Capítulo 4

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Se tem uma coisa que gosto de fazer de manhã é tomar um café fumegante no bar atrás de casa. Não tinha voltado desde que li a notícia do publicitário assassinado.
Mas hoje quero tentar exorcizar meu pesadelo e talvez consiga fazer isso junto com Seline e Naomi. No balcão, o rapaz de sempre, que, como sempre, sorri. Fico feliz e retribuo.
- Faz um tempo que não aparece.
- Pois é. Pode me fazer um café?
- É para já. E para vocês?
Naomi pede um café. Seline, nada. Pago pelas três ao rapaz, mas desta vez nossas mãos não se tocam. Ao sair, dou uma olhada nos exemplares gratuitos largados numa mesinha. A notícia do publicitário assassinado já não está na primeira página. Não verifico se tem alguma coisa no interior, se há novidades. Não quero saber de nada.
- Tudo bem? Naomi interceptou meu olhar.
- Não poderia estar melhor - minto, erguendo o café.
Descemos do ônibus alguns pontos antes da escola. Nenhuma de nós tem vontade de chegar na hora. É um daqueles raros dias em que o céu está mais azul do que cinza e a chuva não ensopa qualquer desejo de ficar ao ar livre. Caminhamos ao longo de uma calçada do centro, uma ao lado da outra, batendo papo furado, quando de repente meu olhar cai sobre a vitrine de uma loja ainda fechada. É uma papelaria. A papelaria onde comprei meu caderno roxo. Diminuo o passo, rememorando aquele dia. Chovia a cântaros e não se via quase nada entre os jatos d'água dos carros disparados na rua e a torrente que escorria das calhas transbordantes dos edifícios. Mas algo atraiu minha atenção: uma vitrine toda roxa. Havia canetas, lápis, estojos, borrachas, cadernos, pastas, tudo rigorosamente roxo. Minha cor preferida. Meu caderno estava colocado bem no centro da vitrine. Estava aberto e apoiado nas próprias páginas cor de marfim, lisas e de gramatura pesada. A capa parecia de couro. E eu ali, do lado de fora, olhando para ele sob a chuva. Não sei por que motivo, entrei imediatamente para comprá- lo. O som desafinado de uma velha campainha me recebeu e introduziu ao interior da loja, aonde os rumores do tráfego pareciam não chegar. A loja não era grande, nem bonita. Tinha um não sei quê antigo, com prateleiras de madeira que formavam pequenos e baixos corredores. A luz vinha de velhos globos de vidro que pendiam do teto como ovos enormes. No interior da papelaria havia um homem totalmente normal, de estatura média e aspecto idem. Tinha a pela clara, os cabelos brancos e os olhos azuis. Ele me fez pensar num velho anjo que vi num velho cartaz teatral. Sua idade era indefinida e olhava para mim de um jeito muito estranho, paciente e ao mesmo tempo curioso. Em sua loja, eu me senti completamente à vontade. E ele me observava, tranquilo.
- Bom dia, mocinha. Posso fazer alguma coisa pela senhorita? - disse ele, apontando para o meu guarda-chuva que gotejava insistentemente sobre o pavimento de madeira escura.
Seu olhar não demonstrava irritação, nem pressa. E, além do mais, tinha me chamado de "senhorita". E isso não me desagradou. Gostaria de conhecer melhor as velhas regras de conversação para poder responder com o mesmo pacato senso de medida, mas as palavras me escapavam. Limitei-me, portanto, ao essencial.
- Queria ver o caderno da vitrine.
- Claro.
Ele, o velho anjo, deslocou um painel para pegar o caderno e, em seguida, colocou-o cuidadosamente no balcão que ficava no fundo da sala. Acaricei-o, tocando com o dedo o couro roxo que o envolvia.
- Vou levar - decidi sem sequer perguntar o preço.
- Muito bem, senhorita. É um presente? Embrulho ou...
- Não, não - foi o que respondi com uma certa urgência.
- É para mim.
- O que está olhando? - pergunta Seline.
- Nada. Por quê?
- Parecia perdida em seus pensamentos. Lanço um último olhar para a vitrine da papelaria, para as portas de ferro abaixadas, e me pergunto a que horas chegará o velho anjo para abri-las, se é que vai abrir hoje, pois a velha papelaria só abre nos dias de chuva. E só quando passo por ali.
- É melhor nos apressarmos ou vamos nos atrasar - digo, afastando aqueles pensamentos.
- Já é tarde - observa Naomi. Aceleramos o passo.
Conforme previsto, chegamos à escola atrasadas, mas ninguém nos dá atenção. As portas das salas estão abertas, com os alunos meio dentro, meio fora, como durante o recreio. O ar está impregnado de um forte cheiro de queimado, mas não me lembro de ter notado nenhum incêndio. O que será que aconteceu?
- Que horas são? - pergunto. Nunca uso relógio. Tem sempre alguém a quem se pode perguntar a hora.
- São oito e meia! Droga! - Naomi olha o relógio, espantada de que já seja tão tarde.
Diante do gabinete do diretor tem um policial examinando todo mundo de cima a baixo, com aquela atitude típica de quem leva a vida à procura de um culpado. Quando seu olhar passa rapidamente por mim, estremeço e digo a mim mesma que é bobagem. Não fiz nada. Não está ali por minha causa.
- Mas o que houve? - pergunto em voz alta.
- Fizeram o maior estrago na sala do Scrooge - ouço um menino dizer às minhas costas.
- Está brincando...
- Não.
- Do Scrooge?
- Hã, hã. Scrooge é o diretor da escola, um homem seco, solitário, solteiro e interessado apenas no trabalho, que é a única coisa que sabe fazer. Seu nome verdadeiro não é esse, mas desde que os alunos mais velhos lhe deram o nome do insuportável nome do insuportável protagonista dos famosos quadrinhos,* ele nunca mais se livrou. Há quem diga que o verdadeiro Scrooge não é ele, mas o antigo diretor, seu antecessor, totalmente igual a ele, só que mais velho. Peço algumas explicações ao menino que está atrás de mim.
- Parece que alguém entrou na sala ontem à noite e fez um estrago. Sujou as paredes, destruiu uma parte dos arquivos, queimou a escrivaninha.
- Correndo o risco de tocar fogo na escola inteira. - Naomi está horrorizada.
- Os bombeiros acabaram de sair - acrescenta o menino.
- Alagaram metade do corredor do primeiro andar.
- Que história mais doida - diz Naomi, abrindo espaço entre os curiosos.
- E não têm ideia de quem foi? - pergunto.
- Um bando, provavelmente.
- E como Scrooge reagiu?
- Do jeito dele.
- Vai nos trancar nas salas até descobrir o culpado? Ele ri, nervoso. - Alguma coisa assim, acho.
Naquele momento, chega Agatha. Está com os fones enfiados nos ouvidos, mas dá para ouvir o rock que está escutando. Olha ao redor para entender o que está ocorrendo, me vê e se aproxima. Em seguida, tira um dos fones e pergunta:
- Que bagunça é essa?
- Destruíram o gabinete do Scrooge.
- Quem foi?
- Acho que ainda não sabem. Mas a polícia está investigando.
- A polícia?
- Está vendo aquele sujeito lá no fundo? É da polícia.
- Assunto sério, então.
- É o que parece.
Agatha recoloca o fone no ouvido. Não parece muito perturbada com a notícia. A bem dizer, nada parece perturbá-la, nunca.
- Vou subir - informa.
- Nos vemos na sala.
- Correu tudo bem na reunião, ontem - digo sem olhar para ela.
Agatha para.
- Ia mesmo perguntar. Alguma novidade?
- Não, nenhuma.
- Ótimo.
- Agatha? - interrompe Seline. - Como vai sua tia? Agatha a encara com aqueles seus estranhos olhos cinzentos, cujo fundo não se consegue ver, e responde:
- Melhor... obrigada.
Em seguida, liga o MP3, dispara novamente a música a milhões de decibéis e começa a subir a escada, como se nada tivesse acontecido. E como se aquilo não tivesse nada a ver com ela. - Coitadinha - comenta Seline. - Está com a cabeça longe. Naomi bota as mãos nos quadris. - Pode ser... Mas quem sabe onde? - Vamos embora - digo eu, quando percebo que o policial continua a nos examinar, uma por uma, como se estivesse escolhendo a próxima vítima. Minhas mãos estão coçando. Como acontece quando se tem vontade de escrever. * Ebenezer Scrooge é o personagem principal do romance Um Conto de Natal, de Charles Dickens. O personagem serviu de inspiração para Carl Barks criar mais tarde o Tio Patinhas. (N. da E.)

Escuridão - 1º Livro da Série EscuridãoOnde histórias criam vida. Descubra agora