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Dentre todas as colinas a Sprattew era a mais dolorosamente bem alinhada, com arbustos crescendo pelos colossais terrenos e árvores se estendendo por metros a fio. As estradas que davam a ela se ligavam inteiramente em duas cidades, a Fesbie Broakway e a New Vortien, ladeadas por pedras redondas e asfalto desgastado.
A Sprattew não era nem de longe a colina que mais recebia visitas. Pelo contrário! Depois da década de cinquenta qualquer pessoa que tenha conhecimento o suficiente do que ocorreu ali não se atrevia a pôr os pés no local. Não pela sombriedade e pelo difícil acesso, ou pelo desmoronamento de terra do ano de 1954. Era mais por uma questão de "Quanto mais puder evitar melhor". A Sprattew tinha a forma de um rosto agonizando em direção ao céu: o nariz adunco era padronizado pelas terras altas e arbustos mal podados. A boca aberta formada por dois montes de terras separados deixando um vão ao meio, com não mais que dez metros. Os olhos eram galhos e troncos retorcidos, desenhando os cílios longos do rosto. E os fios de cabelo eram grãos de areia que o vento soprava para longe, deixando a impressão do balançar da cabeleira.
Um quilômetro distante da Sprattew havia um casebre com detalhes revestidos em moderna cobertura, pintura pós-guerra e um quintal com plantas logo atrás da casa, separado por um cômodo que se ligava diretamente à cozinha. Apesar de dar a impressão de que o casebre era o único existente no local, uma das estradas que era ligada à cidade de Fesbie Broakway passava à menos de cinco metros da varanda da casa, e os moradores ouviam o barulho de carros passando poucas vezes ao dia, mas era reconfortante saber que não estavam sozinhos naquele lugar.
Os Hytton tinham deixado a casa e a cidade quando foram despejados. Um dos amigos do pai, Frederic Forc's, os apresentou o casebre na cidade. Ali era o único lugar que os manteria longe das falcatruas do governo e de certa forma delimitaria um certo afastamento das preocupações com os pagamentos de dívidas. A mãe, Katherine, estava desempregada há sete meses. O pai tinha sido demitido na semana anterior do trabalho como operário. Os filhos deixaram a escola para se refugiar ali. Elisabeth, de quinze anos, e Patrick, de doze, de certa forma gostaram de passar alguns dias fora do ambiente escolar. Era como um balão de ar se esvaziando dentro do peito. Enfim, eles teriam um tempo extra para se divertir.
- Preciso procurar um emprego, não posso simplesmente enfiá-los aqui e esperar que alguém nos ajude. - Tom, o pai, se preocupava com o bem-estar da família, e mais do que tudo, se eles estariam confortáveis com a situação. Ele não queria que a esposa, filhos ou seja quem for reclamasse da forma como ele liderava aquela família. Nunca quis.
Katherine tinha ido colher nabos na horta no quintal. Os legumes estavam duros e cheiravam mais do que o normal. O vento frio que descia pelas colinas menores ao redor derrubaram a touca da cabeça da mulher. Ela deixou a cesta de nabos no chão e correu antes que a touca deixasse de se arrastar pelo chão e saltasse rumo aos céus, indo embora. As botas de Katherine pisavam no restinho de lama espalhada no chão em resultado das garoas na noite e formavam pegadas disformes pelo campo aberto.
- MÃE! - Patrick chamava. - Precisa de ajuda?
- Volte para dentro, Pat! - respondia ela, em tom de ordenação rígida.
- MÃE! - dessa vez foi a voz de Elisabeth que soou pelo campo, onde o frio e o vento ficavam cada vez mais fortes e sedentos. A garota tocou o irmão.
- Leve seu irmão para dentro de casa! - ordenou Katherine. - Não quero que peguem resfriado!
A touca mais a frente insistia em saltar e ir para longe com a ação do vento. Uma, duas, três tentativas de tomá-la nas mãos. Sem sucesso.
Antes que a touca astuta saltasse mais uma vez e fosse embora através dos galhos das árvores na floresta à frente, uma mão a tocou. Katherine foi diminuindo a velocidade dos passos aos poucos e tossiu algumas vezes pelo frio cruel. Ela tremia e suspirava com dificuldade.
- Obrigado. - disse a mulher. - Os ventos daqui são muito fortes...
Porém antes de ela terminar de falar o homem com roupas de couro, botas bem caprichadas, enxada na mão e velho demais para andar sem qualquer agasalho retrucou:
- O que fazem aqui? Nessa casa e nesses terrenos? - ele fitava Katherine com vigor e seus olhos pareciam falar mais do que a boca do velho. - Vocês não deviam estar aqui. Ninguém os avisou?
- Eu não sei do que o senhor está falando. - respondeu a mulher.
- Crianças. - ele apontou para Patrick e Elisabeth logo atrás da mãe. - Elas também não deviam estar... o que fazem aqui? Nos arredores da colina Sprattew?
- Quem é você? - a pergunta da mulher veio em seguida, enquanto ela mantinha os filhos em segurança às suas costas.
- Eu fui caseiro do conde Blasy. Narcondes Blasy. Há um ano eles morreram e eu tive que cuidar dos terrenos mesmo sem um dono. Então quer dizer que vocês são os novos proprietários do casebre? - ele deu um leve sorriso, como se tivesse uma ideia mirabolante na cabeça.
- Somos. - respondeu Katherine, encarando o homem com um pé atrás. - Precisamos nos manter aqui.
- Sei... sei bem. Refugiados, ladrões, psicopatas... esse casebre já foi palco da visita de todos esses tipos de gente. Convivi com todos, até... até... - ele parou, olhou para a casa atrás das crianças e girou a enxada nas mãos, pondo-a no ombro. - espero que tenham uma boa estadia.
O homem se afastou após entregar a touca da mulher. Os cabelos levemente grisalhos dele se remexendo na cabeça. Então ele parou, enquanto a mãe e os filhos ainda o olhavam.
- Ali. - ele apontou para além do campo, entre a grande colina Sprattew e a colina Mordie Pyg, e seu dedo parecia tremer. - Nunca se dirijam àquele local. Nunca. Estão avisados.
- Por que deveríamos fazer isso? O que encontraríamos lá caso fôssemos? - perguntou Katherine.
O homem, de costas, virou apenas a cabeça para o lado e falou em todas as letras antes de ir embora:
- A morte.

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