A Despedida

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Caminharam em silêncio pelo bosque ruidoso, o som do riacho desaparecendo nas árvores atrás delas enquanto o canto de tordos se fundia ao de estorninhos estridentes, enquanto a luz do sol desaparecia nas folhagens altas, permitindo que as sombras inundassem o chão coberto por folhas decompostas e decrépitas. Aos poucos, as brumas surgiam por entre as árvores, driblando a última luz do dia que teimava em tingir o teto em esmeralda, brotando aqui e ali sem que elas dessem conta, até que não pudessem mais ver onde metiam os pés. O canto dos pássaros diurnos ficava para trás, quando um piado alto e triste quebrou a mesmice da caminhada - Uma coruja de Atena está chorando - , Eralógon olhou para o alto inclinando o rosto para deixar uma das orelhas mais alta enquanto caminhava - O que entristece a Deusa?

Beza ouviu o lamento mas não se importou, o pio das corujas de Atena não congelava sua alma na madrugada como o rasgar de mortalha das grandes rapineiras noturnas. Metia seus pés por entre as raízes escondidas pela névoa fria, reconhecendo o sobrenatural que a envolvia, mas agora desperta para os fatos da sua vida. Ela era filha de um mito e uma bruxa, andava sobre brumas seguindo a única mulher que poderia tornar tudo aquilo crível. O grito da coruja ainda ecoava quando todos os outros sons desapareceram, lembrando-na da despedida, da necessidade de deixar a clareira e, pior, seu dono e pai, até que o silêncio se instaurou e a visão ficou turva, tento que adivinhar qual vulto era da sua mãe, caminhando sem vacilar por entre arbustos e troncos retorcidos. O tempo passou sem que ela se desse conta, mas deviam estar caminhando por horas, tamanho era seu cansaço e dor, e tamanho era sua saudade do homem que a deflorou, e então se deu conta de que a dor que sentia não era nos pés, nem em suas entranhas, vulva, coxas, seios, em todos os lugares que fora tocada com força pela besta que reconheceu como pai. Suas ancas deveriam doer a cada passo, suas costas se arquear e ela fechava os olhos em busca de conforto, mas acordava com o balanço do corpo, pé ante pé, deixando o encantamento para trás e voltando à sua realidade. A dor que sentia não era física, era a sensação de se despedir de um novo mundo, inalcansável até aquela manhã.

Cada vez que fechava os olhos e os abria, as brumas pareciam dar lugar à escuridão vazia da noite. As formas dos troncos voltavam ao espectro da visão e ela olhava para trás para ter certeza de que a clareira estava distante. Eralógon caminhava confiante, mas ela podia notar que suas pernas se contraíam a cada passada, coxeando levemente quando tinha que se inclinar para ultrapassar um galho mais baixo ou saltar uma raiz. O terreno começou a ficar mais familiar, as árvores foram rareando e o brilho das estrelas apareceu no céu noturno, enquanto o bosque ficava para trás e elas caminhavam sem falar sobre suas dores. A lembrança de tudo que ocorrera ganhava a realidade através dessas dores, cada passo sofrido era resultado da luxúria a que se submeteram na colina ensolarada, e a escuridão parecia ser o resultado. Com esforço, ela se colocou ao lado da mãe na caminhada e seus olhos se fixaram, uma na outra, como se conversassem sobre o que aconteceu, em busca de resposta, e o fogo que ardia na íris de Eralógon parecia afirmar que a noite era o resultado daquilo, mas que não era um castigo e sim um prêmio. Aquele olhar reconfortou sua alma e calou sua boca, ela não precisava mais de respostas, tudo estava em seu lugar, assim como o casebre de pedras brancas que surgiu após a última colina e ficava mais próxima a cada passo, até que alcançaram a soleira de pedra e a porta de madeira que abriu com um rangido quando a mãe empurrou fazendo força, revelando o interior abafado, da mesma forma que deixaram quando saíram para encontrar seu destino. O lume morrera havia bastante tempo sem ninguém para ajudá-lo, e Beza se apressou para alimentá-lo com gravetos secos e delgados, seguidos por galhos mais grossos e pesados, enquanto Eralógon fechava a porta com uma trave de madeira, separando-as do ar frio da noite que avançava sobre a cabana. As mãos franzinas da menina brigavam com a pederneira, jogando fagulhas sobre a isca de palha e musgo que instalara entre os gravetos, iluminando o cômodo por pequenos instantes, sem sucesso em tirar da madeira a sua luz natural, obrigando Eralógon a tomar a pedra e o pedaço de metal de suas mãos e fazer o gesto lentamente para que ela pudesse ver - Não intente o atrito, mas sim a ardência - disse a bruxa, sorrindo com os olhos para a menina - Você precisa fantasiar com o fogo, entregar seu desejo a ele, para merecer seu jorro de calor -, devolvendo a ferramenta para suas mãos, que atritaram novamente pedra e metal, refletindo sobre as palavras da mãe. Seus ensinamentos, agora, ganhavam outro significado, outra urgência, ela era filha desse conhecimento e sua sabedoria era baseada na experimentação e na entrega, na urgência para arder, e agora ela sabia como era se entregar e como sentia a falta daquela besta que poderia aplacar seu desejo e fazê-la acender como os gravetos dispostos no escuro sobre o braseiro morto, sentia seu rosto arder e procurou pela vergonha por pensar em tais coisas, mas não havia, ela sabia quem era e, mais forte, quem ela queria que estivesse dentro dela, aplacando sua fome. Suas mãos se moveram e faíscas iluminaram o cômodo como nunca vira, chicoteando pela palha e tornando a isca em brasa, que foi estimulada pelo sopro quente da mãe, que sorria para a menina e a olhava sem piscar, no fundo da sua alma.

A luz inundou o casebre, devolvendo as cores para seu interior rústico e modesto, acompanhada pelo calor do braseiro e o cheiro de fumaça produzida por galhos de macieira, que traziam doçura aquela hora. Eralógon caminhou até a cama de peles e soltou o broche dourado que segurava sua túnica, que desceu ao chão de pedra escorregando pelo seu corpo nu, exibindo suas formas generosas para a menina, que observava com novos olhos algo que era tão trivial. A lembrança de como sua mãe recebeu seu pai, de como ambas se entregaram à luxúria de Paterastís e delas próprias transformava seu pensamento e acendia nela um calor muito maior que o do lume crepitante. Se aproximou da mulher e deixou que ela desatasse o nó do seu cinto de prata, que caiu pesado ao lado da túnica lilás, e puxou sua túnica branca, a mais branca que possuía, por sua cabeça, deixando as duas despidas, a mãe apenas com os braços enrolados em tiras de ouro e os cabelos ainda em fitas lilases, mas a filha como viera à existência se arrepiou sem saber se pelo frio da noite ou pela situação. As duas exalavam o odor pungente do marido e pai, uma mistura de almíscar e sêmen, suor e prazer, que envolviam seus corpos nus nas sombras da casinha, tornando aquele momento uma extensão do dia que viveram na clareira, alimentando seu desejo que parecia tão vivo quanto o braseiro acendido pela menina. Eralógon envolveu Beza com seus braços e a menina sentiu o toque quente da sua pele e o cheiro da sua mãe misturado ao do seu pai, fazendo-a umedecer com a lembrança de ser possuída e fazer a besta relinchar alto como uma tempestade de trovões - Deite-se, mulher de Paterastís - sua voz era alta e firme, carregada de orgulho - Daqui pra frente tu serás tão independente quanto eu, mas agora deves ouvir sua mãe e dormir. - puxou as peles para dar lugar à menina, que deitou sem protestar, atenta ao que a mais velha dizia - Deves descansar para recuperar suas forças, amanhã tomamos um banho de sílfio para lavar o corpo e reacender o espírito. - se abraçaram assim, inspirando profundamente como se quisessem manter perto seu amante, o cheiro alimentando seu calor, fazendo-as adormecer em sonhos profundos de magia e sabor, como se entrassem num chifre de carne pulsante que revela um mundo novo e quente. Mas um mundo que precisa ficar para trás, ao menos por enquanto.

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