DEZ

9 1 0
                                    

E da luz veio a proteção. Das trevas vieram as ruínas. E do amor surgiu o floreio...

+ + +

Devagar e numa delicadeza de quem já houvesse partido Mama Abigail enxergou o caseiro a sua frente com olhos ríspidos de quem espera um meteoro cair a sua frente.
Quando criança Mama Abigail lembrava de quando visitara os museus de verão. Um deles destacava-se pelas peças de porcelana que eram autenticadas pelos artistas modernistas. Uma das peças era um garotinho esculpido com as mãos estendidas para um vaso de onde se refletia águas límpidas. Ela viu os olhos do menino de porcelana se mecherem e encararem sua face com veemência. Foi então naquela época que uma chuva torrencial invadiu a cidade de San Morrebon e deixou ruas alagadas, enquanto casas restauradas faziam goteiras aparecerem no teto e provocar destruição nos interiores das residências. Mama escutava todos os dias, enquanto lá fora a chuva caía, um ruído de que os anjos protegiam as vilas.
Mama Abigail tensionou os ombros e olhou pela janela circular e avistou os clarões que os relâmpagos faziam no céu enquanto as gotas caíam ininterruptas. Na primeira vez a luz tempestuosa formou um borrão desconexo e estranho o suficiente para que Abigail pensasse ser uma série de pinceladas feitas por Deus. Em segunda ocasião analisou e formou nos pensamentos imagens borradas de uma montanha. Por último se fez com o clarão e as penumbras que vertiginosamente se retesavam entre uma camada de luz branca e uma camada de luz azul. Formou-se um rosto. Os olhos pareceram provocar fagulhas e o nariz saíra de foco, dando mais visibilidade à boca sorrindo e com poucos traços de ser graciosa. Era um anjo. E fora o primeiro contato (mesmo que indiretamente) que Mama Abigail teve com um ser de luz.

+ + +

- Larga! - grunhiu Natcho, forçando a adaga para trás em gesto de recuo. - Não tem o direito de ocupar nossos terrenos dessa forma! Nunca invadimos os seus!
- Ninguém se fere aqui. - disse o ser com enormes asas dobradas com as penas arrastando-se nos calcanhares. - Especialmente o bem. Quanta impetuosidade, Karodes.
Mama Abigail deu alguns passos atrás, se afastando das asas do anjo brilhante e chegando perto de Katherine. A mulher tinha um ferimento na cabeça e o sangue escorria pela sobrancelha.
- O nosso impasse não vale de nada para o seu senhor? - perguntou Natcho, com um resquício de bravura iminente na voz. - Vocês não viriam à terra e nós não iríamos aos céus.
- Isso proviria caso não quisessem interferir tanto no bem, Karodes. É natural que a nossa luz faça questão de defender o bem das forças dos infernos. - o anjo bateu asas e lançou dois demônios que seguravam Patrick para longe. O garoto tombou no chão e sentiu o clarão pesar em seus olhos inquietos. - Abigail é nossa mediadora mais influente. Tive que intervir para que sua orda de infestantes das colheitas malignas não fizessem mais vítimas.
- CHEGA! - berrou Natcho. - O vínculo se quebrou e as forças do mal aumentaram com essa traição desonrosa! Era só não se meter em nossos deveres, Ionus. Agora sua ordem de luz provará o sabor dos confins do inferno!
Karodes abriu a boca e seu maxilar quebrou aos poucos se estendendo até a altura do peito. O mesmo fizeram os outros demônios que se enfileiravam agora ao lado dele. Do interior das bocas surgiram dezenas de besouros negros que invadiram toda a sala. Ionus deslocou-se e estendeu as asas ao meio da sala. Uma luz branco-azulada jorrou de suas vestes e penas inundando a sala numa iluminação incrivelmente arrasadora. Os besouros percorreram cada milímetro do ambiente ao perseguir algo que os faria se alimentarem. A proteção de luz fez com que Ionus levasse algum tempo para chamar os outros anjos.
Katherine, Mama e Patrick correram para os fundos da casa, em direção ao quarto do casal. Uma surra iminente veio pela esquerda e fez Katherine impactar-se contra a parede. Elisabeth estava agora sobre a mãe com as mãos no pescoço da mulher, apertando como se sovasse uma massa. Mama Abigail levou as mãos até o rosto de Elisabeth novamente:
- SOLTA! - gritou Mama, pressionando os dedos com os anéis ardentes no rosto da menina. - Arcore posen narbore...
Elisabeth retirou uma das mãos do pescoço de Katherine e jogou o braço em direção a Mama Abigail. O corpo da mulher foi contra a porta e foi derrubado com violência. Elisabeth retornou a mão para o pescoço de Katherine.
- Você é uma mãe ordinária! Atirar na própria filha? Eu diria que uma mãe não faria o que você fez! - Elisabeth berrava perto do rosto de Katherine com poder maligno beirando no hálito podre. Dois mosquitos escaparam pela boca da menina num instante. - Te levarei ao inferno comigo mamãe!
- Não. - uma voz nervosa saiu de trás da garota quando o pescoço de Katherine ficou roxo o suficiente para o ar não passar mais para os pulmões. - Você que vai voltar pra lá!
Patrick apertou o gatilho e a bala alcançou uma velocidade tremenda em direção ao demônio no corpo de Elisabeth. Porém a menina se esquivou e a bala raspou sua têmpora.
Ela largou o pescoço da mãe e tomou o de Patrick, logo após retirar a arma de suas mãos:
- Quer matar sua irmãzinha garoto? - perguntou ela com desdenha. - Então Mata! Atira! Eu retornarei ao inferno, porém você nunca mais a veria! - a risada que se seguiu a sua voz assustadora foi erguida por todo o ambiente.
- Devolve minha irmã! - disse Patrick tentando retirar a mão de Elisabeth do seu pescoço. Seus pés balançavam a dez centímetros do chão.
Ela deu mais uma risada e se dirigiu às escadas do porão. À porta ela disse:
- Nunca me enfrente! Nunca! - o corpo de Patrick foi jogado para além da entrada do porão. O escuro dificultou, mas Elisabeth não ouvira qualquer tipo de baque nos degraus. Regressou e tornou a encarar a escada, quando uma luz branca cegou-lhe. Uma anjo veio com Patrick nos braços.
As mãos do anjo tocaram a menina e Elisabeth gritou. O demônio saíra num momento sagaz. Em instantes Katherine se arrastou pelo chão e olhou a filha. Elisabeth estava com os olhos lacrimejando:
- Mamãe... - era ela.
- Filha. Querida. - Katherine passou as mãos pelo rosto da menina. Enorme quantidade de sangue escorria agora pelo chão dos ferimentos dela.
- O demônio impediu enquanto estava em posse do corpo dela que os ferimentos sangrassem. Então agora que ele saiu fez questão de reverter isso! - disse Mama com convicção.
Elisabeth olhou para a mãe e sorriu de leve. Os olhos, porém, não fecharam-se quando a garota se foi. Katherine debruçou-se sobre o corpo da filha com imensa dor no coração.

+ + +

Os anjos duelaram com suas luzes enquanto os demônios atacavam com as pragas do inferno. A maldição e a redenção lutavam sobre um teto, entre colinas que se afastavam do mundo.
A música da batalha atingiu os confins dos dois lados. Das crateras revestidas do inferno saltaram os demônios mais poderosos e das nuvens além dos céus desceram os anjos mais guerreiros e bondosos.
Todos se encontraram além da cerca para decidir o fim de um impasse.

ALÉM DA CERCAOnde histórias criam vida. Descubra agora