O ginásio estava eletricamente carregado. O placar apontava empate, e a tensão no ar era quase palpável. O time do Minas estava no auge da batalha, e a cada ponto, o jogo ficava mais difícil. A torcida vibrava, cada movimento das jogadoras era acompanhado de perto, como se o destino de ambos os times estivesse selado em cada bola.
Kika, a libero do time, era imbatível naquela noite. Ágil, precisa, ela fazia defesas impossíveis, mas sabia que o ataque adversário estava vindo com tudo. Quando a bola foi disparada com força, ela se posicionou rapidamente, sua leitura de jogo era impecável, mas naquele momento, algo parecia diferente. A bola vinha com uma velocidade impossível de ignorar, e Kika sabia que a única forma de interceptá-la era se esticar ao máximo.
Era uma jogada arriscada. Eu sabia disso. Vi sua decisão, e o tempo parecia desacelerar enquanto ela corria em direção à bola. Não pensei duas vezes. Meu corpo reagiu antes que minha mente pudesse processar completamente. Corri em sua direção, com o coração batendo forte no peito, e, no exato momento em que ela se lançou para a defesa, a vi esticar os braços para alcançar a bola. Mas a força do movimento a desequilibrou, e o impacto do seu corpo contra o chão parecia iminente.
Foi então que, no último segundo, consegui alcançar Kika e me atirei para amortecer sua queda. Senti o impacto do nosso contato, e, num movimento quase instintivo, a segurei firme, encaixando nossos corpos de maneira a proteger seu impacto com o solo. O som da colisão foi abafado pelo peso do momento. Ela ficou imóvel por um segundo, o olhar dela buscando os meus, e, naquele instante, o mundo ao redor desapareceu.
Nos olhos de Kika, vi algo que me desconcertou. Havia dor, é claro, mas também uma surpresa, como se não soubesse o quanto eu estava disposta a ir por ela. Eu podia sentir seu corpo tremer, a tensão no ar, enquanto o barulho das arquibancadas parecia ter sumido. Tudo o que existia naquele momento era ela e eu, trocando um olhar silencioso, sem palavras, mas com um entendimento profundo.
— S/n... — Sua voz era um sussurro, e só então percebi o quanto minha mão estava firme segurando sua cintura. Ela tentou se levantar, mas não conseguiu, e eu senti uma pontada de preocupação.
A dor no seu rosto era visível, mas Kika tentou disfarçar. Eu, no entanto, não podia esconder minha ansiedade. O que mais me assustava não era a queda em si, mas a possibilidade de que ela tivesse se machucado gravemente. A equipe médica já estava à vista, mas antes que eu pudesse me afastar, Kika me olhou novamente. Havia algo em seus olhos — uma força indomável, uma vontade de continuar. Mesmo com o corpo claramente doendo, ela não queria mostrar fraqueza.
— Eu volto já, não se preocupa — disse, tentando dar um sorriso, ainda mancando, enquanto a dor se refletia em cada movimento.
Eu sabia que ela estava tentando manter a calma, mas, naquele momento, eu não conseguia deixar de me preocupar. Sem dizer uma palavra, me aproximei e a ajudei a se levantar. O contato entre nossas mãos, embora breve, foi suficiente para transmitir a ela o quanto eu estava ao seu lado.
Enquanto ela seguia em direção à linha de fundo, com o olhar fixo no jogo, senti um alívio temporário, mas também uma certa apreensão. A partida ainda não havia acabado, e Kika era a chave para nossa vitória. Eu só esperava que, quando ela retornasse, fosse ainda mais forte — porque, naquele momento, o que ficou claro para mim era que ela jamais desistiria, e eu, por mais que tentasse, também não poderia fazer isso.
O ginásio estava um pouco mais tranquilo após a partida, com o time de Minas já comemorando a vitória difícil. O jogo havia terminado, mas a tensão que permeou a quadra ainda estava no ar. Eu estava ajudando Kika a se alongar após a lesão, e, enquanto as outras jogadoras seguiam para o vestiário, ficamos ali, sentadas nas cadeiras da linha de fundo, tentando dar fim a toda a adrenalina do jogo.
Kika se virou para mim, ainda com o olhar meio cansado, mas com um sorriso divertido no rosto.
— Eu não sei o que foi mais arriscado: minha defesa ou o jeito que você se jogou em cima de mim. — Ela deu uma risadinha, mexendo a perna, ainda visivelmente dolorida. — Você quase quebrou meu termômetro de confiança, sabia? Podia ter me deixado cair, mas não, você teve que me salvar no último segundo.
Eu arqueei uma sobrancelha, tentando manter a seriedade, mas a situação era engraçada demais para ignorar.
— Ah, claro. Eu te salvei com tanto amor que você mal percebeu. — Respondi, com um sorriso irónico. — A única coisa que vi foi uma Kika desastrada indo em direção ao chão como se estivesse tentando competir com um pára-quedas sem abertura.
Ela riu alto e balançou a cabeça.
— Não faz isso, vai! Eu estava fazendo uma defesa perfeita, só que a gravidade decidiu me testar, e você foi a heroína improvisada. — Ela me olhou com um brilho travesso nos olhos. — Sério, s/n, não sabia que você tinha esse instinto de proteção. Não me venha com esse papinho de "eu só estava fazendo o meu trabalho", porque foi mais do que isso.
Eu dei de ombros, tentando disfarçar o nervosismo que a conversa estava começando a me causar. Era difícil ser leve quando ela estava me olhando daquele jeito, como se a ação toda tivesse sido mais do que apenas um reflexo.
— Olha, você sabe que eu faria qualquer coisa pelo time. E se fosse você caindo de novo, eu estaria lá, como sempre, para te salvar. — Tentei manter o tom descontraído, mas sabia que Kika percebia mais do que eu queria esconder.
Ela ficou em silêncio por um momento, me estudando com mais atenção do que o normal, como se estivesse tentando decifrar algo. Depois de uma pausa, Kika soltou um suspiro e falou, com uma leveza que era típica dela, mas com algo mais profundo no olhar.
— Não é só o time, não, s/n. — Ela falou baixo, de maneira quase casual, mas os olhos dela me entregaram a seriedade. — Você sempre foi muito mais do que uma colega de time pra mim. E, esse negócio de te ver correndo em minha direção na hora que eu caí... não foi só um reflexo de equipe, foi algo mais, não foi?
Meu coração deu um salto. O ar ao redor de nós parecia ter ficado mais denso, e por um segundo, eu não soube o que responder. Kika, a garota descontraída, a campeã do time, estava sendo vulnerável, e aquilo era um golpe baixo — para o meu coração, claro.
Ela me olhou de forma tão direta que quase me senti desnuda.
— Eu... eu não sei o que você tá tentando dizer. — Tentava me manter calma, mas minha voz estava tremula, e Kika percebeu. Ela sorriu de leve.
— Ah, você sabe sim. — Ela riu baixinho, de maneira quase desafiadora, e sua expressão ficou mais suave, mais doce. — É engraçado, porque antes de você me salvar, eu estava pensando que... talvez você fosse a única pessoa a fazer isso.
Aquelas palavras caíram como uma bomba no meu estômago. O tom brincalhão dela não mascarava a sinceridade que havia por trás de tudo aquilo. Kika estava dizendo, sem rodeios, algo que eu mesma havia começado a perceber, mas tinha medo de aceitar.
Eu respirei fundo, tentando não mostrar o quão nervosa eu estava.
— Então, quer dizer que, no fim das contas, você me chama de heroína porque está... — eu fiz uma pausa, encarando seus olhos com uma mistura de incredulidade e... talvez esperança. — Gostando de mim?
Kika deu uma risada baixa, uma risada divertida, mas com algo que soava íntimo, e a resposta dela foi simples, mas contundente.
— Acho que sim. E olha, não foi só pela defesa, não. Foi por muitas outras coisas também. Mas agora que a gente está aqui, não posso esconder mais. — Ela me encarou de novo, mas dessa vez com uma suavidade que me fez derreter por dentro. — Se você não me deixar cair de novo, eu te prometo que vou te salvar na próxima.
Eu só consegui sorrir.
— Eu te protegeria um milhão de vezes, Kika.
E, naquele momento, o resto do mundo desapareceu. Apenas o sorriso dela — um sorriso sincero, cheio de algo que ambos reconhecíamos agora — foi o suficiente para fazer meu coração disparar. E eu soube, naquele instante, que nossa amizade tinha mudado para sempre.
Enquanto o clima entre Kika e eu se aquecia com palavras não ditas, um ruído de passos interrompeu nosso pequeno momento. Levantei os olhos e vi Maiara Basso, uma das jogadoras do time adversário, se aproximando com um sorriso que, por mais amigável que fosse, não parecia ter boas intenções. Eu sabia que Maiara sempre teve um certo interesse em mim, mas até aquele momento, nunca tinha dado muita atenção a isso.
Ela parou na nossa frente, com uma postura descontraída, mas havia algo em seu olhar que não passava despercebido. O jeito como ela olhava para mim não era só de colega de time, e eu já estava começando a me sentir desconfortável.
— Ei, s/n, parabéns pela partida. Você foi incrível lá. — Ela disse, com uma voz suave e insinuante, se inclinando um pouco mais do que o necessário, um sorriso ligeiramente provocante nos lábios. — Mas parece que alguém mais também estava te ajudando a brilhar, não é? — Ela olhou de Kika para mim, como se estivesse fazendo algum tipo de brincadeira, mas havia um toque de desafio na sua voz.
Eu não soube como reagir, não queria ser rude, mas a situação começou a ficar mais tensa do que eu gostaria. Olhei rapidamente para Kika, que estava agora ao meu lado, e seu rosto estava fechado, os olhos estreitos e a mandíbula tensa. A tensão que emanava dela era quase palpável, e não precisei de mais nada para perceber que Kika não gostou nem um pouco da aproximação de Basso.
Antes que eu pudesse responder ou até tentar encerrar a conversa, Kika deu um passo à frente, interrompendo qualquer tentativa de interação entre nós. Com uma expressão determinada, ela colocou a mão no meu ombro, quase possessivamente, e me puxou para mais perto dela, como se o fizesse sem pensar.
— Ela já sabe que foi incrível. Maiara, não é? Então, acho que o resto da conversa pode esperar. — Kika falou com uma voz firme, quase desdenhosa, e a forma como ela disse aquilo não deixou dúvida de que não estava mais interessada em manter a civilidade com a outra jogadora. Ela parecia... protetora, como se estivesse avisando Maiara de que não iria tolerar mais aproximações.
Eu estava ali, meio atordoada, sem entender o que estava acontecendo. Kika ainda estava segurando meu ombro, mas agora o olhar dela estava fixo em mim, de uma maneira que me fez sentir como se o tempo tivesse parado. Eu não sabia o que esperar, mas algo dentro de mim começou a acelerar, como se as palavras que ainda não tínhamos dito tivessem encontrado um espaço para surgir.
E foi naquele exato momento que Kika, sem mais nem menos, deu um passo à frente e, com toda a determinação do mundo, puxou meu rosto para o dela, selando nossos lábios em um beijo. Foi um beijo impulsivo, cheio de emoção reprimida, e completamente sem se importar com quem estivesse olhando. No fundo, eu sabia que nada mais importava naquele instante.O mundo ao redor sumiu. O ginásio, os olhares das outras jogadoras, os gritos das fãs na arquibancada, tudo isso ficou em segundo plano. Tudo o que existia naquele momento era Kika, e o beijo que parecia ter sido esperado por muito mais tempo do que ambos gostaríamos de admitir.
Maiara estava ali, ainda na nossa frente, visivelmente surpresa e até um pouco desconcertada. Mas Kika não se importava nem um pouco. Ela continuou me beijando com uma intensidade que me fez esquecer qualquer outra coisa ao redor. Foi como se a nossa conexão, até então sutil, finalmente tivesse encontrado seu espaço.
Quando finalmente nos separamos, ambos ofegantes e com os corações acelerados, Kika me olhou nos olhos com uma expressão desafiadora e divertida, como se estivesse esperando pela reação de Basso
— Agora, acho que o assunto está encerrado. — Kika falou com um sorriso malicioso, sem se afastar de mim.
Eu não sabia se ria ou ficava em choque, mas uma coisa era certa: nada mais importava. Eu não queria mais esconder o que estava sentindo, nem tampouco me preocupar com mais nada além de Kika. E, pelo jeito, ela sentia a mesma coisa.
Maiara não disse mais nada. Ela apenas se afastou, um pouco atônita, e eu fiquei ali, de braços dados com Kika, um sorriso de felicidade plena estampado no meu rosto. Não importava o que o futuro nos reservava, o que importava agora era que finalmente estávamos sendo verdadeiras uma com a outra.
Kika me puxou para mais perto, sussurrando perto do meu ouvido...
— Eu não vou deixar ninguém mais te "salvar", sabia? A partir de agora, é só nós duas.
Eu não podia concordar mais.