TRÊS

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Katherine tinha percebido o olhar fraco do homem encará-la em desalinho, como se tivesse sentindo pena extrema dela. Era a última coisa de que se lembrava: ela foi carregada por ele para longe da cerca e ele disse que ia contá-la toda a história.
Então ali estavam eles. Ela sentada a frente do caseiro, esperando a versão dele sobre o ocorrido. Parte dela queria, por tudo, abrir bem os ouvidos e escutar claramente o caseiro falando, a outra simplesmente queria deixá-la sair correndo em desespero e atravessar aquela cerca, nem que cavasse um buraco profundo servindo de túnel ao outro lado.
Eu os vi. Pensou Katherine. Meus filhos. Eles estavam caminhando de mãos dadas do outro lado da cerca. Não me ouviam. Uma sombra os seguiam. Eles não me ouviam.
O caseiro serviu um pouco de água para a mulher na própria cozinha do casebre. O marido ainda dormia no quarto e não tinha ideia do ocorrido.
- Você poderia simplesmente me dar ouvidos e não tê-los deixado ir até lá. - retrucou o velho homem, com rugas na testa e um nariz adunco. - Eu era conhecido por todos os moradores anteriores como Natcho. Quando conde Blasy veio morar com sua bela esposa, Ananice, eles enfrentaram uma série de problemas. Desde a gravidez de Ananice até o surgimento de sonhos perturbadores que o conde tinha todas as noites. Eu cuidei destes terrenos por trinta anos. A primeira família que veio morar aqui era vista por todos como problemática. O pai surrava a mãe quase todos os dias. Bebia e descontava todas suas frustrações na mulher e nos filhos. Uma vez ele tentou me esfaquear achando que eu tinha um caso com a esposa. Eu estava na horta, colhendo os nabos do dia anterior quando ele começou a falar coisas desconexas ao meu respeito. Ergueu uma faca que brilhava contra a luz e impulsou contra mim. Eu a lancei longe com um golpe de enxada. Eu sabia que sombras o perturbavam todas as vezes que ele bebia. Joanna, sua mulher, sempre contava-me isso. Os olhos arroxeados e o lábio partido. Ela me contava. Eles tinham três filhos. As duas garotinhas adoravam brincar com uma corda em uma árvore que ficava ao lado desse casebre. - ele apontou para uma janela da cozinha e mostrou o lugar onde ficava a árvore anos atrás. - Elas amarravam uma ponta no tronco, uma girava e a outra pulava. Eram crianças, naturalmente. Assim como era uma brincadeira inocente. Porém numa manhã quando Joanna acordou encontrou as filhas, juntas, penduradas a cinco metros de um galho da árvore pela corda. Enforcadas. Os corpinhos estavam pálidos e os sinais de luta eram visíveis no corpo. Mas o que a deixou mais aterrorizada do que ver suas filhas mortas ali a sua frente foi ver que o marido estava ali, parado, olhando as garotas penduradas com um sorriso no rosto e os olhos tão negros que o diabo teria receio de enfrentá-lo. Então ele gargalhou e apertou a faca nas mãos.
Katherine tapou a boca e sentiu um aperto no peito num impacto de um caminhão de carga sobre ela. Imaginou-se no lugar daquela mãe, perdendo dois filhos. E era exatamente o que ela estava passando. Mas o que distinguia um de outro era que o próprio companheiro de Joanna e pai das meninas tinha feito isso. Então Natcho continuou:
- Eu encarei a cena. Vi quando a mãe gritou e correu para cima do marido. Sem armas. Suas armas eram a dor pela perda das filhas, era o amor que tinha por elas e o ódio que sentia pelo homem com quem viveu por muito tempo e que acabara de descobrir ser um monstro ou até mesmo ser atormentado por um. Mas antes que ela chegasse eu vi que o terceiro filho, um garoto um pouco mais velho que as meninas, correu para defender a mãe. O marido porém matou a mãe com brutalidade e quando terminou seus olhos negros produziam sangue quente que pingava no jardim. Mas não deixei que ele tocasse no garoto. Levei-o para longe dali enquanto o pai esfaqueava a mãe. O fiz ficar calado no porão, enquanto minha mão tapava sua boca e suas lágrimas desciam pelos meus dedos. O garotinho viveu comigo por alguns dias até que eu o levasse a um lugar seguro, em uma casa de uma senhora que prometeu acolhê-lo. Eu nunca mais o vi.
Katherine deu um suspiro e tomou mais um gole da água, antes que o caseiro continuasse:
- Então após dois anos veio a segunda família enquanto eu ainda estava no meu posto de cuidador do terreno. Eu nunca saí desse lugar porque não tenho como sair e nem para onde ir. Mas sempre tive certeza que todas essas famílias que vieram morar entre essas colinas, nessa cidade e nessa casa não vieram por ampla necessidade. Creio que foram enviadas.
- Enviadas? - perguntou Katherine, pensando no amigo do marido que tinha recomendado que eles fossem para aquele lugar.
- Sim. Enviadas. - respondeu Natcho. - Creio que por uma ceita. Uma ceita hereditária e satanista. Esse lugar é um matadouro e essa ceita está enviando há anos pessoas para cá para roubar suas almas.
Katherine novamente se apavorou. Seria esse amigo de Tom um membro da ceita? Ela rezou para que não.
- Depois que a segunda família morreu afogada em um rio que encheu durante as chuvas intensas do ano de 1962, eu tive ainda mais medo do que viria. Então seguiu-se. Vieram mais e mais. Todas as famílias tinham pelo menos um membro com problemas com sombras e espíritos. Sempre observei isso. Porém quando cheguei aqui aquela cerca já estava no devido lugar. Sempre tive medo de me aproximar desde que vi nove pessoas em uma noite do lado de lá ao redor de uma fogueira de mãos dadas. A fogueira cheirava mal porque ao invés de tocos de madeira eles estavam usando dezenas de gatos. Eu ouvia os miados enquanto o fogo crepitava nos pobres felinos. Mas, antes disso, havia uma mina de carvão que era explorada há pelo menos um século. Mineiros escavavam e trabalhavam nela quando desabou. Centenas deles morreram. Dizem que nesse dia alguns deles levaram os filhos para conhecer o lugar. Ninguém sobreviveu. Provavelmente depois do desabamento a cerca foi colocada para impedir que alguém ultrapasse os limites.
Um som veio de trás e Tom apareceu na porta da cozinha.
- Kat? - falou ele, com o rosto franzido de sono. - E você... - ele apontou para o homem.
- Ele é o caseiro daqui há anos. Ele nos ajudará. - ela começou a chorar por causa dos filhos.
- Kat? O que aconteceu? - ele abraçou a mulher.
- Espera. - falou Natcho, o caseiro, analisando o marido de Katherine. - Eu o conheço?
- Creio que não. - respondeu ele, a mulher afastando-se e enxugando as lágrimas.
- Hytton... - murmurou o caseiro para si mesmo. - A família. A primeira. Eram os Hytton. E você é Tomas Hytton!
Tom ergueu os olhos e analisou a casa. Sua boca se abriu e ele olhou em direção à janela e ao lugar que ficava a árvore lá fora. Ele gritou e caiu de joelhos. Imagens vinham na cabeça dele. Sua mãe morta pelo pai e suas irmãs enforcadas. Ele sendo retirado dali pelo caseiro e fugindo.
- O que está acontecendo? O que houve? - perguntou a mulher.
- Ele está se lembrando. É ele! Ele é o garoto que eu ajudei. Eu nunca esqueci ninguém que já passou por aqui!

ALÉM DA CERCAOnde histórias criam vida. Descubra agora