─• CAPÍTULO 2 •─

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A garota guarda o mapa em seu bolso — Eu preciso te mostrar a casa, né?

— É, só pra saber por onde eu consigo fugir.

Ela revira os olhos e sinaliza para que eu a siga. A mulher caminha até a porta e abre, e eu a acompanho, ainda cautelosa, observando cada canto. Passamos por um corredor estreito e escuro, com algumas prateleiras encostadas na parede, cheias de latas de comida, remédios e até algumas armas, todas organizadas de maneira meticulosa.

Que desnecessário, hein...

— Bem-vinda ao meu palácio improvisado — Ela diz com um leve toque de sarcasmo, enquanto abre a porta de um cômodo menor.

Ao entrar, noto que o quarto é simples, mas organizado. Há uma cama de casal encostada na parede, coberta com lençóis que, apesar de velhos, estão bem dobrados. Ao lado, uma pequena mesa improvisada, com alguns itens de higiene, uma faca de caça e uma lanterna. Na parede oposta, uma janela barrada com tábuas, com pequenos feixes de luz passando pelas frestas.

— É aqui que você dorme? — Pergunto, observando o quarto.

— É. Não é um hotel cinco estrelas, mas é seguro — Ela responde, enquanto dá de ombros — As tábuas ajudam a manter os zumbis e qualquer curioso do lado de fora.

Olho para as tábuas e depois para ela — E você acha que isso vai segurar qualquer coisa que decida entrar aqui?

Ela cruza os braços, sem perder a compostura — Já segurou até agora. E por aqui, não falta gente querendo tentar.

— Metidinha — Murmuro.

Ela solta um suspiro irritado e se afasta em direção à porta, e eu a sigo. Ela aponta para uma outra porta ao fundo do corredor — Aquele é o banheiro. Se precisar de algo, tenta não fazer muita bagunça. Água é escassa, então seja rápida.

— Eu sei, mãe — Resmungo.

— Você é sempre impaciente assim?

— Só com quem me sequestra, me obriga a ajudá-la e depois me trata igual criança.

— Específico, né? — Ela revira os olhos.

— Se identificou?

Ela não responde, apenas lança um olhar entediado antes de descer as escadas. Sigo-a até o andar de baixo, onde vejo uma sala de estar simples e uma cozinha surpreendentemente organizada, cada item estava em seu lugar.

Cara, pra quê tanta organização em um apocalipse?

A cozinha, apesar de suas limitações, parece ter sido cuidada com atenção. Os eletrodomésticos e as superfícies estão limpos, sem um único resquício de sujeira. Olho para os objetos da cozinha arrumados com tanto cuidado e me pergunto se essa é a maneira dela de manter algum controle em meio ao caos.

— Você realmente tem um jeito peculiar de lidar com as coisas — Comento, tentando quebrar o silêncio.

Ela dá uma olhada ao redor antes de responder — Organização é essencial. Isso evita que tudo vire uma bagunça, e bagunça é a última coisa que preciso agora.

— Você quem sabe.

Enquanto ela começa a se ocupar com a cozinha, guardando o que tirei do lugar e verificando os suprimentos que pegou, noto algo na prateleira ao lado. Um livro, encadernado em couro, com as bordas das páginas um pouco desgastadas. Puxei-o da prateleira, curiosa.

— Isso é um diário? — Perguntei, erguendo o livro

Ela se virou rapidamente, com um olhar sério — Não mexe nisso!

— Ah, qual é... — Abri o livro e comecei a folhear. Para minha surpresa, ele estava cheio de receitas culinárias.

Ela se aproximou rapidamente e tirou o livro das minhas mãos, um pouco mais bruscamente do que eu esperava — Já disse pra não mexer nisso, porra.

— Desculpa, eu não sabia que receitas eram segredo de estado — Comentei.

Ela suspirou, parecendo tentar controlar a irritação — Não são só receitas. Era da minha irmãzinha. Ela adorava cozinhar, e eu... Bem, eu tento manter isso vivo.

— Oh — Foi tudo que consegui dizer. Droga, eu estraguei tudo de novo.

O silêncio se instalou entre nós, tão carregado de tensão que parecia quase palpável.

Ela fechou os olhos por um momento, respirando fundo, como se tentasse afastar a memória dolorosa. Quando os abriu novamente, vi uma única lágrima escorrer por sua bochecha, mas ela rapidamente a limpou com a costa da luva que usava, virando-se de volta para os suprimentos.

— E-Ei... — Comecei, dando um passo na direção dela, mas ela ergueu a mão, me interrompendo.

— Não — Disse, com a voz firme, mas trêmula — Eu estou bem. Não preciso de ajuda.

Fiquei parada onde estava, incerta sobre o que fazer ou dizer. A força que ela tentava mostrar era óbvia, mas era claro que ela estava se segurando para não desmoronar.

— Beleza... — Recuo, percebendo que algumas pessoas simplesmente não querem ser ajudadas.

Ela voltou a se concentrar nos suprimentos, organizando-os meticulosamente. Eu observei em silêncio, sentindo a tensão ainda presente, mas respeitando seu espaço. Não queria piorar as coisas.

Depois de alguns minutos, decidi que o melhor a fazer era me afastar e dar a ela um pouco de tempo sozinha. Comecei a me dirigir para a porta, mas antes que pudesse sair, ouvi sua voz baixa e hesitante.

— Desculpa... — Ela murmurou, sem se virar — Eu sei que você só queria ajudar.

Parei e me virei para ela, mas mantive a distância — Tudo bem. Todos nós temos nossos jeitos de lidar com as coisas.

Ela soltou um suspiro, ainda focada nos suprimentos. — É só que... perder alguém assim... é difícil. E às vezes parece que a única coisa que posso controlar é isso aqui.

Eu sei como é, sei como é esse sentimento de perda. É horrível. Matar a própria mãe e ver sua irmãzinha morrer em seus braços já é o suficiente para alguém perder a cabeça. Pra eu perder a cabeça. Parece que um pedaço da minha alma foi arrancado, deixando um vazio insuportável que nunca se preenche. Toda noite, os gritos dela ecoam na minha mente, e o olhar vazio da minha mãe me assombra. É como se eu estivesse morta por dentro, vivendo apenas para me provar ser forte, mas me sentindo completamente vazia e perdida por dentro.

Eu sei muito bem o que você está sentindo, mas não sei te ajudar. Nem sequer sei me ajudar.

— Eu entendo — Respondi suavemente — E eu tô aqui, caso mude de ideia e precise de alguém pra conversar.

Ela assentiu levemente, sem tirar os olhos do que estava fazendo. Percebi que, apesar de sua resistência, havia uma garotinha assustada dentro dela, querendo apenas se esconder e chorar.

Dei mais um passo em direção à porta, pronta para deixá-la sozinha — Vou dar uma volta, vou ver se encontro algo útil lá fora.

Ela finalmente se virou, seus olhos encontraram os meus por um breve momento — Cuidado. Não quero ter que procurar um novo ajudante.

Sorri levemente, sentindo um pouco da tensão diminuir — Pode deixar. Sou boa em não ser pega.

Com isso, saí da cozinha, deixando-a com seus pensamentos. Acho que foi a coisa certa a se fazer, ela não sabe compartilhar o que sente e ficaria ansiosa se eu me mantesse por perto.

Só espero que ela melhore.

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⏰ Última atualização: Nov 15 ⏰

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