Voar

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Nunca em meus 18 anos senti medo de avião, mas nesse momento meu coração disparava com a mera menção de estacionar no aeroporto. Todos os pelos do meu corpo estavam arrepiados e minha pele suava como se o clima estivesse quente, quando na realidade a temperatura estava baixa.
Colocar o pé para fora do carro foi quase uma luta, e ao sair do veículo me arrependo de ter escolhido botas com saltos. Minhas pernas tremem, mas mantenho o equilíbrio. Minhas mãos não desgrudam da minha barriga.
- Theozinho e meu anjinho ajudem a mamãe aqui - sussurro pra meus bebês - Vocês conseguem ficar ai dentro por mais um tempo.
- Becca, - meu pai chama - Vamos!
- Claro - digo seguindo-o.
Ando devagar para evitar errar o passo e cair no chão. Sinto o salto fino bater no chão, em certos passos ele derrapa.
Por sermos da primeira classe, logo vamos para uma sala especial. Lá há uma mesa com diversas frutas, chás e bolos. Acabo me interessando nessa mesa, e só me afasto dela quando meu pai diz chega.
A enfermeira que nos acompanhará liga pro medico, que está atrasado. Nisso meu pai fica nervoso, já que podemos perder o vôo.
Acabo me aproximando da mesa de guloseimas e volto a devora-la. Preocupado com seus próprios problemas meu pai me deixa comer.
O medico chega 5min antes do avião decolar e meu pai "dá uma bronca nele" e nessa "bronca" ele mistura inglês e português, o que torna a situação engraçada e acabo relaxando.
No avião me preocupo em comer o pacote gigante de Ruffles que recebi. Meu pai conversa com Lizzie pelo MacBook. O medico, o qual nem sei o nome, assiste vídeos impróprios na internet. A enfermeira reveza entre lixar as unhas e dormir.
Isso acontece até as minhas batatas acabarem.
Pego um copo d'água e enquanto estou bebendo sinto uma cólica, a cólica vai aumentando ao ponto de eu deixar o copo com água rolar pelo chão.
A enfermeira logo se levanta e vem na minha direção, ela checa minha pressão.
- Meus bebês - digo - Está tudo bem com eles?
- São apenas cólicas - ela diz - É normal no primeiro trimestre, seu útero está crescendo.
- Pode ser um sinal de aborto? - pergunto preocupada.
- As cólicas que tendem a piorar e que são acompanhadas de sangramentos são as que normalmente se relacionam com abortos - ela diz - Vou acompanhar, qualquer sangramento ou dor mais forte me avise.
- Tudo bem - eu digo.
- Tome esse remédio - ela diz me dando um comprimido branco e um copo d'água - Vai reduzir a dor.
Tomo o remédio e depois cochilo um pouco. Acordo desesperada com uma turbulência, nisso acabo vomitando e me sujando toda.
- Rebecca! - a enfermeira grita tirando o cinto.
- Senhora permaneça com o cinto de segurança - a aeromoça diz.
- Ela vai se engasgar - a enfermeira diz se levantando.
- Ela é bem grandinha - a aeromoça diz segurando o braço dela - Pode-se sentar.
- Minha obrigação é cuidar dela, com licença - a minha enfermeira diz puxando o seu braço das mãos da aeromoça e vindo até mim. Ela abre meu cinto e me ajuda a levantar. O avião já está calmo e o sinal para colocar os cintos apaga - Vou te limpar.
Ela me leva até o banheiro, e diferente do banheiro da classe econômica é imenso.
A enfermeira me senta no vaso e tira minha blusa e passa um lenço molhado em mim.
- Não precisa fazer isso - digo.
- Faço questão - ela diz sorrindo - Vista esse vestido.
- Obrigada - digo.
- Não está limpa como uma chuveirada, mas sei dar banho de esponja, mesmo que só tenhamos um lenço de papel - ela diz sorrindo.
- Percebi que nem sei o seu nome - digo.
- Sou apenas sua enfermeira - ela diz.
- Faço questão...
- Tereza - ela diz pegando minha blusa suja do chão - Me chamo Tereza.
- Obrigada, Tereza - digo.
- Não há de quê - ela diz lavando a blusa na pia.
Voltamos para o assento e eu não consigo mais dormir. Traço com meu dedo a divisão imaginaria entre os gêmeos.
- Hey Théo, preciso saber o que esse bebezinho é, me dê uma mãozinha - cochicho pra barriga - Um chute pra menino e dois pra menina.
Nada acontece.
- Bebê ouça-me - sussurro - Ajude a mamãe aqui, preciso saber a cor do enxoval.
Novamente nenhum movimento. Respiro fundo e aceito a derrota.
- Tiraram logo esse momento para dormir - digo.
- A senhora quer comer algo? - a aeromoça pergunta.
- Não, obrigada - digo.
- Sua barriga já está grande - ela diz.
- Sim, estou indo para a 15ª semana - digo acariciando minha barriga - E esses dois estão crescendo muito rápido.
- Gêmeos? - ela pergunta.
- Sim - digo.
- Sabe os sexos?
- Um menino e um mistério - cochicho e olho pro meu pai - ele ainda não sabe.
- Bivitelinos - ela diz - Vai querer fazer uma surpresa pro papai?
- Desculpe? - digo 'ela acha que sou casada com o meu pai?'
- Nada não - ela diz - Posso tocar?
- Claro - digo e ela coloca a mão na minha barriga.
- Eu e meu ex-marido tentamos por 5 anos, até que desisti de ser mãe - ela diz - Ou, ele chutou!
- Sim - digo - e alguém está com o pezinho na minha costela.
- Deve ser uma sensação maravilhosa - ela diz.
- Acredite, pé na costela não é algo maravilhoso - digo.
- Eu falo de carregá-los, senti-los por meses e então segura-los em seus braços - ela diz - deve ser maravilhoso.
- É uma coisa incrível - digo com um sorriso amarelo - Você ainda pode ter sua chance!
- A vida não é tão generosa com alguns - ela diz.
- Ser mãe é algo único - digo - E não apenas a gravidez proporciona isso, há crianças precisando de uma mãe por ai.
- Não é tão fácil entrar em filas de adoções sendo divorciada - ela diz - além do mais...
- Por favor não me diga que quer um filho do seu sangue - digo - pois isso é ridículo. Minha madrasta fazia esse drama e perdeu muito com isso.
- Eu não me importo com isso - ela diz - Na verdade o meu problema é meu trabalho, viajo muito, fico pouco em casa. Quem vai dar uma criança a alguém que fica 2 dias por semana em casa no máximo?
- Bem, - digo me ajeitando na poltrona - Quem sabe um dia?
- Quem sabe?... - ela diz se afastando - Qualquer coisa ... É só me chamar.
- Obrigada - digo.
Ela se retira e eu acabo assistindo um filme na pequena TV. Pela metade do filme meu pai acorda.
- Beck - ele diz ainda sonolento - Que horas são?
- Não sei dizer - falo - Estou sem bateria, e meu computador não se ajustou ao fuso.
- Ótima resposta - ele diz se levantando para pegar o celular no bolso - Agora são 20h no horário de algum lugar.
- E são 12h em outro - digo irônica - não é fascinante!?
- Rebecca suas crises de mal humor estão só piorando.
- Eu só quero sair daqui - digo num grunhido.
- Já estamos quase chegando - ele diz - Com licença - ele chama a aeromoça - Quantas horas ainda restam?
- Cerca de 2h - ela diz.
- Ah obrigado - ele diz.
Acaba o filme e em pouco tempo pousamos no aeroporto de Boston. Logo descemos, na porta de desembarque Lizzie nos espera de braços abertos. Procuro por todos os lados e não encontro Peter, me sinto mal por me decepcionar com isso.
- Olá querida - Lizzie diz depois de se soltar do meu pai - Olá meu bebê!
Dou um falso sorriso e aceito o abraço dela.
- Becca deve estar querendo descansar Elizabeth - meu pai diz.
- Tudo bem, vamos pra casa - ela diz.
No caminho todo Lizzie fala entusiasmada de como vai as suas aulas no colégio. Faz perguntas sobre "o bebê" e meu pai responde algumas, percebo o seu cuidado com as palavras.
- O que acha Becca? - Lizzie diz me incluindo na conversa.
- Sobre o que? - pergunto.
- O nome, Rebecca, preste atenção - ela diz.
- Becca já tem um nome - meu pai diz - Théo e Samantha.
- Théo ou Samantha... - ela repete - Não gosto desses nomes, há outros que eu prefiro.
- Rebecca escolheu esses nomes - ele diz - Acho que ela tem o direito de opinar, além do mais, gosto desses nomes.
- Veremos - Lizzie diz.
Após isso todos ficam em silencio. Lizzie não abre a boca e eu me controlo pra não dormir. Mesmo tendo cochilado no avião estou com sono. Ainda são 4h aqui. Então há apenas alguns bares abertos com alguns estudantes enchendo a cara depois de um dia difícil.
Entramos em casa e o cheiro de papel e café inunda minhas narinas. Sinto-me relaxada só pelo cheiro conhecido. Subo os degraus da escada e percebo a dificuldade que tenho por causa da barriga.
Entro no meu quarto e ao acender a luz sinto lagrimas nos meus olhos. Não percebi a falta que senti do meu cantinho até agora. Ao passar a mão pelas marcas de caneta rosa no batente, sinto minhas lágrimas escorrerem e me pergunto se medirei a altura dos meus filhos nessa porta. Adentro o quarto e vejo tudo em ordem, diferente de quando estou aqui. Provavelmente Edith organizou as minhas coisas.
Me sento na cama e observo cada ângulo do meu quarto, vejo meus livros e minhas bonecas nas prateleiras. Encaixo dois berços mentalmente no quarto.
Imagino meus bebês. E então minha realidade volta quando percebo que Lizzie está na porta.
- Trouxe uma xícara de chá - ela diz - pensei que talvez você...
- Obrigada - digo.
- Não quer o chá? - ela pergunta, parece derrotada.
- Aceito o chá - digo.
Ela caminha até mim e me dá a xícara, como não está tão quente a coloco equilibrada na minha barriga.
- Seu pai disse que você teve desmaios - ela diz - Pensei que talvez...
- Lizzie desembuche - digo bebendo do conteúdo quente da xícara.
- Marquei uma consulta no Dr. Albers para amanhã - ela diz.
- Tudo bem - digo - eu vou.
- Ótimo - ela diz sorrindo - Precisa de alguma coisa?
- Fique tranquila eu sei onde fica tudo - digo.
Ela sai do quarto de costas e para na porta.
- Sei que passou por muita coisa - ela diz - Vou dar seu espaço e tempo, sinto muito por colocá-la nessa situação. Foi um ato impensado, porém não da pra voltar atras.
- Eu sei Lizzie - digo - Eu já tive o tempo que precisava. Só quero ser uma garota gravida normal de 18 anos.
- Oh meu Deus! - ela diz - Já havia quase me esquecido.
Ela sai do quarto e volta com um embrulho imenso.
- Espero que goste - ela diz me dando o embrulho, desfaço o laço e tiro o papel colorido. Dentro há uma caixa de papelão, abro as abas da caixa e encontro vários itens de Yale. Uma jaqueta esportiva com o logo da universidade, um boné do time de futebol, uma camiseta, uma caneta com um buldogue desenhado. Tudo o que eu não precisava nesse momento.
- Yale mandou para você - ela diz - Ainda não comprei seu presente de 18 anos, sempre saiamos pra comprar juntas; fiquei com medo de errar no presente.
- Não precisa me dar nada - digo.
- Como assim? 18 anos é uma idade importante - ela diz - Se estivesse em casa eu teria comprado um bolo...
- De café com chocolate - termino a frase.
- Sim, seu preferido - ela diz.
- Na verdade não é - digo - Mas, não importa.
- Posso comprar o bolo que quiser amanha - ela diz.
- Já faz 3 semanas Lizzie, não se preocupe - digo.
- Como vou te deixar sem nenhum bolo?
- Meus avós compraram um bolo - digo.
- Eu não estava lá.
- Você tinha coisas mais importantes para fazer - digo.
- O que é mais importante do que a minha menininha? - ela diz sorrindo.
- Eu poderia listar - digo e vejo-a perder o sorriso - Mas estou cansada. Se me ser licença.
- Ok - ela diz - Bom sonhos.
- Idem - digo e a porta bate, ouço o suspiro que Lizzie solta e seus passos pela escada. Então tudo fica quieto, e eu finalmente consigo dormir.

Por AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora