A Prática

167 7 4
                                    

O som da água chapinhando nas pedras era familiar e acolhedor, assim como a explosão de cores que a clareira manifestava nos raios de sol matutinos, dourados e quentes, que mergulhavam até a relva baixa que acariciava os pés magricelos e brancos, metendo-se pelos dedos em tons de verde, e ela atritava a sola para sentir a umidade e o contato com o solo paternal, tão desejado a cada instante que passava de olhos abertos. Não havia cornucópia, frutas ou almofadas, apenas as pedras, a água despencando do alto e se acumulando no riacho, o verde salpicado pelas flores amarelas por todo lado e ele, seu progenitor e amante, imponente não apenas pelo tamanho, mas pelo contorno dourado que a luz criava em sua pele clara, seus cabelos e cauda prateados e seu pelo branco. Era uma criatura magnífica, que capturava seu olhar e inspirava seu desejo, desde que aprendera sobre sua existência. Andou lentamente, sentindo a grama afundar sob seu peso e tentando prolongar aquele momento, querendo estar na sua presença para sempre. Terá Eralógon experimentado tal desejo? - ela imaginou, pensando em como a mulher voltava para casa a cada sumiço, sem qualquer aflição em seu rosto, resignada a ter poucos momentos ao lado do seu homem e senhor, mesmo que esses poucos momentos fossem tão longos para ela, sozinha entre colinas e as tarefas domésticas. Ele a olhou do alto, apoiado nas quatro patas, o olhar sereno de um ser que experimentou a companhia de bruxas e mitos, mas o corpo não estava nu como de costume, seu tórax estava escondido por uma couraça que parecia ter crescido acima da sua própria pele, tal era o jeito que reproduzia a forma do seu peito, abdômen e dorso, meticulosamente moldada em couro grosso e negro, com um grande sigilo moldado em ouro em seu centro, indo logo abaixo da gola até o umbigo, constituído por uma haste vertical atravessada por outra menor na horizontal logo acima da base e encimada por um arco. Seus braços estavam cobertos por braceletes negros de couro com detalhes geométricos em ouro, amarrados com tiras grossas, apertando seus punhos e terminando logo abaixo do cotovelo, e um deles segurava um elmo negro de metal que tinha uma vasta crina de fios dourados, com tiras de couro soltas para que se amarrasse em sua cabeça. Pendurado num cinturão de fios de prata trançados, repousando em sua bainha de linho alvejado e reforçada em metal havia uma espada de gume duplo e largo, executada em bronze e decorada no cabo com couro e ouro, e uma grande lança negra com ponta de bronze reluzente estava fincada no chão pela conteira, ao seu lado, pronta para ser empunhada pelo extraordinário guerreiro bestial.

Ela, porém, estava desnuda, sentindo o sol esquentar seu rosto, o colo, seus seios volumosos e seus cabelos negros. Seu braços estavam arqueados e suas mãos emolduravam seu ventre, que era exibido a ele, alheia às suas vestimentas. Ela sorria, orgulhosa por ser propriedade dele, por estar diante dele, pelo privilégio daquele momento, tão fulgido quanto breve. Se aproximava sensualmente, as ancas oscilando junto do seu quadril ossudo a cada passo lento, oferecendo a ele sua beleza e juventude. Suas mãos deixaram seu ventre e tocaram seu torço, sentindo a aspereza do couro negro e o frio dos detalhes dourados, os dedos languidos enquanto as mãos se viravam, como se quisesse acariciar a couraça. Olhou profundamente nos seus olhos e notou que ele a encarava de volta, o cenho franzido e o sorriso sendo furtado pelo momento, e então ela notou que suas íris brilhavam como chamas. E então percebeu que, de fato, as chamas a cercavam, tomando a clareira e substituindo o dourado das flores, e agora tudo ardia num incêndio incontrolável cujo cheiro era de pão queimando em brasa. A fumaça sucedeu o fogo, envolvendo seus corpos e turvando sua visão, roubando o dourado do sol, das flores e, por fim, do próprio fogo. Ela fechou seus olhos buscando refúgio na escuridão, mas o cheiro da fumaça continuava.

Abriu os olhos e deu com a fumaça por todo lado, mas o fogo sumira. estava de volta ao casebre de paredes feitas com pedras brancas, de pé com seus pés descalços na pele estendida em frente à cama para evitar o frio do chão, as duas mãos erguidas no ar, guardando a sensação de acariciá-lo. O centeio embolorado queimava dentro do caldeirão seco, como ela havia aprendido com Eralógon, primeiro a umedecer o centeio ainda nas espigas durante a lua nova, depois a guardá-lo embrulhado em couro de cabra debaixo das palhas da cama até a secagem sob o sol na manhã após a lua cheia, guardando as ramas em potes de barro próximos ao fogareiro para que permanecessem sempre secos, e do pote ele era despejado direto no ferro do caldeirão e colocado sobre a chama forte do braseiro até que o calor ardesse as espigas e a fumaça tomasse o ambiente daquele jeito, preenchendo todo o interior da casinha, para que ela inspirasse e abrisse seu corpo à Grácia Pasitea que embalaria sua consciência e a entregaria ao próprio filho Morfeu que, através do seu reino, daria à menina respostas aos seus anseios. A prática, ensinara Eralógon, era perigosa pois uma vez mergulhada no relaxamento, ela poderia esquecer do tempo que transcorre no mundo da casinha de pedras brancas e respirar mais fumaça que pudesse lidar, saltando do reino de Morfeu para a casa de Hades, mas essa já era a quarta vez que ela buscava seu homem-cavalo e nas três anteriores puderam se entregar à carne e ao amor, mas essa foi diferente, seu pai não estava disposto ao amor, muito pelo contrário, mostrou-se resoluto e pronto para a guerra, portando o sigilo da sua casa na armadura e as armas de Quíron. Sua mãe a advertira, também, sobre o que poderia ser interpretado daquela viagem, mas até então ela tinha experimentado a realidade de ser possuída pelo seu amante, e para ela não era sonho. Mas, agora, a realidade já não era tão desejada e ela rodopiou pelos calcanhares, pedindo a Morfeu perdão por abusar do seu reino em prol da satisfação dos desejos de mulher que ela não conseguia evitar, desde que descobriu que sua boceta poderia aguentar tamanho abuso do seu próprio pai.

Seus pulmões ardiam como se ela ainda estivesse na clareira envolta em chamas, estava nua no interior da casa e começou a tossir quando percebeu que a realidade vinha cobrar o preço pelo sonho, sentindo espasmos em seu tórax enquanto lágrimas rolaram por seu rosto. Ela precisava de ar puro, seu pai ficara para trás na arte da fumaça, agora ela estava só e sufocando, jogou seu corpo para frente e se esforçou para retirar a trave da porta e, num último esforço, pulou para o exterior, cuspindo e amaldiçoando a fumaça. Seu corpo foi imediatamente açoitado pelo frio enquanto seus pés afundavam na neve e o vento exterior cravava em sua pele milhões de agulhas de gelo, e ela não conseguiu dar mais um paço antes de cair, as duas mãos no chão congelado, os joelhos dobrados e a cabeça para o alto, em busca de alívio para a ardência da fumaça, mas esse alívio não veio, seja pela sufocação ou pelo frio inclemente do inverno que a manteve reclusa nas últimas três luas para agora tomar posse do seu corpo indefeso. Num último ato de súplica, olhou para o céu branco e luminoso, tudo era branco e silencioso, exceto pelos seus engasgos e soluços, mas deus algum ouviu tal súplica e ela desistiu, seu rosto tombando ao chão mas, antes, seus olhos se fixaram num vulto negro que se aproximava para ela, e essa foi a última imagem que ela se lembrava antes do mundo desaparecer.

Brumas de AeolusOnde histórias criam vida. Descubra agora