Capítulo 10 ∞ Passado

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Ansiosa para o jantar, eu me arrumei com cuidado, escolhendo um vestido que trouxera de Chicago, algo discreto, mas que me fazia sentir bem. Tive o impulso de usar o medalhão da minha mãe, que de alguma forma combinava com a roupa e parecia me chamar sempre que eu olhava para ele.  Mas, depois de hesitar, desisti da ideia. Coloquei-o de volta na mesinha de cabeceira e respirei fundo, esperando Kael chegar.

Ele apareceu pontualmente, com um sorriso que iluminou o rosto ao me ver. 

— Você está... muito bonita. — ele disse. 

Senti o rosto esquentar um pouco — fazia tempo que alguém não me olhava daquele jeito, com aquela suavidade. Aceitei o elogio com um sorriso, tentando me concentrar no jantar e no propósito daquela noite.

Seguimos pela estrada sinuosa e, aos poucos, a casa de Kael surgiu numa colina, afastada das luzes de Willow Creek. Algo naquele isolamento me deixou inquieta, mas mantive meus pensamentos para mim. A paisagem ao redor, com as árvores altíssimas e o vento que parecia dar vida a tudo, fazia o local parecer uma pintura viva. Quando chegamos, ele me guiou até o interior da casa. A decoração era um reflexo de Kael: elegante, discreta, mas com um toque de tradição. As paredes estavam decoradas com quadros — retratos de pessoas que, pela aparência, deviam ser seus familiares. Algumas das fotos eram tão antigas que quase podiam ter saído de um livro de história.

Pouco depois, o tio de Kael apareceu, um homem de olhar sagaz e traços fortes que refletiam uma experiência de vida que o fazia parecer tão parte daquela casa quanto o próprio Kael. Ele me cumprimentou de maneira acolhedora, e depois das gentilezas iniciais, fomos para a sala principal.

— Srta. Bevan, ouvi muito falar de você. —ele confidenciou um olhar a Kael, que sorriu — Sou Philips Dupont, tio de Kael. É um prazer enfim conhecê-la. 

— O prazer é todo meu, senhor. 

— Nada de formalidades, senhorita, que tal? Chame-me de Philips, ou Phil. 

— Está bem. 

— Enquanto o jantar fica pronto, podemos conversar um pouco. — sugeriu ele. 

Enquanto conversávamos, falei sobre meus planos de vender a casa e voltar para Chicago. O tio de Kael ouvia com atenção, ponderando cada palavra antes de sugerir o que poderiam ser os próximos passos. Em certo momento, ele disse que entendia como uma cidade pequena podia ser difícil para alguém acostumado ao ritmo de vida urbano, e eu concordei. Mas, ao mesmo tempo, senti que ele falava com uma ponta de tristeza, como se, de algum modo, acreditasse que perder Willow Creek era perder algo valioso.

A conversa fluía e eu começava a me sentir quase em casa ali, cercada pelo ar aconchegante daquela sala e pelas histórias que ambos contavam.

— Por que quer vender a casa? — Philips perguntou, olhando para Kael, depois para mim. 

— Bom, eu nasci em Willow Creek, mas cresci em Chicago. Meu pai morreu quando eu era bebê, e minha mãe.... morreu recentemente. Ou seja, eu não cresci aqui, não me sinto parte dessa cidade. — expliquei, com uma sensação de estar traindo as memórias da minha mãe. 

— Willow Creek tem muito a oferecer, acredite. — insistiu Philips. 

— E vocês? Kael disse que se mudam com frequência. Pretendem ficar aqui por muito tempo? — questionei, curiosa com a ideia de um dia reencontrá-los, caso decida voltar a Willow Creek. 

— Chegamos... há pouco tempo, Anne. O meu tio veio primeiro, e aqui estou. Ficaremos aqui por alguns anos, provavelmente. — Kael respondeu. — Então, se você aparecer por aqui novamente, peço que nos presenteie com uma visita. 

— Claro... —respondi. — E vocês podem ir a Chicago, e me visitarem também. 

Os dois se entreolham, depois voltam seus olhares para mim. 

O jantar ficou pronto, e, ao nos acomodarmos à mesa, Kael fez questão de se sentar ao meu lado, uma proximidade que trazia um calor inesperado. Durante o jantar, conversamos tranquilamente entre garfadas, como velhos amigos que trocavam histórias. A comida era deliciosa, rica em temperos e sabores simples, com algo que lembrava um sabor de lar. Depois do prato principal, serviram a sobremesa: uma torta rústica de maçã com um toque de canela e calda quente, que parecia ter sido cuidadosamente preparada. O sabor doce e acolhedor encaixava-se perfeitamente no ambiente de lembranças que preenchia aquela casa.

Após o jantar, Philips, se levantou com um pedido de desculpas educado, dizendo que precisava cuidar de alguns documentos urgentes no escritório. Mas havia algo em seu tom — algo que senti como um gesto deliberado, um espaço proposital que ele criava entre mim e Kael. Assim que Philips saiu, Kael se virou para mim, um pouco hesitante, mas logo recuperando a leveza ao sugerir que eu conhecesse algumas partes da casa.

Ele me guiou com cuidado, mostrando cômodos acolhedores, quadros que pareciam contar histórias da família, e cada espaço revelava um pouco mais daquela estranha e fascinante residência no topo de uma colina. Por fim, Kael me levou até a torre da casa. Dali, a vista era incrível. O cenário noturno de Willow Creek estendia-se diante de nós, pontilhado por poucas luzes da cidade e envolvido por uma vastidão de florestas escuras, beleza pulsante sob o céu estrelado.

Kael olhou para a lua cheia, e havia uma sombra de preocupação em sua expressão.

— Gosto da lua cheia. São bonitas e fascinantes. Quando está cheia, está completa, o ciclo de plenitude, poderosa.  Eu me sinto atraída por ela. 

Ele pareceu refletir sobre minhas palavras, olhando para a lua. 

Então, após um silêncio longo e carregado, Kael, ainda olhando para a lua, olhou para mim.

— Eu me sinto atraído por você, desde a primeira vez em que pus os olhos em você — sua voz estava diferente, suave e sincera. — Entendo que você tenha uma vida em outro lugar, por isso não espero nada, mas gostaria que me permitisse vê-la de novo...

A surpresa me atravessou. Ao mesmo tempo, senti uma onda de emoções, pois eu também me sentia ligada a ele. Era uma atração inexplicável, mas forte, e me vi em um instante de vulnerabilidade, sem saber ao certo o que responder ou o que significava o que estava surgindo entre nós.

— Kael... nós mal nos conhecemos. E... essa atração, que é mútua... —minha voz saiu baixa e rouca, coisa que eu não previra. — Pode ser passageira. 

— E se não for? — a pergunta ficou presa na minha mente. — Não sei se é... passageira. Sinto que não é, Anne. Há muito, muito tempo, eu não sinto algo assim. 

Kael se aproxima de mim, o suficiente para sentir seu cheiro misturado com o frescor da noite. O seu hálito era doce, cheiro de canela ainda está presente. Olhei para a boca dele, e senti vontade de beijá-lo, mas um pensamento intruso me impediu. E se ele me achar fácil demais?  Então, me afastei dele, tentando controlar meus impulsos, que parecia ser difícil diante de Kael. 

— Acho melhor eu ir para casa... — eu disse, sem olhá-lo nos olhos, com medo de não conseguir resistir a ele. 

— Tudo bem, eu a levo. 

Assenti. 



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