•Capítulo 06•

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O Testamento de Émile Fontaine e o Teste de sabedoria

A sala de estar da antiga casa dos Franco estava impregnada de silêncio, quebrado apenas pelo tique-taque constante do velho relógio pedestal. Era uma manhã nublada, e uma brisas frias faziam meus braços tremerem. Eu estava perto de uma grande janela, observando os canteiros bem cuidados ao redor da propriedade.

Todos estavam reunidos ali para a leitura do testamento. Era um momento esperado, mas também carregado de ansiedade e tensão. Émile havia sido um homem devoto, um cristão fervoroso que valorizava sua fé, sua família e, acima de tudo, a casa onde criara seus filhos.

Ao redor da grande mesa de mogno, estavam os demais netos – Estevão, Luigi e Sophie — Sophie tinha apenas dois aninhos, e infelizmente, contraiu escabiose, então, estava em isolamento. Ela e sua família participavam por web chamada. Vovó Thereza, com o rosto sereno, mas marcado pelo luto, estava sentada em uma poltrona verde, próxima a mesa dos advogados.

Suzanna, a única filha mulher, estava o mais longe possível de vovó. Seus dedos entrelaçados nervosamente, e a perna balançando, em ansiedade. Ela olhava para o advogado da família, que preparava os papéis com uma solenidade própria para aquele momento. Eu sabia que aquele dia mudaria o rumo da sua vida. E nunca imaginei vê-la tão abalada com algo aparentemente simples.

— Senhora e senhores, — começou Edgar, ajeitando os óculos no rosto. — o testamento de Émile Fontaine será lido agora. Gostaria de lembrar que este documento foi redigido de acordo com a vontade expressa do falecido e reflete os seus desejos com relação à distribuição de seus bens.

O murmúrio dos familiares foi brevemente interrompido pela voz firme do advogado ao iniciar a leitura.

— “Eu, Émile Fontaine, sendo de mente sã e em pleno uso das minhas faculdades mentais, declaro que este é o meu último testamento. Aos meus netos Estevão, Luigi e Sophie, deixo uma parte significativa da minha herança, como sinal do meu amor e para que eles possam viver suas vidas com mais liberdade, da maneira que desejarem.”

Estevão, o segundo neto, apenas assentiu silenciosamente. Luigi olhou para mim, como se temesse uma revolta. Ele ainda era jovem para compreender o peso daquele momento.

— “Deixo para minha amada esposa, Thereza, o usufruto das  nossas casas, na nossa cidade natal, e de todos os bens que estiverem sob essas propriedades enquanto ela viver. Que ela encontre paz e conforto ao voltar para a cidade que compartilhamos e chamamos de porto seguro.”

Vovó Thereza baixou a cabeça, as mãos levemente trêmulas segurando um lenço. Ela sabia que vovô Émile tinha pensado nela até o último momento, protegendo-a mesmo na sua ausência, e lhe presenteando com a confirmação de um sonho que florescia esquecido no seu coração, voltar para a cidade natal dos dois.

O advogado fez uma pausa e bebeu um copo de água antes de continuar, a tensão subiu na sala. Os próximos seriam os filhos, e quando observei a sala novamente, percebi que o marido de Suzanna estava ao seu lado.
Senti uma ponta de frustração, papai e minha madrasta não puderam vir, nem mesmo Laurel que é considerada da família recebeu a ligação. E aqui estava ele. A família toda. Carina e Vicente acenaram quando nossos olhos se encontraram.

— “Para meus filhos, Andrew e Josh, deixo o restante de todas as minhas propriedades, nas metrópoles, inclusive as fazendas e terrenos que possuo em outros países, exceto, as ilhas. Que eles administrem esses bens com sabedoria e generosidade, e que cuidem de suas famílias assim como eu cuidei da minha.”

Minha mãe ajeitou a postura, alinhando o broche dourado, preso ao vestido cinza escuro. As crianças foram para perto dela, era difícil imaginar como uma criança de aproximadamente oito anos pensaria sobre essa reunião.

Edgar, com o auxílio de outro advogado, virou a página da ata. E prosseguiu com o testamento.

— “À minha neta mais velha, Naomi, deixo as propriedades onde estão localizados meus estúdios de gravação, que ela conheceu desde pequena. Que ela use este espaço para expandir sua criatividade e desenvolver qualquer talento que Deus tenha colocado em seu coração. Além disso, desejo que ela receba uma parte dos rendimentos das minhas músicas, assim como metade da propriedade que resido, em Saspher. Que esses bens a abençoem financeiramente ao longo de sua vida.

Eu não sabia se chorava ou pulava em forma de alegria. Sabia que vovô deixaria bons rendimentos para mim, porém, não esperava tudo isso. Ele realmente me amava. Edgar pigarreou quando os burburinhos cresceram novamente, e ao cessar todo o fervor entre Estevão e Luigi, leu mais do manuscrito.


—  “A minha única filha, Suzanne Fontaine, deixo a maior parte dos investimentos dos parques aquáticos nas ilhas do Sul, mas com uma condição. Suzanne, para receber o que lhe é de direito, você deve permanecer na nossa casa, a casa onde você cresceu, por um período mínimo de dez anos. Somente assim você poderá herdar os bens que deixei sob sua responsabilidade.”

O tempo parecia ter paralisado. Todos na sala ficaram com cara de morte, dor e pânico. Ninguém, absolutamente ninguém esperava condições no testamento. Minha mãe que tinha a pele marrom, estava pálida como um giz de cera. Mas Edgar não se importava, continuou seu trabalho.

— “Além disso, desejo que ela receba os direitos autorais das composições listadas no documento com Edgar. Que ela permaneça a trilhando o caminho da fé com a mesma persistência que segue seus sonhos. Deus abençoe sempre.

Quando todos pensaram que havia acabado, a voz do advogado surgiu novamente.

— “Para os netinhos gêmeos que não tive o prazer de conhecer, Carina e Vicente, deixo com todo o meu amor a propriedade onde se encontra a nossa casa de praia, que por tanto tempo foi um refúgio de alegria e descanso para nossa família.”

E, para finalizar, na última página do testamento, Franco finalizou.

— “Por fim, a alguma de vocês, instruí a equipe de advocacia Franco a entregar os presentes para os que devo horar. Aos demais familiares, deixo a todos o meu amor, minhas orações e a certeza de que estarei sempre com vocês, nas lembranças, nas músicas e na fé que compartilhamos. Que Deus abençoe a todos.”

Eu respirei o mais fundo que podia, uma bomba estava prestes a ser lançada na sala e eu não tinha proteção alguma.


— Este testamento foi registrado conforme os desejos expressos pelo nosso amado Sr. Émile Fontaine.


O silêncio que se seguiu foi esmagador. Senti o olhar de todos sobre minha mãe, enquanto o significado daquelas palavras afundavam como um barco quebrado no mar. Vovô, mesmo depois de sua morte, nos surpreendeu, prendê-la na casa que ela já havia deixado para trás anos atrás, em busca de uma vida própria, era um tipo de vingança que nem eu mesma pensaria.

Aquela casa, que para ela sempre fora um lugar de recordações, mas também de limitações, agora se tornava uma prisão. Eu sabia que Suzanna havia construído uma carreira longe dali, e agora tudo o que o vovô Émile lhe deixava dependia de sua volta para o lugar que ela menos desejava estar.

Fitei os olhos de minha mãe, que ainda encarava o chão, sem reação. As emoções se misturavam nas íris: raiva, tristeza, frustração. Talvez ela pensasse que vovô não a compreendesse, como se estivesse tentando moldá-la ao passado, ao invés de reconhecer a mulher que ela havia se tornado. Eu conhecia a índole de Émile Fontaine, e nem em um milhão de pesadelos, ele faria algo com essa finalidade.

Outro advogado do grupo dos Franco continuou, sem dar tempo para que os sentimentos se assentassem.

— O senhor Émile Fontaine especificou que, durante este período de dez anos, a casa deve ser mantida, cuidada e respeitada como o lar que ele sempre valorizou. Qualquer venda ou abandono da propriedade antes do prazo acarretará na anulação da herança para a Senhora Suzanne Fontaine Moreau.”

Minha mãe provavelmente estava sentindo um peso esmagador nos ombros. Eu sabia que vovô a amava, mas, será que ela sabia? Foi ali onde ela nasceu, cresceu e, de fato, construiu sua família, mesmo que não tenha permanecido. Contudo, para ela, aquela casa sempre fora um lugar de conflitos internos, de tradições que ela não podia mais seguir. Que ela não queria seguir.

— Ele me prendeu a esta casa...— foi um murmúrio, mais para si mesma. Ela estava incrédula.

No entanto, ao mesmo tempo, que vi incredulidade, algo no fundo da minha mente dizia que talvez fosse desespero contido. Talvez essa condição fosse uma punição, ou uma chance de ela entender algo que ele sempre tentou lhe ensinar. Suzanne teria que tomar uma decisão, e essa decisão definiria o futuro não apenas dela, mas de toda a família.

Edgar Franco fechou o testamento e levantou os olhos para minha mãe.

— A decisão é sua. Você pode aceitar ou recusar a condição. Mas o senhor Émile deixou claro que esta era sua última vontade.”

Ela respirou fundo e olhou ao redor. O que ela faria? Permaneceria naquela casa, sacrificaria os anos que viriam pela herança e pela memória do pai? Ou abriria mão de tudo e fugiria de novo, com o protesto de seguir em frente. No fim, qualquer que fosse a escolha, sua vida nunca mais seria a mesma. E pela primeira vez, eu não me importava com sua decisão.




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