P.OV – Narradora:
O ar estava denso, carregado com o cheiro agridoce de especiarias e ervas, enquanto Evie atravessava o corredor escuro da loja de ocultismo no French Quarter. Pequenos sinos pendurados na porta tilintaram quando ela entrou, e as prateleiras estavam forradas com objetos místicos: velas, amuletos, garrafas de vidro com líquidos coloridos e símbolos gravados. O ambiente lhe era familiar e reconfortante, como uma extensão da casa da sua avó. Mas hoje, o ar parecia mais pesado, como se algo a observasse, oculto nas sombras.
Ela havia passado semanas a tentar evitar o inevitável: abraçar o poder que Mami Wata lhe dera. No entanto, os ataques sobrenaturais que assolavam a cidade, as visões perturbadoras que a assombravam todas as noites, e as mudanças em si mesma haviam se tornado impossíveis de ignorar. Evie precisava de respostas. E apenas uma pessoa poderia ajudá-la.
No fundo da loja, sentada numa mesa de madeira antiga, cercada por velas tremeluzentes e cartas de tarô espalhadas, estava Madame Solene. Era uma mulher imponente, com cabelos grisalhos presos num coque apertado, os olhos escuros como poços de sabedoria e mistério. As rugas no seu rosto pareciam contar histórias de incontáveis vidas.
— Eu sabia que virias, Evie. — disse Solene, a sua voz baixa e cheia de certeza. — A corrente que te liga ao outro lado está mais forte do que nunca.
Evie respirou fundo e sentou-se em frente a Solene. Mesmo sem palavras, a tensão no seu corpo denunciava a luta interna que travava. Ela não sabia como começar, mas, como sempre, Solene já entendia o que ela precisava.
— O poder que recebi... — Evie começou, hesitante. — É como se ele me controlasse, ao invés de eu controlá-lo. Essas visões, os espíritos que aparecem sem aviso... Eu não consigo viver assim.
Solene inclinou-se, estudando-a com um olhar penetrante.
— O poder de Mami Wata não é um presente leve. Ele vem com uma dívida. E acho que já percebeste que o preço não é apenas físico, mas também espiritual. O que vês, são os ecos do passado e as presenças que te cercam, estão ligados à água que corre no teu sangue agora. A água é memória, Evie. E agora és a guardiã dessas memórias.
Evie recostou-se na cadeira, sentindo o peso das palavras de Solene. Desde o incidente no rio Mississipi, onde quase morreu a tentar salvar o turista, a partir daí, nada mais foi o mesmo. Ao ser puxada para as profundezas, não apenas o seu corpo, mas a sua alma havia sido transformada. Ela ganhou habilidades além da compreensão humana, mas a que custo?
— E como posso controlar isso? — Evie perguntou, a sua voz soando mais urgente do que ela pretendia. — Como posso impedir que esses espíritos e visões destruam-me?
Solene sorriu levemente, como se a resposta fosse simples.
— Não podes controlar algo que não compreendes. Primeiro, precisas entender a verdadeira natureza do teu vínculo com Mami Wata. E para isso, há um lugar onde deves ir. Um lugar que detém as respostas que procuras.
Evie inclinou-se para frente, atenta.
— O que é? Onde?
— O Cemitério de St. Louis. — disse Solene, a sua voz agora um sussurro conspiratório. — Entre os túmulos de velhos praticantes de vodu e aqueles que guardam segredos ancestrais, está a chave para o teu verdadeiro poder. Mas cuidado... o caminho até lá está repleto de perigos. Há mais coisas em jogo do que podes imaginar.
Evie sentiu um arrepio percorrer a sua espinha. A ideia de ir ao cemitério à noite a incomodava profundamente. Ela já sabia que o lugar era o epicentro de várias atividades sobrenaturais, mas se Solene dizia que as respostas estavam lá, então ela teria que enfrentar os seus medos.
— O que eu devo procurar? — perguntou Evie, tentando mascarar a sua inquietação mas falhando miseravelmente.
Solene levantou-se e pegou uma velha boneca de pano de uma prateleira próxima, entregando-a a Evie.
— Isso pertenceu à tua avó. Ela praticava vodu com mais intensidade do que sabes, Evie. E parte do seu legado está enterrado naquele cemitério. Segue as vozes, segue os sinais. Serás guiada.
Evie segurou a boneca com cuidado, sentindo um estranho formigamento nas suas mãos. A conexão com a sua avó, a mulher que a criara, de repente parecia mais forte, mais palpável do que nunca.
— E quanto a Darius King? — perguntou Evie. — Ele está envolvido nisso, não está?
Solene estreitou os olhos, o nome de Darius provocando uma reação visível na sua expressão geralmente imperturbável.
— Ele não é apenas um homem poderoso no mundo dos negócios, Evie. Ele é uma sombra que se esgueira entre os dois mundos, usando o poder do submundo para alcançar os seus objetivos. Ele sabe sobre ti. E não vai parar até te corromper ou destruir.
— Por quê? O que ele quer?
Solene suspirou, como se a resposta fosse uma condenação inevitável.
— O que todos os homens ambiciosos querem: poder absoluto. Ele quer controlar o equilíbrio entre os mundos, e tu és a chave que pode abrir essa porta.
A sensação de estar a ser observada aumentou na Evie. A loja de Solene, que antes parecia aconchegante, agora parecia sufocante, como se as paredes estivessem se fechar sobre ela.
— Só toma cuidado, Evie — disse Solene, a sua voz grave e séria. — O caminho à frente é sombrio, e precisarás de toda a tua força para sobreviver. Mas lembra-te de uma coisa: não importa o que Darius tente, tens algo que ele nunca terá. A conexão com o mundo espiritual. Isso é tanto a tua maior força quanto a tua maior fraqueza.
Com um aceno leve, Evie saiu da loja, a boneca de pano firmemente presa nas suas mãos. Ela sabia que as próximas horas seriam cruciais, não apenas para ela, mas para todos em Nova Orleans.
O vento soprava forte enquanto ela caminhava pelas ruas desertas, e o cemitério de St. Louis aguardava — um campo de segredos e verdades enterradas.
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As Marés do Destino
FantasiaSinopse: Evelyn Hart sempre foi uma mulher comum, com um trabalho comum, ela é guia turística nos históricos e misteriosos becos de Nova Orleans. Criada pela avó, uma praticante de Vodu, a Evie cresceu rodeada por lendas e por histórias sobrenaturai...