Abri os olhos devagar, sentindo meu corpo ser balançado levemente a cada passo. Estava nos braços de alguém e, ao olhar para cima, encontrei o rosto de Nick, que me carregava em silêncio, os olhos fixos no caminho à frente. Confusa, desviei o olhar e percebi que estávamos indo em direção a uma aldeia, um lugar que nunca tinha visto antes.
Senti algo úmido escorrer pela testa. Passei a mão e vi que era sangue. Nick, atento, percebeu que eu tinha acordado.
— Você está ferida, mas está bem. Foi só um corte. — disse ele. — Você ficará bem.
Ainda tonta, tentei entender o que havia acontecido.
— O que... como isso aconteceu? — perguntei, tentando juntar os pedaços que surgiam na minha memória.
— Você sofreu um acidente. Parece que perdeu o controle o carro. — Nick respondeu enquanto continuava andando.
Fragmentos da lembrança surgiram de repente: o animal enorme parado na beira da estrada, meus olhos que se desviaram para ele, o volante fugindo das minhas mãos... Balancei a cabeça, tentando clarear a mente.
— E o meu carro? — perguntei.
— Vou pedir que alguém o leve para uma oficina — ele respondeu, com uma serenidade que, por algum motivo, me acalmou um pouco.
Assim que chegamos à aldeia, Nick me colocou de pé, me guiando até um homem de meia idade que parecia nos aguardar com um olhar sério e concentrado. Ele se aproximou devagar, avaliando meu rosto e depois o ferimento, mas logo fechou os olhos, como se estivesse refletindo sobre algo. Quando os abriu novamente, seus olhos brilharam de uma maneira que me fez estremecer. Ele me encarou de um jeito que nunca tinha visto alguém fazer, como se estivesse vendo algo além do meu rosto.
O homem então virou-se para a mulher que estava ao seu lado, outra figura de meia idade, e disse em um tom de voz baixo, mas distinto o suficiente para que eu ouvisse.
— Ela é especial.
Nick franziu as sobrancelhas, claramente tão confuso quanto eu, mas não perguntou nada. Apenas lançou um olhar questionador ao homem e, em seguida, voltou-se para mim.
— Vou deixá-la em um local seguro. Depois disso, posso levá-la de volta para casa.
A ideia de ficar naquele lugar estranho me causou um certo receio, mas, ao mesmo tempo, havia algo ali que me deixava curiosa. As palavras do homem, a presença silenciosa da mulher ao seu lado... Tudo parecia carregado de um significado que eu ainda não entendia.
— Quem era aquele homem? — perguntei a Nick, ainda tentando processar a intensidade do olhar que o homem havia me lançado.
Nick parou por um segundo, como se ponderasse o quanto devia dizer, mas então respondeu.
— É meu avô, Tahatan. Ele é muito respeitado por aqui... Na aldeia, é como um conselheiro, alguém que as pessoas procuram para orientações e... respostas.
Tahatan. O nome soava antigo e poderoso, como se carregasse consigo as histórias de várias gerações. Nick me deitou em uma cama baixa, que fazia parte de um pequeno cômodo simples, mas acolhedor, e logo apanhou uma caixa de primeiros socorros. Ele começou a limpar o corte em minha testa com uma delicadeza surpreendente para alguém de aparência tão forte.
Enquanto ele cuidava de mim, eu não conseguia desviar o olhar. Observava cada detalhe: a forma como seus dedos seguravam o algodão, a precisão de seus movimentos... tudo parecia tranquilo, meticuloso. Talvez porque ele estivesse tão próximo, o espaço entre nós parecia ainda menor do que realmente era, e meus olhos acabaram se fixando nos dele, sem que eu percebesse.
— Não me encare assim, Anne — ele disse, um leve tom de desconforto escapando na sua voz. — Assim eu perco a concentração.
Nossos olhares se encontraram por um segundo intenso. Seus olhos eram de um castanho profundo, mas com um tom amarelado que parecia brilhar com a luz do cômodo. O mesmo castanho que eu vira, sem sombra de dúvida, nos olhos do lobo dos meus sonhos. Minha respiração ficou suspensa. Seria possível? Por um instante, senti vontade de contar a ele sobre os sonhos, sobre o lobo que parecia estar em todo lugar e ao mesmo tempo em nenhum.
Mas uma voz interna me conteve. Algo me dizia que ele talvez não entenderia, ou pior, poderia me considerar... louca. Então apenas respirei fundo, desviando o olhar para minhas próprias mãos, e fiquei pensando. Será que eu realmente vi um animal antes de perder o controle do carro?
Nick terminou de limpar o corte e me entregou um copo d'água. Ainda me sentia zonza, mas bebi de um gole só, tentando me recompor. Ele então perguntou.
— Está com fome?
Balancei a cabeça, com um sorriso fraco.
— Não, obrigada. Já causei transtorno demais.
— Não é transtorno nenhum, Anne.
Antes que pudesse responder, a porta se abriu, e o avô de Nick entrou, cruzando o ambiente com uma expressão atenta. Nick e eu trocamos um olhar rápido, igualmente surpresos com sua presença repentina. Ele veio direto em minha direção, os olhos fixos em mim, examinando-me com uma curiosidade intensa.
— Você é parente de Mary Bevan? — perguntou.
Engoli em seco e confirmei.
— Sou Anne, filha dela.
O homem suspirou, como se aquilo confirmasse algo que ele já suspeitava. Ficou em silêncio por um momento, pensativo, então perguntou.
— E o que faz aqui, tão longe de casa?
— Minha mãe morreu recentemente. Estou aqui para resolver algumas coisas e vender a casa que ela deixou, e logo voltarei para Chicago. — respondi.
Ele balançou a cabeça, ainda me olhando como se visse algo que eu não via em mim mesma.
— Anne, você não está aqui por acaso. Há muito tempo estamos aguardando seu retorno. Este lugar, esta aldeia... eles guardam mais para você do que pode imaginar.
Essas palavras deixaram-me desconcertada, sem saber o que responder. Afinal, era a segunda vez que alguém sugeria que eu estava predestinada a algo maior. Suspirei, tentando não deixar a impaciência transparecer.
— Por que todos perguntam sobre minha mãe? Eu não entendo...
Ele me olhou por mais um longo momento, como se tentasse avaliar até onde poderia me contar.
— Sua mãe, Mary, era uma mulher de imensa importância, Anne. A morte dela, embora triste, marca o início de um novo ciclo. E você, sendo filha dela, traz a responsabilidade de dar continuidade a isso.
Minha mente girava. Que ciclo? Que importância? Em um impulso, questionei.
— Mas... por que vocês falam dessas coisas como se fosse óbvio? Como se eu já devesse entender. — em um impulso, questionei.
— Logo entenderá, criança. Em breve.
Soltei um suspiro quase impaciente, vendo as peças de um quebra-cabeça que não sabia montar.
— E os símbolos que minha mãe costumava desenhar? Os que deixou nos cadernos... o senhor sabe o que eles significam? — fiz a pergunta que realmente me corroía, por fim.
O homem assentiu, e a gravidade em seu olhar fez minha pele arrepiar.
— Estes símbolos não são simples desenhos. Eles fazem parte da sua história, Anne. Da história de sua mãe, da história da sua família... e de muitas gerações antes de vocês.
Uma sensação de antecipação tomou conta de mim, como se estivesse às vésperas de descobrir algo imenso. Mas, por mais que eu quisesse saber, parecia que ele não queria contar.
— Em breve, Anne, tudo ficará claro. — ele apenas completou com um tom enigmático.
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Eclipse de Sangue
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