dizia que as flores são a prova de que Deus nos dá beleza mesmo nas coisas mais simples. Eu sempre achei isso poético, e, de certa forma, a simplicidade de Saspher é um reflexo dessa filosofia. A única filosofia que foi certa vindo da parte dela.

No entanto, de todos os lugares, o que mais importa para mim era é a nossa igreja. A Igreja Batista de Saspher fica no alto de uma pequena colina, com uma vista privilegiada da cidade. De longe, você pode ver o topo da torre com o sino que toca nos domingos, indicando aos irmãos o início do culto. É uma construção simples, de tijolos vermelhos, que foram rebocados e pintados no ano passado, e janelas de vidro colorido, que lembram vitrais de igrejas católicas, mas são ainda mais brilhantes, principalmente quando o sol estava alto. Eu conheço cada canto daquela igreja, desde as salas de aula da escola bíblica até o pequeno auditório onde ensaiamos o coral. Cresci ali. Minha mãe me levava desde que eu era criança, e, com o tempo, o papel da igreja na minha vida foi crescendo também.

Hoje, sou ministra de louvor. Nunca imaginei que esse seria o meu cargo, para ser honesta, eu era a menos apta para tal responsabilidade. Cantar sempre foi algo que eu amava fazer, mas sempre na privacidade do meu quarto ou, no máximo, nas festas de família. Quando a antiga ministra se aposentou, fui pega de surpresa quando o bispo me convidou para liderar o ministério, tinha certeza que existia um dedo do meu avô naquela decisão, já que fazia parte do conselho de músicos e ministros da igreja. Fiquei nervosa, com medo de não estar à altura, mas aceitei. Senti que era um chamado, algo que Deus tinha preparado para mim.

No início, a responsabilidade me assustava. Não era apenas sobre escolher músicas e cantá-las no culto. Era sobre guiar a igreja em adoração, sobre ajudar as pessoas a se conectarem com Deus através dos louvores. Cada ensaio, cada escolha de canção é feita com cuidado, com oração, direcionamento. Quero que as pessoas sintam o que eu sinto quando canto, que percebam que a adoração é mais do que apenas palavras e notas; é uma entrega, um diálogo com Deus.

No domingo de manhã, quando estou no palco, há um momento especial logo antes de começarmos. As pessoas estão entrando, os bancos ainda se enchendo, e o burburinho das conversas aos poucos vai diminuindo. É nessa hora que sinto uma calma me preencher. Olho para as pessoas à minha frente — algumas famílias inteiras, outras pessoas sozinhas — e penso em como cada uma delas tem sua própria história, as próprias provações. E, por alguns minutos, enquanto cantamos, todas essas histórias se unem em uma só, dali a força que Deus nos presenteia todos os dias, é compartilhada, quando os irmãos estão em união. Assim nos tornamos um só.


Depois dos cultos, a rotina é sempre a mesma. Os membros se reúnem no salão comunitário, onde o cheiro de café fresco e bolos caseiros enche o ar. As crianças correm entre as mesas, enquanto os adultos conversam sobre a semana que passou. Gosto desses momentos, perceber como, em uma cidade pequena isso é comum e natural, a igreja se torna mais do que um lugar de culto. Ela é um ponto de encontro, um refúgio.

Saspher pode não ser grande, mas é o meu lugar. E é aqui, entre as ruas tranquilas e a minha igreja acolhedora, que encontro a minha paz. Infelizmente, nós últimos meses, não tem sido tão fácil. O calor escaldante da ira parecia transformar minhas memórias turbilhão de emoções que fervilhavam de mim, desde aquele encontro no velório.

Suzanna parecia a mesma mulher de catorze anos atrás, era inconfundível. Mesmo com pequenas marcas na pele, devido ao  tempo e os olhos com um brilho esvaído, ela ainda carregava a chama familiar. E talvez fosse exatamente isso que me transtornava. O fato de que existia semelhança entre nós. Que mesmo após o abandono, os laços biológicos não foram arrancados dela.

Não tivemos uma conversa, e mesmo assim, as pouquíssimas interações foram desconfortáveis. Ela tentaria justificar sua ausência, com uma calma forçada, esperaria que algumas palavras apagassem toda uma vida de abandono. Nenhuma desculpa poderia compensar os aniversários passados sem nenhuma felicitação materna. Eu não queria saber das suas desculpas ou dos arrependimentos. Tudo que desejava que ela parasse de tentar.

Eu andava meio frustrada. A tristeza voltava a crescer. Estava cansada, exausta mentalmente. A casa silenciosa parecia explodir meu cérebro inteiro, e mesmo com as gracinhas que Laurel fazia para me animar, meu espírito se encontrava abatido. Papai e Marina passaram o último mês aqui, para monitorarem meu estado. Em algum momento que eu não percebi, Laurel entrou na sala e se jogou em um divã no canto do cômodo. Uma bolsa cheia de tralhas no meio do salão, ela sempre andava com tralhas na bolsa. Ela parecia querer chorar, mas não conseguia. A dor também estava cravada fundo do coração dela, profundo demais emergir sozinha.

Estávamos vivendo um dia de cada vez. Eu sabia que não deveria contar nada ao pai. Ele sempre fora a figura sólida minha vida, sempre presente e amoroso. Depois que Suzanna foi embora, ele assumiu sozinho a responsabilidade de me criar  e o fez com uma dedicação e paciência que eu sabia ser um caso raro. Papai me conhecia muito bem. No fundo, eu sabia que ele perceberia.

O som da porta sendo aberta fez Laurel se sentar no sofá, fungando fundo enquanto pegava uma toalhinha para se limpar. Uma sombra surgiu primeiro, antes dos passos dele ecoarem pelo salão. Momentos depois, ele apareceu na sala, seu rosto cansado após horas servindo nos voos comerciais, mas ainda assim iluminado por um sorriso ao me ver.

— Oi, querida — ele disse, aproximando-se para me dar um beijo na testa.

Eu tentei sorrir de volta, mas senti uma miseravelmente dificuldade. Papai notou, e isso foi confirmado quando ele franziu ligeiramente o cenho, sentando-se ao meu lado, no banco acolchoado do piano eletrônico.

— O que aconteceu, Naomi? — perguntou ele, com a voz suave, mas carregada de preocupação.

Não tentei disfarçar, sacudi a cabeça sem precisar dizer nada, eu não queria mentir. Mas o peso daquele encontro estava cravado no meu peito como uma estaca, e de repente as palavras começaram a sair. Hesitantes a princípio, depois rápidas e desordenadas, contei a ele sobre o encontro com a mãe, sobre a sensação de abandono que voltou a me esmagar, e sobre o vazio que senti diante da família perfeita que ela conquistou em outro lugar. Precisava libertar tudo que estava preso dentro de mim, e enquanto papai ouvia em silêncio, seus olhos se encheram de compreensão.

Após terminar, o silêncio tomou conta da sala por alguns instantes. Laurel tinha sumido em alguma parte do meu desabafo. Minutos se passaram quando papai suspirou fundo e colocou a mão sobre a minha, que ainda repousava nas teclas do instrumento. Ele apertou com carinho, e disse.

— Isso é totalmente compreensível, minha filha. Soube que isso ia acontecer, e sinceramente, estou orgulhoso por estar enfrentando tudo de cabeça erguida — ele disse suavemente, me pegando de surpresa.

O encarei, confusa.

— Você sabia? — ele assentiu lentamente.

— Eu entrei em contato com ela, há alguns meses, antes da morte de Sr. Émile. — sua expressão se tornou reflexiva — Queria avisar sobre o quadro dele. Não achei que fosse certo esconder isso dela, afinal, ela também é filha. Sabia que você não tomaria essa decisão, então, com a autorização de Dona Thereza, eu liguei.

Apenas assenti, com um nó se formando em minha garganta. Não sabia o que dizer. A revelação me pegou desprevenida, mas o que mais me surpreendeu o quanto meu pai me conhecia.

— Eu só queria que você soubesse que, apesar de eu não saber exatamente o que está sentindo, você não precisa carregar isso sozinha, filha. — ele continuou. — Sei que o que ela fez foi doloroso, e lidar com o luto não é fácil. Mas não deixe que isso envenene seu coração. Você é forte, muito mais do que ela jamais soube. Não deixe o passado te prender. Nós temos uma vida pela frente. Temos um ao outro, e temos Marina e Laurel, e todo o resto da família. Isso é o mais importante.

  Encarei-o, sentindo as palavras dele invadirem um cômodo trancado dentro de mim, e dissipando aos poucos o a névoa que embaçava minha visão . Não era a solução para a dor, mas era um conforto. E, naquele momento, soube que, apesar de tudo, ela não estava sozinha.

— Obrigada, pai — disse baixinho, quase num sussurro.

Ele sorriu, levantando-se lentamente.

— Vamos jantar? Consegui chegar a tempo para preparar sua comida favorita.

Eu sorri de volta, mais sincera agora, e o segui até a cozinha. Todos já estavam na mesa, Vovó Thereza na ponta da mesa, onde vovô costumava se sentar, Marina e Laurel no meio da mesa, e mais quatro poltronas vazias.

O passado podia ser duro, mas ali, naquele momento, eu sabia que o presente e o futuro poderiam ser muito mais gentis comigo. Afinal, eu tinha uma familia abençoada por Deus. E isso bastava.





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