•Capítulo 07•

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O Peso das Paredes


(Suzanne)



Eu nunca quis voltar a essa casa.

A cada passo que dou pelo chão de madeira, ouço ecos do passado, como se a casa fosse um monstro que esperava minha distração, emitindo sons em forma de lembranças, para que morresse de medo antes de ser devorada. As paredes estão no mesmo lugar, assim como as fotos antigas permanecem  penduradas nas paredes, era como se o tempo tivesse se recusado a andar aqui dentro. Mas é claro, meu pai sempre foi bom nisso — em manter as coisas paradas. Imutáveis. Intocáveis.

  Agora, por causa de uma cláusula ridícula em seu testamento, aqui estou eu, de volta ao lugar que representa tudo o que eu tentei deixar para trás. Para receber a herança, sou obrigada a permanecer nesta casa por dez anos, vivendo de acordo com as “leis de Deus” por dez anos. As palavras ainda queimam na minha mente, repetindo-se como uma piada cruel. Seguir os passos de um Deus em quem já não acredito, em uma casa que testemunhou o pior de mim.

A ironia é amarga. É claro que ele faria isso. Até depois de morto, ele tenta me controlar. A religião era sua arma favorita, uma ferramenta de poder e de condenação. Na mesa do café da manhã, enquanto ele recitava as orações, havia sempre um julgamento não dito, um olhar duro que me lembrava do que eu era, ou melhor, do que eu nunca seria. Agora, mesmo na morte, ele não me deixa esquecer. Sou obrigada a viver com suas regras, com seu Deus, com sua moralidade sufocante — como se isso fosse uma penitência pelos meus erros.

A verdade que ele nunca soube — que eu nunca tive coragem de confessar — é que foi aqui, entre essas paredes, que eu tomei a decisão mais difícil da minha vida. Foi aqui que deixei minha filha. O fardo daquele dia ainda pesa sobre mim, um peso que carrego em silêncio, embora eu tenha construído camadas de desculpas, justificativas e uma vida diferente sobre ele. Largar a minha filha foi um ato de desespero, de fuga. Eu não poderia ser a mãe que ela precisava, não aqui, não sob as expectativas sufocantes de uma vida devota que eu sabia que não poderia suportar. Fui embora porque não conseguia ser tudo aquilo que ele queria — que Deus queria.

Voltar a esta casa é como ser confrontada com uma versão antiga de mim mesma, uma pessoa que lutei para esquecer. É como se cada cômodo fosse uma lembrança dolorosa de quem eu fui forçada a ser. E agora, para ter o dinheiro — e Deus, como eu preciso desse dinheiro —, sou obrigada a me contrariar, me tornar uma farsa. Orar e ir à igreja. Fingir que ainda acredito, que ainda faço parte desse mundo.

O pior de tudo é que a cidade me conhece. Todo mundo aqui sabe quem eu sou, quem eu fui. Quando saí, anos atrás, não houve escândalo, não houve alarde. Eu simplesmente desapareci. Mas eles sabem. Sabem o que eu fiz. Sabem o que deixei para trás. E agora, tenho que encarar esses olhares outra vez, os sorrisos falsos e os murmúrios à meia voz. Todos estão prontos para me julgar, como sempre estiveram.

Fico de pé na sala de estar, observando a luz da manhã atravessar as cortinas amareladas, e sinto a raiva ferver sob a superfície. Não quero estar aqui. Não quero viver nesta casa, nesta cidade, sob essas regras. Mas o que posso fazer? Preciso do dinheiro. Estou presa aqui, como sempre estive, só que agora por uma cadeia invisível de necessidade.

Meu pai pode estar morto, mas ele ainda tem poder sobre mim. Isso é o que mais me revolta. Por catorze anos consegui viver longe do julgo dele, e agora, com quarenta e cinco anos, me sinto mais impotente do que nunca. Parece uma eternidade, mas o peso desse tempo passou como folhas ao vento assim que me assentei nos degraus antes da porta principal, fora de casa. O rangido familiar das dobradiças, o cheiro forte de óleo queimado e a grama alta crescendo em desordem no jardim da frente me atingiram com força. As lembranças que eu vinha evitando a cada dia desses últimos anos. Meu corpo tensionou, como se uma mão invisível estivesse me puxando de volta para tudo o que eu tentei enterrar.

Eu voltei. Contra tudo o que eu prometi a mim mesma, voltei a essa casa, e não estou sozinha.

Desta vez, estou com eles: Celso, meu marido, Diogo, meu enteado, um jovem de vinte e seis anos que me enxerga como sua mãe de coração. E também meus filhos caçulas, Carina e Vicente, gêmeos. Eles não conhecem os detalhes de quem eu fui, do que fiz, do que abandonei. Para eles, eu sou alguém diferente — uma mulher estável, determinada, alguém em quem podem confiar. E talvez eu tenha conseguido ser essa pessoa nos últimos anos. Talvez, por um tempo, eu tenha realmente acreditado que poderia deixar meu passado para trás, trancado nesta casa, enterrado na mesma cova que a filha de Émile Fontaine.

Mas o passado tem suas maneiras cruéis de nos alcançar.

Quando recebi a notícia, meu celular vibrou na mesa de cabeceira, era tarde, mas de alguma forma eu tinha perdido o sono. Não conhecia aquele número, portanto, a calmaria que reinava no nosso antigo apartamento, se transformou em um jogo de tormento com vários níveis. Eu sabia que algo estava errado antes mesmo de atender. Era uma intuição pesada, um silêncio estranho que se instalou no ar. Peguei o celular e atendi.

— “É sobre o seu pai”, um homem disse. E então, num sussurro quase inaudível, como se dissesse algo que tentava negar — “Ele se foi.”

O mundo parou por um instante. Senti o chão fugir de sob os meus pés, mas, ao mesmo tempo, uma parte de mim permaneceu imóvel, como se meu corpo já soubesse há muito tempo que aquele momento chegaria. Desliguei o telefone sem conseguir dizer nada.

Émile. Aquele homem que, anos atrás, parecia uma fortaleza inabalável. Aquele que um dia foi meu herói. Não nos falávamos há... quanto tempo? Eu nem mesmo me lembrava de imediato. A última vez que nos vimos, as palavras que trocamos foram frias, pontuadas por mágoas mal resolvidas. E agora ele se foi. E tudo o que restava eram essas memórias fragmentadas, entrecortadas pela distância.

A culpa me invadiu com uma força avassaladora. Eu deveria ter ligado. Deveria ter insistido, quebrado o orgulho, perguntado como ele estava, mesmo que o silêncio fosse tudo o que recebesse de volta. Mas foi eu quem me afastei. Me escondi por trás da desculpa do tempo, da vida corrida, das nossas diferenças irreconciliáveis. Agora, nada disso fazia sentido.

Uma parte de mim ainda queria culpar ele. Ele quem me mandou embora. Ele quem não fez questão. Mas logo esse pensamento foi abafado pela dor. E se ele tivesse esperado que eu voltasse atrás? E se, no fundo, ele também sentisse minha falta e só não soubesse como dizer?

Eu nunca saberei.

  As lágrimas vieram de repente, quentes, furiosas, salgadas. Não sabia ao certo por quem chorava mais: por ele, ou por mim, pela filha que eu abandonei. Havia tanto não dito entre nós, tantas conversas que deveriam ter acontecido e agora se perderam para sempre.

Ontem, quando vim visitar a casa, acabei ficando no sofá, abraçando os joelhos, tentando encontrar um jeito de me perdoar. Mas quando lembrava que esta casa foi deixada para mim como uma condição que soava mais como uma punição, um julgamento final, algo dentro de mim se construiu de novo. Ele sabia o que estava fazendo. Ele sempre soube como me manipular. A herança estava lá, esperando por mim — mas com ela, uma sentença: eu teria que viver aqui, não apenas com minha nova família, mas também com a filha que eu deixei para trás.

Naomi.

A própria menção do nome dela fazia meu peito se apertar. Naomi, a menina que eu abandonei, minha filha, a mulher de vinte e dois anos que me esperava dentro da casa como uma testemunha viva do meu fracasso, mas que seria sempre a garotinha de seis que deixei para trás. A vida que construí longe daqui, a nova família que criei, tudo isso parecia evaporar na presença dela, a sombra do meu passado. Ela não me perdoaria. Eu não esperava que perdoasse. Mas pior do que a raiva dela era o que eu sentia por mim mesma. Vergonha. Culpa. Um eco incessante de uma mãe que fracassou no seu dever mais básico.

Celso e Diogo se alojaram primeiro. Celso estava entusiasmado  com a ideia de uma “nova vida” na cidade pequena, longe dos problemas e grandes escândalos. Eles ainda não tinham visto a casa por dentro. Para ele, era uma aventura. Um recomeço. Mas para mim, era um retorno ao inferno.

Entrei novamente, minhas mãos trêmulas a cada vez que tentava guardar um utensílio de cozinha.

— Você está bem? — Celso perguntou, voltando-se para mim com uma expressão preocupada. Ofereci um sorriso forçado, e assenti.

— Apenas... processando tudo isso. São muitas lembranças. —  disse, tentando soar tranquila.

Ele sorriu, achando que era nostalgia, mas o que senti era um nó no estômago, um pressentimento. Finalmente, respirei fundo e empurrei a porta. A casa parecia ainda mais pequena, mais sufocante do que nas minhas lembranças. Os móveis não eram antigos, as cortinas eram dos mais recentes catálogos, o cheiro estava absurdamente agradável, e embora a faixada da casa ainda fosse clássica, tudo era realmente chique.

Mamãe já havia se mudado. Quando tentei me despedir com um abraço, ela o rejeitou, mas me abençoou da mesma forma. E disse que dá próxima vez que me visse, esperava não ser em outro velório, o seu próprio. Isso desceu como vinagre na garganta.

A casa ainda estava dividida em áreas. Minha antiga parte ficava nos andares de cima, e eu tinha certeza que Naomi ainda permanecia lá.

Passamos a tarde toda recebendo os caminhões de mudanças, levando para o depósito nos fundos do quintal e arrumando os cômodos do nosso jeito. Diogo me ajudou a decorar o quarto de Vicente com o tema astronauta, como ele havia pedido. Carina por outro lado, era mais difícil de agradar, quando comecei a colar os papéis de parede rosa, estilo bailarina, ouvi seus gritos da cozinha. Ela quase queimou todos os papéis de parede das mãos do irmão mais velho, e exigiu que o tema para seu quarto fosse esportes.

Após um longo dia de organização, fui relaxar depois de uma ducha. Celso havia sumido há mais de duas horas, provavelmente foi resolver algumas coisas com um sócio de uma cidade próxima. Os gêmeos sumiram pela casa, e Diogo estava na cozinha, preparando algo para a noite, quando caminhei até o hall de entrada, o salão principal, lá, no centro da sala, estava Naomi.

Ela estava de pé, os braços cruzados, os olhos fixos em mim com uma intensidade que cortava como lâminas. Ela havia crescido — mais alta, os traços do rosto ainda cheios e angulosos, mas maduros, de uma jovem mulher. Porém, os olhos... os olhos eram os mesmos de quando eu a deixei, cheios de uma tristeza profunda que agora se transformara em algo mais. Ressentimento. Desprezo.

— Então, você voltou... —  a voz dela era fria, quase casual, mas o impacto daquelas palavras me atingiu como um soco.

Naomi olhou rapidamente para Celso, que fez o grande favor de entrar justamente pela porta da frente. Ela estava o avaliando como um estranho, exatamente como ele é. Mas não era para ele que sua raiva estava direcionada. Era para mim, e só para mim.

— Sim, voltei — respondi, tentando manter a compostura. — Estou aqui agora.

Ela soltou um riso curto e amargo, sacudindo a cabeça.

— De fato. Você está aqui agora.

Celso, percebendo a tensão, se aproximou e tentou quebrar o gelo.

— Oi, Naomi, sou o Celso. Diogo e eu estamos muito animados para conhecê-la melhor.

Naomi não o ignorou completamente, mas seus olhos não saíram de mim.

— Olá, Celso. — foi só o que ela disse. E por segundos, pensei que ela não diria mais nada. Até que...

— O que você espera conseguir com isso? Acha que pode voltar depois de catorze anos e... o quê? Fingir que nada aconteceu?”

— Naomi...— comecei, mas as palavras travaram na minha garganta.

A verdade é que não havia nada que eu pudesse dizer para consertar o que estava quebrado. Catorze anos de silêncio, de distância, não podem ser remendados com um pedido de desculpas. Não há desculpa. Eu fiz o que fiz. Eu fugi. Escolhi uma vida longe daqui, longe dela, porque não conseguia lidar com quem eu era, com quem meu pai queria que eu fosse, com a culpa esmagadora de ser uma mãe que não estava pronta para ser mãe.

— Por que você foi embora? — Ela finalmente perguntou, sua voz agora mais baixa, mas carregada com todo o peso da dor que eu sabia que ela carregava sozinha todos esses anos. — Só me diga por que me deixou, por favor? — existia um coração totalmente dilacerado ali, e eu sempre serei a única culpada.

Olhei para o chão, incapaz de suportar o olhar dela por mais tempo.

— Eu... Eu era fraca, Naomi. Não estava pronta. Não sabia como... — e quando notei, os gêmeos estavam nos degraus do meio da escadaria que leva ao segundo andar.

— Não sabia como ser mãe?— Ela completou, amargamente. — Isso é óbvio. — Diogo também havia aparecido na sala, permanecendo em um canto, a observar.

— Eu cometi um erro. Um grande erro. E sinto muito por isso todos os dias da minha vida.

As palavras saíram, mas elas pareciam insignificantes, vazias. Como poderiam ser suficientes? Ela balançou a cabeça, descrente. Eu podia ver a mágoa nos olhos dela, a profunda cicatriz que meu abandono havia deixado. E sabia que, por mais que eu tentasse, jamais poderia reparar completamente esse dano. Tudo o que eu poderia fazer era viver com essa culpa. E agora, viver com ela aqui, sob o mesmo teto.

Os próximos dias foram um pesadelo silencioso. Celso e Diogo, já começavam a discutir sobre a boa gestão da casa, sempre  alheios à tensão entre mim e Naomi. Eu tentava disfarçar, ser a esposa e mãe que eles conheciam, mas a cada olhar de Naomi, a cada silêncio carregado durante o jantar, minha fachada rachava um pouco mais, minha sorte era que ela quase nunca estava mas refeições de família.

A vergonha me consumia. Eu a via nos olhos dela. A cada vez que meus filhos me chamavam de mãe, eu sentia a acusação invisível pairando no ar: “Você me deixou. Mas foi incapaz de deixá-los” E ela estava certa.





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