Capítulo 1 ∞ Sombra

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"Viver é como andar numa corda bamba — a gente tenta manter o equilíbrio, mas sempre sente o abismo abaixo."

Essa era a frase que me guiava, que me dava uma sensação de conforto, e também de inquietação. Minha mãe dizia que a vida é feita de desequilíbrios e que o segredo estava em encontrar harmonia na incerteza. Ela adorava falar disso como se fosse uma descoberta que só ela tivesse feito. E, às vezes, eu achava que era mesmo.

Eu me lembrava dessas palavras enquanto cruzava as montanhas e entrava no vale onde ficava a cidade de onde minha mãe tinha partido anos atrás, prometendo que nunca mais voltaria. Nunca entendi muito bem o porquê. Ela dizia que o passado era como uma lâmina afiada: se você encosta por muito tempo, sangra. 

Agora, eu estava aqui. De volta ao lugar que ela tinha prometido que era melhor esquecer, porque, como eu, ela também tinha andado na corda bamba. Ela só não teve a mesma sorte para continuar. A morte dela foi um desses tropeços finais que a gente nunca espera — o tipo de coisa que derruba e deixa quem fica tentando se equilibrar no que sobrou.

O rádio do carro tocava uma música suave enquanto eu guiava pelas estradas cheias de curvas e, de vez em quando, eu olhava pelo retrovisor, como se estivesse sendo observada, mesmo sabendo que a sensação vinha do fato de estar retornando a um lugar que eu não conhecia, mas que de certa forma era meu. Essa era a minha cidade natal, e eu não sabia nada sobre ela.

A cidade era uma sombra da minha mãe. Tudo o que ela deixou para trás — as chaves de uma casa velha, umas cartas antigas e a minha própria história — estava por lá, esperando que eu viesse buscar e lidar com tudo o que restou de anos na incógnita infinita das minhas perguntas que nunca foram respondidas. 

Por que ela quis tanto me manter longe daqui? Sempre tive essa dúvida e nunca obtive respostas. Quando eu perguntava à minha mãe, ela dava um jeito de se esquivar. Eu poderia perguntar ao meu pai, se ele ainda estivesse vivo. Ele morreu quando eu ainda era um bebê. Pensei que essa poderia ser uma das razões por ela ter deixando nosso lar, indo para uma cidade distante, sem nenhum laço afetivo. Mas, uma vez ou outra, ela me trazia quando eu era criança, e eu tinha pouquíssimas lembranças disso. 

A casa parecia suspensa no tempo, como se cada centímetro dela tivesse ficado congelado no último dia em que minha mãe viveu aqui. A pintura das paredes era um tom desbotado de azul que parecia ter sido bonito uma vez, mas agora, com as rachaduras e manchas de umidade, só reforçava a sensação de abandono. Eu empurrei a porta, que rangeu, e entrei. Tudo cheirava a madeira velha e pó, e talvez a algo mais que eu não conseguia identificar — um perfume antigo, quase como o cheiro de lembranças enterradas.

Lá dentro, a luz da tarde se espremia pelas frestas das cortinas pesadas, e eu segui abrindo as janelas, uma a uma. O vento frio entrou, junto com o cheiro de terra molhada, e eu assisti as cortinas balançando suavemente. Era como se, de alguma forma, a casa estivesse acordando comigo.

Havia móveis cobertos com lençóis brancos espalhados pela sala, fantasmas de uma vida que eu nunca conheci. Eu fui puxando um lençol de cada vez — o sofá, duas poltronas, a velha mesa de café. O pó subia no ar, e eu segurava o fôlego, tentando não pensar em quanto tempo fazia desde que tudo isso tinha visto a luz do dia. Em algum momento, entre a poltrona e o armário, vi uma pequena teia de aranha cintilando à luz que entrava pela janela.

Caminhei até um armário baixo, perto da parede, e comecei a explorar as gavetas. Em uma delas, encontrei um maço de cartas, amarradas com uma fita azul desbotada, e um álbum de fotografias. Eu o puxei para fora, me sentando no sofá coberto de poeira, quase sentindo um peso familiar e estranho ao mesmo tempo.

Ao folhear as fotos, reconheci algumas pessoas, mas muitas delas eram estranhas para mim. Em uma foto amarelada, meus pais estavam juntos, mais jovens, sorrindo como eu raramente os vi. Minha mãe usava um vestido de verão, o cabelo longo e solto, e meu pai segurava minha mão — eu era só um bebê, rindo para a câmera. Mas ao fundo, em cada imagem, havia rostos que eu nunca vi. Amigos? Parentes? Perguntas se acumularam na minha mente como as teias de aranha no canto da sala.

Com a noite caindo, o frio começou a se espalhar pela casa. Depois de guardar as fotos de volta, eu me levantei e fui até a pequena cozinha. A geladeira, que rangia ao abrir, estava vazia, e me senti aliviada por ter parado em um mercado na estrada. Peguei uma caixa de macarrão instantâneo e coloquei um pouco de água para ferver, enquanto meus olhos vagavam pela cozinha pequena e antiga, com azulejos fora de moda e um relógio de parede parado às três e vinte e dois. Tive a estranha sensação de que o tempo realmente não passava ali dentro.

Enquanto esperava a água ferver, meus pensamentos voltaram para Chicago. Era estranho sentir falta da cidade grande, dos ruídos, dos cafés de esquina, até do trânsito caótico. Este lugar — esta cidade pequena e esta casa no meio da floresta — era o oposto de tudo que eu conhecia. Estava aqui só para resolver tudo e partir, talvez até em menos tempo do que eu imaginava.

Quando o macarrão ficou pronto, eu me sentei na mesa da cozinha, mastigando devagar, ouvindo os pequenos ruídos da casa — o ranger da madeira, o sopro do vento contra as janelas. Eu queria que o silêncio fosse confortável, mas ele era uma presença quase sufocante, me lembrando de todas as coisas que eu não sabia sobre minha mãe.

Enquanto a noite avançava, a casa parecia apertar ao meu redor, como se cada parede tivesse algo a dizer, como se tudo estivesse sussurrando segredos que esperavam para ser descobertos.

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