Capítulo 3

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RAFAEL AMARAL

Assim que a porta se fechou atrás de Sarah, o silêncio na sala pareceu se intensificar. Eu sentia o peso do momento nos ombros, mas Lucas... Lucas parecia à beira de uma explosão. Seu rosto estava rígido, os olhos escurecidos pela indignação, e ele batia o pé no chão com um ritmo que revelava sua impaciência crescente.

Henrique permaneceu sentado, a postura rígida, mas o olhar era calmo, como o de alguém que já esperava por essa reação. Eu sabia que ele tinha passado por muitas leituras de testamento como essa, mas essa era diferente. Era a nossa mãe, e, para Lucas, especialmente, isso tocava em um ponto sensível.

Eu quebrei o silêncio, tentando manter a calma, mesmo que o turbilhão de emoções dentro de mim fosse quase impossível de controlar.

— Se não aceitarmos... — comecei, escolhendo as palavras com cuidado, — como a herança será dividida?

Henrique ajustou os óculos, sem pressa. Ele parecia preparado para aquela pergunta, o que me incomodava um pouco. Como se já soubesse que esse seria o desfecho, talvez até antes de nós.

— Se não aceitarem as condições impostas pela sua mãe — ele começou, a voz firme e profissional, mas com um toque de compaixão —, 50% da herança será dividida igualmente entre vocês dois. Ou seja, 25% para cada um.

Lucas bufou, seu humor piorando visivelmente.

— E os outros 50%? — perguntei, querendo entender todos os detalhes.

Henrique me encarou por um momento, sua expressão imperturbável.

— Os outros 50% seriam convertidos em dinheiro, com os ativos da rede de hotéis sendo vendidos, e o valor resultante seria doado para instituições de caridade, conforme instruções da sua mãe.

O ar pareceu sair do peito de Lucas de uma vez só, como se ele tivesse levado um soco. O rosto dele se contorceu em uma mistura de frustração e raiva, e ele se levantou abruptamente, cruzando os braços.

— Então a gente não ficaria com nenhum dos hotéis? — ele perguntou, a incredulidade vazando em sua voz.

— Nenhum — respondeu Henrique, sem titubear. — A sua mãe deixou claro que, se vocês não aceitassem morar com Sarah, a única coisa que receberiam seriam os imóveis residenciais e o dinheiro. Nenhum dos hotéis seria de vocês.

O sangue ferveu no rosto de Lucas, e eu sabia que ele estava a ponto de explodir. Eu entendia. Parte de mim também estava furiosa. Mas não com nossa mãe, e sim com nós mesmos. Nós tínhamos sido cegos. Sempre achamos que o tempo estaria do nosso lado, que poderíamos lidar com as coisas depois. Mas o "depois" havia chegado, e nossa mãe já não estava mais aqui.

Lucas deu um passo à frente, apontando para Henrique, a voz transbordando de frustração.

— Isso é a história da nossa família! — ele gritou, os olhos vermelhos, a respiração pesada. — Nós crescemos no meio disso tudo. Fomos criados no primeiro hotel da rede, e ela deixou justamente aquele pra Sarah? Aquilo é parte de quem somos, Henrique!

Henrique se manteve calmo, mas sua expressão endureceu. Ele não estava ali para suportar a explosão de raiva de Lucas sem motivo.

— Lucas — ele disse com um tom um pouco mais severo. — Sua mãe sempre quis que vocês assumissem os negócios dela. Era o sonho dela, que vocês dois cuidassem do que ela construiu com tanto sacrifício. Mas vocês nunca demonstraram interesse. Rafael escolheu ser delegado, seguir sua carreira no direito. E você, mesmo com uma formação em administração, escolheu outro estilo de vida. Esbanjando o dinheiro da sua mãe em luxo, mulheres e até fazendo amizades com criminosos.

O impacto das palavras de Henrique pairou no ar. Lucas pareceu perder parte da arrogância naquele instante, o rosto endurecido pela verdade que ele não podia ignorar. Eu sabia que Henrique estava certo. Nossa mãe nunca nos obrigou a nada, mesmo que fosse o sonho dela ver os filhos cuidando do que ela havia construído. E agora, sua última chance de nos unir de alguma forma era essa e estávamos prestes a falhar.

O silêncio que seguiu foi quase insuportável. Lucas olhou para o chão, os ombros tensos, como se carregasse o peso de uma culpa que ele sempre tentou evitar.

Eu sabia que Henrique tinha razão. Sempre soube. Minha mãe tentou, com toda a paciência do mundo, nos envolver nos negócios da família, mas eu segui um caminho diferente. Nunca pensei que fosse algo que eu realmente desejava. A ideia de gerenciar hotéis, lidar com números e operações, nunca me pareceu atrativa. Agora, olhando para trás, era como se eu tivesse falhado com ela, não por escolher o direito, mas por nunca ter considerado seu sonho com a seriedade que merecia.

A culpa começou a se enraizar em mim. O sentimento de que, talvez, eu devesse ter feito mais. Deveria ter me envolvido de alguma forma, ter honrado minha mãe enquanto ela estava viva. Agora, era tarde demais. Tudo o que me restava era respeitar sua última vontade.

Levantei o olhar para Lucas, que ainda estava visivelmente perturbado, e me aproximei devagar, tentando encontrar as palavras certas.

— Lucas... — falei, minha voz mais baixa, porém firme. — Eu sei que isso é um golpe duro. Também é pra mim. Mas pensa no que estamos fazendo. Se a gente não aceitar, tudo o que nossa mãe construiu vai ser vendido. Todos os hotéis, tudo. Vamos perder a história dela... e a nossa.

Ele não respondeu de imediato, os olhos ainda fixos no chão. Sabia que ele estava lidando com a dor à sua maneira, mas precisávamos chegar a uma decisão.

— Eu aceito — continuei, tentando soar mais decidido do que me sentia. — A gente pode passar seis meses morando com Sarah. Não vai ser o fim do mundo. E, no final, vamos poder manter a rede de hotéis, o legado da nossa mãe.

Lucas levantou os olhos para mim, e por um segundo vi algo além da raiva — talvez fosse resignação, ou quem sabe, cansaço.

— Vamos ter que aceitar, né? Afinal, se não aceitarmos, o que resta pra gente? — ele murmurou, mais para si mesmo do que pra mim.

Eu respirei fundo, sentindo o peso da decisão sobre nós.

— Não podemos deixar que a nossa história seja vendida para estranhos — respondi com um tom amargo.

Henrique nos observava em silêncio, talvez satisfeito por ver que estávamos, finalmente, ponderando a decisão com a devida seriedade. Eu me aproximei ainda mais de Lucas, colocando uma mão em seu ombro.

— Pensa na nossa mãe. — Minhas palavras saíram mais suaves. — Se essa é a última coisa que ela pediu, não acho que a gente tem o direito de negar isso pra ela.

Lucas fechou os olhos por um momento, como se estivesse digerindo tudo. Então, soltou um suspiro longo, como se estivesse descarregando toda a tensão acumulada.

— Eu sei, Rafa... — ele disse, a voz mais baixa e contida. — Eu vou fazer isso por ela. Só por ela.

Eu assenti, sentindo um alívio silencioso se espalhar pelo meu corpo. Henrique nos observava com um leve aceno de aprovação.

— Então, é isso — concluiu ele, se levantando da cadeira. — Vocês têm minha palavra de que tudo será feito de acordo com o desejo da sua mãe.

Lucas me lançou um último olhar, um misto de resignação e raiva contida. Eu sabia que, mesmo aceitando, ele não estava completamente satisfeito, mas era o melhor que poderíamos fazer.

O luto ainda estava lá, pulsando em mim como uma dor surda, mas constante. Perder nossa mãe tão de repente tinha deixado um vazio que eu não sabia como preencher. E, no fundo, eu sabia que essa decisão não apagava a culpa que eu carregava por não ter estado mais presente, por não ter seguido o caminho que ela sonhava pra nós. O peso da responsabilidade de honrar sua memória parecia maior agora. Não era só sobre os hotéis ou sobre a herança, era sobre não falhar com ela de novo. Eu só queria fazer algo certo por ela, mesmo que agora fosse tarde demais.

Eu saí do escritório com o peso das decisões tomadas, mas também com a estranha sensação de que estávamos, finalmente, respeitando o que nossa mãe sempre quis. O nó na garganta ainda estava lá, apertado, e a dor de saber que ela não estaria mais por perto para nos guiar. Essa merda estava longe de terminar, mas pelo menos, por enquanto, havíamos dado o primeiro passo.

PECADO OBSCURO [TRISAL]Onde histórias criam vida. Descubra agora