Henrique
Acordei ofegante, a respiração descompassada e o suor escorrendo pela minha testa. O quarto estava mergulhado em sombras, exceto pela luz pálida da lua que atravessava as cortinas entreabertas. Passei a mão pelo rosto, tentando afastar as imagens que ainda me assombravam. O pesadelo, sempre o mesmo, voltará.
Lá estava eu, novamente naquela noite. O choro abafado dela ecoava na minha mente. Marina, minha filha. Seus olhos grandes e brilhantes, o sorriso inocente que iluminava qualquer ambiente, tudo parecia tão real, como se eu pudesse tocá-la. Mas então, como sempre, vinha a culpa. O vazio que consumia cada parte de mim.
"Você não estava lá."
A voz ressoava, uma mistura do meu próprio julgamento com a realidade implacável.Sentei na cama, tentando recuperar o fôlego, mas o peso no meu peito parecia maior a cada segundo. Os lençóis estavam encharcados de suor, um lembrete de que as noites nunca eram realmente tranquilas. Afastar o pesadelo era inútil, e encarar o dia seguinte parecia, por vezes, mais um castigo do que uma nova chance.
Levantei da cama, incapaz de permanecer imóvel. Caminhei até a janela e encarei a cidade que ainda dormia. Prédios erguiam-se como gigantes adormecidos, enquanto as luzes dispersas das ruas ofereciam um brilho pálido e solitário. A vida parecia tão vibrante lá fora, enquanto dentro de mim era como se houvesse uma tempestade constante. Fazia dois anos desde que ela se foi, e a dor ainda era tão crua quanto no dia em que recebi a notícia.
Marina foi fruto de um relacionamento breve, quase um acidente, como muitos poderiam dizer. Eu nunca planejei ser pai, mas o universo parecia gostar de me desafiar. No início, eu me recusei a aceitar a ideia de ter uma filha. "Não era o momento", eu dizia, como se houvesse um momento ideal para a vida surgir.
Mas então ela nasceu. E meu mundo virou do avesso.
Havia algo mágico em segurar aquele pequeno ser nos braços pela primeira vez. Eu me prometi naquele instante que seria diferente, que estaria presente. Mas as promessas feitas nos primeiros momentos de euforia nem sempre sobrevivem ao impacto da realidade.
Eu, sempre tão focado no trabalho, na construção de um império, nunca dei o tempo ou a atenção que ela merecia. Quando soube que estava doente, já era tarde demais. Um tipo raro de leucemia infantil. Eu havia investido tudo o que tinha, cada recurso, cada conexão, mas o tempo não esperou por mim.
"Se eu tivesse estado mais presente..."
Esses pensamentos me consumiam, dia após dia. O Henrique que o mundo via — o empresário bem-sucedido, o homem controlado e poderoso — era apenas uma fachada. Por dentro, eu era um homem quebrado, tentando desesperadamente encontrar algo que desse sentido à minha existência.
Caminhei até a cozinha e enchi um copo com água. Cada gole parecia me ancorar à realidade, ainda que precária. Minha terapeuta dizia que o luto era um processo, que eu precisava me perdoar. Mas como? Como perdoar alguém que não estava lá quando mais importava?
Minha mudança para essa cidade foi uma tentativa de recomeço, mas até agora isso só me trouxe mais vazio. Meus imóveis aqui prosperavam, meu nome circulava entre os empresários locais, mas eu continuava me sentindo como um intruso na minha própria vida.
Foi quando me lembrei dela. Maitê.
Aquele olhar dela era diferente. Quando a vi pela primeira vez, algo em mim despertou, como se uma chama tivesse sido acesa em meio à escuridão. Ela era tão diferente de tudo o que eu conhecia — autêntica, real, com uma força que parecia desafiadora e, ao mesmo tempo, sutil.
Eram os olhos dela. Havia algo na maneira como ela olhava o mundo, como se carregasse um peso, mas ainda assim não tivesse perdido a esperança. Talvez eu tenha visto nela uma parte do que eu mesmo perdi ao longo dos anos: a capacidade de acreditar que algo bom ainda poderia surgir, mesmo em meio ao caos.
Mas eu sabia que não deveria me aproximar. Pessoas como eu não deveriam entrar na vida de alguém como ela. Eu carregava mais bagagem do que qualquer um poderia suportar, e a última coisa que eu queria era arrastar outra pessoa para a confusão que era minha vida.
Ainda assim, lá estava eu no hospital, ao lado dela, mesmo quando ela deixou claro que não queria minha presença. Por quê? O que me fazia insistir em estar por perto?
Talvez, no fundo, fosse a ideia de que, se eu pudesse ajudar alguém como ela, fosse de algum jeito pequeno ou grande, isso me ajudasse a sentir que eu ainda tinha algo a oferecer ao mundo. Talvez eu visse nela a chance de redenção que tanto busquei, mesmo sem admitir.
Olhei para o relógio na parede. Eram 3h da manhã. Suspirei, sabendo que o sono não voltaria. Peguei meu notebook na mesa da sala e comecei a trabalhar. Era o único jeito de manter a mente ocupada, de afastar os fantasmas que insistiam em me assombrar.
Enquanto digitava relatórios e analisava números, minha mente ainda divagava. Lembrei-me da última vez que vi Marina sorrir. Estávamos no hospital, e ela segurava um dos desenhos que havia feito. "Esse é você, papai", ela disse, apontando para um rabisco desajeitado. Era eu, com uma capa de super-herói.
Super-herói. Eu estava longe disso.
Ainda assim, por mais que tentasse, o rosto de Maitê voltava à minha mente. Seu olhar de dor ao lado da mãe, o tremor em sua voz ao segurar as lágrimas, mas também a determinação em cada palavra que ela pronunciava.
Talvez ela fosse o início de algo novo, ou talvez fosse apenas mais uma lembrança que me seguiria pelo resto da vida. Eu ainda não sabia. Mas, de alguma forma, isso parecia importar menos do que o fato de que, pela primeira vez em muito tempo, eu sentia algo.
E isso, por si só, já era assustador.
O que vocês acharam dessa pequena parte da história do Henrique?
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Chamas do Desejo
RomanceAcostumado a conseguir tudo o que deseja, Henrique inicialmente a vê como mais uma conquista fácil. No entanto, Maitê não é como as mulheres com quem ele está acostumado. Ao ser tratada com desdém e arrogância, ela impõe limites e o rejeita, despert...