Os uivos e gritos ecoavam pelas colinas enquanto o vento frio da noite invadia o casebre e Beza sentiu as costas retesadas tremerem num arrepio fugaz, fez força para prender a respiração e suas pernas explodiram num salto por cima do homem caído na soleira da porta, sem tempo para conferir se ele estava realmente morto. Ela pousou na neve fofa do exterior e puxou o ar com força, se arrependendo quando sentiu a dor provocada pelo ar gelado em sua garganta ferida pela fumaça, mas ela precisava tomar fôlego para seguir a última instrução de Harodo - "Corra!", sem saber do quê. A noite estava escura, ela abriu os olhos e procurou a origem dos gritos e então viu um vulto crescer e se aproximar, correndo e uivando em sua direção, não deixando dúvidas sobre o que ela precisava fazer. Ela jogou o corpo para o lado, puxando as pernas da neve e colocando uma na frente da outra, o corpo arqueado e os braços tocando o chão gelado como se pudesse impulsionar seu corpo pequeno em trote pela noite, na tentativa de escapar do assassino que gargalhou com a sua tentativa de fuga. Seu pulmão ardeu e ela tossiu, as pernas falharam e se embolaram, jogando-a no chão que a abraçou com frio e dor, e nele ela permaneceu, e foi de onde viu o homem se aproximar, correndo sem dificuldade na neve, o corpo envolto em vapor, o que aumentava a sensação de perigo que ela sentia. Viu que ele tinha uma faca na cintura e usava roupas de couro e lã, mas não tinha manta ou alguma outra proteção mais robusta para o clima daquela hora. O homem gargalhou enquanto jogava as mãos para frente, mergulhando em cima dela e segurando seus braços, erguendo-a sem dificuldade no ar, os olhos faiscando sob as estrelas e a boca escancarada numa careta de violência e desdém. - É uma coisinha! - ele gritou, no meio de uma gargalhada, para alguém que ainda permanecia nas sombras.
Beza tentou gritar por socorro, mas da sua garganta não saía som além de um ganido fraco e quase inaudível, e mesmo que gritasse alto como uma sereia nada adiantaria, já que estavam há léguas de distância do seu vizinho mais próximo, vizinho esse que jazia na soleira da sua casa. Seu captor e assassino de Harodo a colocou no chão sem muita preocupação, mas manteve seus dedos cravados em seus punhos, apertando sua carne a ponto de fazê-la esquecer da dor que sentia ao respirar. - O merda tem mulher de sobra. - Outra voz surgiu, se aproximando deles. - Tinha! - respondeu o homem que a segurava no chão, rindo. - Agora nós tem. O outro assassino chegou junto deles e se abaixou, enfiando a mão pelas peles e expondo os seios da menina. - Não é ela, - ele olhou para o companheiro, - essa é pequena e franzina. Ele era gordo e careca, tinha o nariz muito grande e a barba era falhada e rala, e estava vestido com peles grossas que aumentavam o seu corpanzil. - Bom pra mim! - gargalhou o outro, puxando a menina para perto, que sentiu seu hálito podre escapar da sua boca desdentada. - Ao menos vai me esquentar. A dor retornou, então, despertando-a para a situação, o perigo era iminente e ela não resistiria ao uso daqueles malditos, sua pureza pertencia a Paterastís, era sua natureza e de alguma forma ela não permitiria que aqueles homens roubassem sua vida. Pareciam ser apenas dois, e de alguma forma conheciam Harodo, Beza temeu pela família do homem e pela sua mãe, pois Eralógon era maior, voluptuosa e cheia de vida após vinte e seis primaveras, enquanto ela apenas começara a desabrochar. O cheiro daquele homem encheu sua mente de ira, ela apertou os olhos e sentiu o ar quente subir de seus pulmões, abrindo a boca para que ele pudesse escapar. A dor era enorme mas o ódio fê-la franzir o cenho, enquanto um gemido de dor escapava. - Cê tá falando, cadela? - O bruto achou graça do seu murmúrio e colocou seu ouvido bem perto da sua boca, para ouvi-la implorar, mas a menina era descendente de Cronos, e o ímpeto do seu pai a tornava uma égua indômita, pronta para escoicear. Sua boca aberta se projetou para a frente e seus dentes sentiram a cartilagem macia e o sabor horrível daquele homem tosco, enquanto ela arrancava sua orelha praticamente inteira, com ferocidade.
O homem gritou alto, um grito que ecoou por todo o vale e depois se tornou um uivo de dor. Ele soltou a menina na neve e levou as mãos ao lugar onde antes ficava sua orelha, que agora era cuspida pela menina, pintando a neve branca com sangue. "Corra", era só o que se passava pela sua cabeça, e assim ela fez, deixando o grandalhão uivando de joelhos e o gordo olhando atônito, vendo-a escapar por entre seus dedos. Correu atrás da menina, mas arfava alto e a amaldiçoava com palavrões e profecias obscenas. Ela cuspia para se livrar daquele gosto metálico e fétido, trotando pela neve na direção do bosque próximo, na esperança de se perder deles, quem sabe até chegar na clareira encantada. Porém as dores voltaram com o esforço, lembrando-a que convalescia e, pior, sua hora já era adiantada. Seu esforço não parecia mais manter o gordo afastado, ouvia sua respiração ofegante cada vez mais perto, podia sentir a ponta dos seus dedos roçando seu cabelo, até que ele puxou uma ponta da pele grossa e ela rodopiou, caindo sentada nas raízes de uma árvore enorme. O homem corpulento rosnava para ela - Sua cadela vadia! -, ofegante mas ainda muito maior e forte para que ela tivesse alguma esperança de lutar. - Você vai pagar pelo que fez com Onoc!
As palavras do homem ecoavam na sua cabeça, tomada por dor, medo e ódio. levantou sua cabeça e viu o céu acima, as estrelas teimando em cintilar por entre os galhos do grande carvalho em que ela se escorava, sentada como numa cadeira, esperando seu destino. O grande carvalho parecia balançar suavemente no vento noturno, e ela parecia entender seu lamento, enquanto sentia coices dentro do seu próprio ventre. - Eu faço qualquer coisa -, ela disse, e dessa vez sua voz se fez ouvida. O homem estacou, olhando para ela com uma careta de surpresa e dúvida. - Ah, você vai fazer tudo, pode acreditar! - Ele cuspiu de lado, esperando a menina negociar, mas não era com ele que ela falava. O carvalho tremeu e gemeu com uma brisa mais forte, e ela segurou suas raízes com as mãos ao lado do seu corpo, tateando a madeira anciã. - Mãe, eu faço qualquer coisa, - suas palavras eram calmas e cheias de orgulho - É da minha natureza, mãe. - E então sua mão direita encontrou a resposta na lâmina enferrujada cravada na raiz, oculta pela escuridão da noite, e subiu para o cabo, de madeira apodrecida e áspera, que apertou entre seus dedos e puxou. O metal deixou a raiz sem protestos e seu ventre escoiceou outra vez, fazendo-a saltar, as duas mãos segurando a faca de caça perdida, com a lâmina para baixo, que cravou na base do pescoço do homem. Sentiu o metal enferrujado penetrar couro, lã e pele, e quando parou de afundar ela deixou seu peso escorrer, abrindo a carne do assassino na frente do grande carvalho. O homem corpulento gritou engasgado e caiu para trás, com ela agarrada à faca.
-Qualquer coisa, mãe.
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Brumas de Aeolus
FantasíaBeza é uma jovem que vive em Aeolus com sua mãe, uma bruxa. Quando ela se torna uma mulher, finalmente descobre a verdade sobre seu pai e sobre si mesma. Brumas de Aeolus é um conto erótico que se passa há cinco mil anos, na região que hoje é conhec...