A Herança

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-Cheira mal, mas ao menos está quente. - Antes disso, ela estava nua e o suor escorria pelo seu pescoço, sua respiração provocava uma nuvem de vapor condensado a sua frente, sua pele ardia pelas mordidas do frio intenso e correr, forçando pé atrás de pé, era a única coisa que parecia mantê-la viva. A dor parecia vesti-la, envolvê-la e  correr no frio parecia ser a única coisa a fazer para se agarrar à existência, correr era continuar viva, mesmo que fosse para sentir dor. Agora ela abria os olhos e viu o teto de madeira e palha - Sua mãe passou pela minha casa na última meia-lua. - ela continuou ouvindo a voz e então se deu conta de que estava viva, embora a dor que sentia no peito a fizesse pensar se essa era a melhor alternativa. A voz não era de Caronte ou outro servo de Hades, ela percebeu, mas de alguém familiar, embora nunca tivesse colocado os pés dentro do casebre. Levou as mãos à garganta antes de se mover na cama, e a dor se irradiava para seus membros e dedos, abriu a boca e forçou o ar pela garganta, o que provocou um espasmo carregado de dor que fê-la expulsar o ar sem controle, numa tosse rouca que a calou pela ardência, arrependida por tentar. - Beba um pouco, - a voz grave e rouca se aproximou com uma das canecas de cerâmica sem alça e sem decoração que elas usavam para misturar unguentos e colocou a borda em seus lábios, empurrando o líquido quente para dentro da sua boca, doce demais e com um pungente sabor de madeira, que ardia não pelo calor, mas pela sensação de esfolar sua garganta à medida que descia devagar. - era melhor ter um pouco de leite para suavizar a mistura, mas sua mãe se desfez das cabritas. - ele olhou em volta do aposento, franzindo o cenho - Esse cheiro de mato queimado vai ficar por muito tempo, até que esteja quente lá fora e você possa abrir a porta para arejar. - retirou a caneca dos seus lábios após um longo gole e a apoiou no descanso do fogão. - Por sorte o pior do inverno já passou, - ele encarou a porta por alguns segundos e depois se voltou pra ela, as sobrancelhas grossas debruçadas sobre os olhos - Sua mãe deveria ter dito que você estava neste estado.

Beza encontrou os olhos do homem e tentou se lembrar de quando fugiu da fumaça para o beijo frio da neve, a sensação de desespero pelo sufocamento e agora se encontrava vestida em lã grossa e limpa, embora também fedesse ao centeio queimado tanto quanto todo o interior do casebre. Harodo foi quem a salvou, chegando em hora tão oportuna para trazer mantimentos como faz quase todas as vezes, não tão frequente no inverno. A fumaça tinha lhe feito tão mal que, provavelmente, não sobreviveria desmaiada na neve, mas a deusa Tique enxerga todos e enviou suas graças na hora mais necessária, na forma do vizinho, após vários dias de atraso pela neve que se acumulava nos caminhos entre sua propriedade e o casebre de pedras brancas. Aquele inverno estava sendo bastante severo, com neve o bastante para cobrir os animais no relento e dizimar vilas inteiras, mesmo naquela região mais alta ao Leste da cordilheira dos montes Pindo. Nua, Harodo provavelmente a colocou nos braços e protegeu do frio, e cuidou da fumaça tóxica vinda do caldeirão, para então levá-la pra dentro e a vestir, tomando conhecimento do seu estado, após mais de seis luas do primeiro e último encontro físico com seu amante, Beza contava diariamente a passagem dos dias e a saudade que sentia de saciar sua lascívia e necessidade. Após todo esse tempo, seu corpo ossudo e franzino se transformava, os seios incharam e os mamilos ficaram maiores e mais proeminentes, o quadril e as coxas engrossaram, a despeito da pouca comida que tinham disponível na estação fria, e seu ventre estava saliente e arredondado. Ali estava sua herança, o testemunho de Paterastís no mundo dos homens, a missão dada a ela ao nascer, a mesma que foi dada a Eralógon, treze anos atrás.

Uma névoa se formou diante dos seus olhos, ela foi tomada por um súbito desespero ao se lembrar que não fizera mal apenas a si ao se expor a tamanha fumaça mágica. Com esforço, ignorou as dores e moveu suas mãos para o ventre, por baixo das mantas de peles, procurando um sinal de que a fumaça não teria matado parte dela, e então sentiu os coices fortes cheios de saudade ao toque sedoso dos seus dedos na pele do ventre, vigorosos e cheios de vida, extraindo dela um suspiro profundo de alívio. - Apesar de tudo, parece que está tudo bem. - disse Harodo, como se entendesse a agitação da menina sob as mantas. - Sua mãe deve conhecer formas mais seguras de se livrar disso daí... - ele apontou com  os lábios inferiores, o rosto severo em desdém. Harodo era baixo para a média da região, com braços e pernas fortes e um tronco largo, que o fazia parecer ter mais idade que os trinta e cinco anos de vida no campo, com a pele sempre muito avermelhada pois ele era muito branco, e as marcas de expressão iniciando seu trabalho de torná-lo um senhor de sabedoria observável. Apesar de bronco e severo, ele sempre foi amável com Beza, cercando-se de maneiras quando vinha deixar os mantimentos e Eralógon não estava, e a menina sempre percebeu no homem um jeito solene e amedrontado de olhar para ela. Dez anos atrás, Eralógon salvara sua filha recém nascida de uma moléstia, e desde então Harodo agradecia compartilhando mantimentos e parte da sua produção. Eram vizinhos, sua morada ficava há apenas um dia de caminhada, e ele vinha carregado e na volta ia caçando, ficando até uma semana fora de casa, para a preocupação da sua mulher e suas incontáveis filhas, pois todos os anos Eralógon ia até lá para ajudar no parto e voltava dizendo que nascera mais uma. -Vá lá, se quer ficar com ele, não bote fogo na casa nem saia pelada pela neve, menina. - ele advertiu, ao ver a expressão de fúrias nos olhos de Beza. -Cê dormiu por um dia inteiro e me deu trabalho te manter aquecida nessa pocilga. - ele deu de ombros enquanto procurava pela machadinha de ferro de Eralógon e se vestia de peles. - Vou ficar mais um dia e volto, minhas meninas ficarão decepcionadas por voltar sem caça. - pelo atraso, ele voltaria apressado para não preocupar a família, Beza sorriu e assentiu. - Tente descansar, vou catar lenha.

Os feixes de luz que teimavam em entrar na cabana mudavam de lugar, esmaecendo com o passar das horas. Beza testou colocar as pernas para fora da cama e se levantou, tremendo de frio sem as mantas. Sentia mais frio que o normal, de fato a temperatura parecia cair mais do que podia se lembrar e resolveu se agasalhar com mais lã e peles, já que estava conseguindo andar. Tratou de colocar ordem no casebre e encheu o caldeirão com água limpa que Harodo buscara e deixou ao lado da tina, metendo dentro dele cenouras murchas, grãos quebrados de trigo, alho e outras ervas que trariam sabor e calor. Enquanto o cozido esquentava, encontrou o centeio embolorado num canto e sentiu suas mãos tremerem ao pegar as espigas com os dedos doloridos e a garganta ardendo, e tratou de enfiá-los de volta no embrulho de couro que voltou para debaixo da cama, de onde não deveria ter saído, ela bem sabia. Eralógon a advertira do uso da fumaça, e que era um risco muito grande tentar se comunicar com seu pai, sozinha e prenha, mas Beza estava perdida de amor e desespero sem ele, precisava vê-lo mais uma vez, sentir seu calor e cheiro, se entregar ao seu membro e sofrer com ele metendo dentro dela, como a potranca que ela era estava destinada a ser fodida. Mas há lições e práticas, e as vezes a teoria precisa ser demonstrada, ela descobrira, e agora restava o desespero de não poder mais estar com seu homem, sob o risco de deitar fora sua herança, concebida na clareira ensolarada, quando ela perdera a inocência. Lembrar, porém, parecia seguro, e ela não resistiu à lembrança e meteu uma mão pra dentro da saia de lã, descobrindo que já estava úmida, apenas por desejar seu homem-cavalo uma vez mais. Como era bom senti-lo, descomunal, cabendo dentro dela, diminuta porém valente, se fazendo do desejo para aguentar cada pedaço dele e querer mais. Entregou-se uma vez mais à memória e ao desejo, imaginando como seria outra vida, em meio à agrestia mística da clareira e a companhia do seu pai.

Mesmo sentindo dores e sem conseguir falar, ela supriu seu desejo e fez o que podia para manter a casa em ordem, o que a ocupou e fez o tempo passar, tornando o interior do casebre obscuro e silencioso, lá fora o início da noite era quieto e frio, e a menina reavivou o fogo do braseiro com palhas e gravetos e acendeu uma lamparina de sebo, iluminando o ambiente e afastando a melancolia da penumbra. O cozido perfumava o ambiente e ela não aguentou a volta de Harodo, bebendo uma caneca cheia de legumes e carnes cozidas, aquecendo seu ventre e renovando suas forças. O susto havia passado, o medo da morte e de nunca ver seu dono, também. A noite já havia coberto todas as colinas ao redor com seu manto quando ela ouviu os passos na neve de Harodo. Prevendo o frio que ele traria, ela se enrolou numa manta grossa e esperou que ele entrasse. A porta se abriu e dela foram jogados para o interior da cabana dois coelhos magros recém capturados e em seguida um facho de galhos amarrados que deveria pesar o mesmo que Beza. Harodo empurrou o amarrado para o interior e o colocou ao lado da porta, observado pela menina que tremia sentindo o vento frio que dois dias atrás quase contribuíra para sua morte. O homem, então, se aprumou buscando sumir com alguma dor nas costas pelo esforço e fez menção de voltar pela porta - Juntei dois fardos de lenha, vai te dar tempo para se recuperar antes de precisar sair. - falou apressado, uma das mãos apoiada no tronco que fazia as vezes de portal antes das pedras - Esse frio está de...

A última palavra se misturou com um baque surdo, que a transformou num gemido, e Harodo olhou para Beza com uma careta de dor e desespero, a mão no batente se crispou mas ele não teve forças para se segurar e caiu de joelhos, e gemendo seu corpo se dobrou para frente e Beza pôde ver, cravada logo abaixo do seu ombro esquerdo, uma dardo de madeira, grosseiro e queimado por fogo, que perfurou peles, lã e carne. Seu rosto se voltou, no no chão, para ela, e seus olhos pareciam plácidos e cheios de certeza, e ela o ouviu dizer em meio ao sofrimento:

-Corra!

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