jardim

215 35 30
                                    

Fátima

A tarde estava fresca, e o ar carregava aquele cheiro de terra molhada e café que eu sempre associei ao casarão. As folhas das árvores ao redor do jardim balançavam levemente com a brisa, criando um som suave, quase hipnótico. Ninguém costumava vir até o jardim escondido atrás da mansão, a não ser eu. E, de vez em quando, a condessa.

Fiquei observando de longe, escondida na sombra do casarão, enquanto Diana caminhava devagar pelo caminho de pedras que levava ao centro do jardim. Ela estava sozinha. O vestido preto que usava parecia absorver a luz fraca do fim da tarde, como se quisesse desaparecer no meio das plantas. Seus passos eram firmes, mas havia algo de hesitante neles, algo que só eu conseguia notar por conhecê-la tão bem.

Era meu dever conhecê-la.

Ainda me lembrava da tensão da manhã, na sala de negociações. Diana, na frente daqueles homens arrogantes, era a própria imagem da força. Nenhum traço de dúvida, a voz firme e controlada. Mas, quando ela saiu da sala, vi o que eles não viram: o peso daquele fardo começava a esmagá-la.

Ela não compartilhava essa fraqueza com ninguém. Só comigo, e mesmo assim de forma discreta, escondida atrás de ordens simples ou toques breves enquanto eu a ajudava a se vestir. Mas eu sentia o peso de tudo em seus ombros. Às vezes, parecia que ela mal conseguia respirar. E era nesses momentos que eu precisava estar ali, atenta, silenciosa, pronta para ajudá-la, mesmo que ela nunca admitisse que precisava.

Hoje, algo estava diferente. Seus movimentos revelavam uma inquietação que eu não via há tempos. As negociações a haviam abalado mais do que o normal. Sabia que ela vinha ao jardim quando queria escapar, quando os pensamentos começavam a se acumular e a máscara que usava começava a rachar.

Eu não deveria segui-la, mas não consegui me impedir. Não era apenas o dever que me mantinha ali. Nunca fora. Não depois de tantos anos. O afeto que sentia por Diana, a condessa de Serra Alta, ia muito além de qualquer juramento.

E, mesmo sabendo que esse sentimento era algo que eu deveria esconder, não conseguia evitar.

Parei por um momento, hesitante. O jardim era o refúgio de Diana, o único lugar onde ela podia ser ela mesma, longe dos olhares julgadores. Mas, ao mesmo tempo, algo me dizia que, se havia um momento em que ela precisava de alguém, era agora. Respirei fundo e atravessei o portão de ferro, que rangeu baixinho quando o abri.

Ela estava parada em frente ao grande carvalho, a árvore mais imponente do jardim. Suas mãos estavam cruzadas à frente do corpo, e ela olhava para o horizonte, como se tentasse encontrar respostas nas colinas distantes. A luz dourada do pôr do sol tocava seu rosto, revelando um cansaço que ela escondia de todos dentro da mansão.

Me aproximei devagar, os passos quase inaudíveis no chão coberto de folhas secas. Não queria assustá-la, mas também não podia voltar atrás. Quando cheguei perto o suficiente, parei, esperando que ela reconhecesse minha presença. Era sempre assim: eu nunca me anunciava, e ela nunca precisava se virar para saber que eu estava ali.

"Fátima", ela disse, quebrando o silêncio, com uma voz suave, mas carregada de algo que eu não conseguia identificar. "Eu sabia que você viria."

"Senhora", respondi baixinho. "Eu só queria saber se precisava de algo."

Ela riu, mas não foi uma risada de alegria. Foi amarga, cansada. Algo que perfurou meu peito. Diana nunca ria assim.

"Eu preciso de tantas coisas...", disse ela, sem se virar. "Mas são coisas que você não pode me dar."

Essas palavras, tão simples e ao mesmo tempo tão cheias de significado, fizeram meu coração disparar. Sabia que ela falava de algo muito maior que as terras, muito maior que as responsabilidades do casarão. Ela falava de algo dentro dela que lutava para manter enterrado, assim como eu lutava para esconder meus próprios sentimentos.

"Não sei se isso é verdade, senhora", arrisquei, sentindo o arrepio da ousadia na minha pele.

Ela finalmente se virou para me encarar, e seus olhos verdes se fixaram nos meus com uma intensidade que nunca tinha visto antes. Algo estava se rompendo dentro dela, e, pela primeira vez, ela não estava tentando esconder.

Diana deu um passo em minha direção, e, de repente, o espaço entre nós parecia pequeno demais, quase sufocante. Eu sentia o perfume suave dela misturado ao ar fresco do jardim, e meu coração disparou. Ela estava perto demais. Perto de um jeito que nunca tinha estado antes.

"Você me conhece tão bem... Como isso é possível?", ela murmurou, e a suavidade em sua voz fez meu corpo estremecer. "Sabe o que penso, o que sinto, antes mesmo de eu dizer uma palavra."

"É meu dever, senhora", sussurrei, tentando manter a compostura. Mas as palavras soavam fracas, como se a barreira que eu tentava erguer entre nós fosse se desmanchar a qualquer momento.

"Dever..." Ela repetiu a palavra, como se estivesse provando o gosto amargo dela. Seus olhos não saíam dos meus, e cada segundo que passava parecia uma eternidade. "E se eu quisesse algo mais do que seu dever?"

Eu não tinha resposta para isso. O que eu poderia dizer? Que eu sonhava com isso? Que cada toque, cada olhar entre nós me consumia? Que meu coração já pertencia a ela, mesmo que isso fosse uma loucura?

Ela deu mais um passo, e agora estávamos tão próximas que eu podia sentir o calor de sua pele. Meu corpo gritava para recuar, lembrar-me do meu lugar. Mas algo me prendia ali, incapaz de me afastar.

"Por que você fica? Por que ainda está aqui?", ela sussurrou, a voz quase um lamento.

As palavras que eu queria dizer ficaram presas na minha garganta. Como eu poderia responder algo assim, quando a verdade era tão perigosa?

Antes que eu conseguisse encontrar qualquer resposta, ela ergueu a mão e tocou meu rosto suavemente, como se quisesse testar se aquele momento era real. Meu coração parecia prestes a explodir, e naquele instante, soube que não havia mais volta.

"Senhora...", sussurrei, minha voz quase falhando.

Ela se inclinou mais perto, e, por um segundo, tudo ao nosso redor desapareceu. O único som era a respiração dela, tão próxima, e o silêncio cheio de desejo que pairava entre nós.

Mas, antes que algo pudesse acontecer, antes que eu cedesse àquele impulso, ela recuou, os olhos cheios de algo que parecia medo.

"Isso é loucura," murmurou, como se falasse mais para si mesma do que para mim. "Eu não posso..."

Ela se afastou, quebrando o contato, e imediatamente senti o vazio deixado por sua ausência. Não disse nada. O que poderia dizer? Diana lutava contra algo que nem eu sabia se poderia ajudá-la a vencer.

"Volte para o casarão, Fátima," ela ordenou, a voz firme, mas diferente da tempestade que eu sabia estar dentro dela. "Eu... preciso ficar sozinha."

Obedeci. Não olhei para trás.

Sabia que, se olhasse, não conseguiria ir embora.

lúmina - diamaOnde histórias criam vida. Descubra agora