DOIS

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A placa era velha, tendo quase vinte anos. A madeira forte entroncada ao solo junto a um retângulo de ferro e arame retorcido com os dizeres: "Bem-Vindo à Focke's Hill, o seu lar agora e sempre." era o que montava a estrutura da placa na beira da estrada. Além de um coelho morto na pista com os olhos vesgos e pequenos vermes de corpo amarelado se retorcendo nos orifícios das narinas e moscas zumbindo no ventre esmagado em entranhas e sangue seco envernizando o asfalto.
Tomas Hytton passou pela placa com o olhar atento nas colinas que rodeavam a cidadela sombriamente escondida do mundo. O rádio sintonizado em uma estação desconhecida por ele tocava um jazz e Tom tentava cantarolar a música, reconhecendo-a de algum lugar. Talvez fosse do rádio de mão que Richard Merllen, o colega operário, levava ao trabalho, quando estava triste pelas brigas constantes com a esposa ou pelo pagamento escolar dos filhos que por vezes alcançava mais do que o seu mísero salário.
Tudo que Tom tinha (e talvez uma das poucas coisas que ele não ousaria vender) era o carro. O automóvel era um modelo 1977 com pintura desgastada num cinza pálido e vidros embaçados, os bancos traseiros tinham o estofado e a costura remendadas a linha grossa. Os seus filhos sempre reclamavam do desconfortável assento e sabiam que o pai diria a mesma coisa: "- Ele é velho! Foi do meu pai e do pai dele. É como uma cicatriz, saibam disso.".
Tom ainda achava estranho morar tão longe e numa casa distante de tudo e todos. Frederic tinha lhe situado onde pudesse encontrar uma moradia de refúgio, mas não uma habitação em um buraco numa cidade até a semana anterior não existente no mapa mental de Tom. Mas era o que tinham. Até Tom arranjar outro emprego, e era o que tinha feito indo até o outro lado da cidade. Encontrou uma loja de ferramentas, a New Pecces, e a oficina Larrent Dannel Billy, porém nem uma das duas soube apresentar-lhe uma vaga simples de emprego. Era só o que ele queria: uma vaga simples.

+ + +
Patrick ouviu o barulho de motor velho do carro antigo do pai perto dali, numa garagem improvisada ao lado da varanda do casebre. Ele desenhava com os poucos pincéis que a antiga vizinha deles, a sra. Pnell, o deu de aniversário dois anos atrás.
- O que acha que tem lá? - a irmã, Elisabeth, se aproximou com uma xícara de chá quente nas mãos. Sentou-se ao lado de Patrick e observou os traços do menino no papel amarelado. Ela sempre achou esquisito os tipos de desenho dele, mas nunca o comunicou oficialmente sobre isso.
- Do que está falando? - Patrick tinha uma leve ideia, mas quis não pensar mais no assunto.
- Da cerca. Eu a vi. - disse a garota, sentindo o gosto quente do chá que a mãe acabara de ferver. - Logo após o caseiro ir embora. Analisei bem depois que a neblina se esvaiu. Percebi as madeiras e os arames da cerca. Realmente existe. - então logo após repetiu a pergunta: - O que acha que tem lá?
- Você ouviu o que ele falou, Beth. Não irei repetir. - Patrick então fez novos traços no papel. Então pareceu mais riscos obtusos, sem expressão ou significado. Elisabeth percebeu que ele tremeu um pouco, quando o pincel fez uma curva e fez uma linha desconexa comparada ao restante do desenho.
A morte. Foi o que o caseiro havia dito. Mas o que significava necessariamente a morte?
- Escute, Pat. - Elisabeth ficou de joelhos na frente do irmão. - Viemos morar aqui ontem e esse lugar me parece realmente fora do comum. Aquele caseiro falou que o antigo morador morreu com a família, você ouviu bem! Temos que saber o que aconteceu e se tem algo a ver com aquela cerca.
- Não Beth! - retrucou o garoto, parando de dar os traços. - Não temos nada a ver com isso! Ele falou com todas as letras o que tem daquele lado da cerca, embora não tenha sido específico!
- Exatamente, Pat! Ele não foi específico, o que torna a situação mais misteriosa. Se vamos continuar a morar aqui, estamos correndo risco! Não só nós, como papai e mamãe também. - Elisabeth deixou a caneca de chá de lado e segurou na mão trêmula do irmão.
- Então pedimos que a gente saia daqui! - exclamou Patrick. - Que é perigoso continuarmos aqui.
- Mamãe já disse que o caseiro é um maluco que não tem nada o que fazer. - disse Elisabeth. - Foram exatamente essas palavras que ela usou. Então acho que o papai não pensará diferente.
Nesse momento Tom entrou pela porta da frente com uma pasta em mãos.
- Olá, queridos. - ele se aproximou e beijou o topo da cabeça dos filhos. - Onde está sua mãe?
- Na cozinha. - respondeu Elisabeth.
- Obrigado, querida. - ele sorriu para a garota e olhou para o desenho de Patrick. - Pat, engano meu ou você está mais abstrato hoje?
O menino parou e notou realmente os traços sem significado ou sentido. Quando ele teve que aprender a fazer isso para se aliviar?
Tom saiu em direção à cozinha. Elisabeth olhou para o irmão, tentando ainda mudar seu pensamento relutante:
- Papai reconhece quando você está diferente. E eu sei exatamente porquê. Eu estou disposta a ir até aquela cerca. Hoje à noite. Posso contar com a sua ajuda?
Patrick pousou o lápis ao lado do conjunto de folhas e encarou a irmã:
- Passamos dois minutos a cinquenta metros dela e retornamos. - pediu ele, assumindo um ar persuasivo.
- Tudo bem. - ela deu um risinho e levantou, levando o chá consigo.

+ + +
A noite caiu como um véu negro cobrindo os montes e colinas à beira do sono. A recém casa dos Hytton tinha algumas luzes acesas na varanda e sala de jantar. Katherine resolveu não contar nada ao marido sobre o ocorrido naquela manhã com o caseiro misterioso. Muito menos sobre a cerca.
A carne e o purê de batatas com ervilha desceu como lava borbulhante pela garganta de Patrick. Faltavam meia hora até que Elisabeth saísse com ele em direção à cerca. Era noite, o que tornava tudo ainda mais amedrontador, levando em consideração o medo surtido na voz do caseiro que vinha como alerta na mente do menino vez ou outra.

+ + +
Tom dormiu cedo. Katherine estava lendo um livro na pequena sala de leitura do casebre. Era a hora. Elisabeth correu os olhos pelo quintal em breu e puxou o irmão. Patrick seguiu-a com a lanterna em mãos.
- Não acho que seja uma boa ideia. - alertou ele.
- Acho que é um ideia válida para nossa segurança. - respondeu Elisabeth, seguindo adiante.
Faltava um pouco mais de quinhentos metros até que chegassem ao pé da colina Sprattew. Ao lado estaria a cerca. Já tinham uma visão bem formada da cerca, com as grades sobre madeira e aço. A luz da lua brilhava nela, enquanto a neblina se afastava aos poucos dando visibilidade.
- Tudo bem, Beth. Vamos. - Patrick virou a lanterna para o outro lado, em menção de regressar ao casebre.
- Espere! - ordenou ela. - Ainda não. Vamos ver mais de perto. Com certeza deve ter algo do outro lado que possamos enxergar.
- Isso é uma péssima ideia. - avisou o menino.
Eles seguiram. Passo por passo. Na direção da cerca. Então ali estavam. Elisabeth tocou na cerca. Seus dedos sentiram o gelo em cada pedaço do metal nela, um calafrio subiu-lhe a espinha e ela fixou os olhos para lá dos seus terrenos. Era um corredor com plantas e cruzes enfiadas no solo. Como um cemitério antigo. Ela sentiu um frio trespassar-lhe e Patrick congelou quando ouviu um sussurro tenro no ouvido. Era como o sopro do vento do lado contrário, vindo das ruínas além da cerca. O sussurro persistiu mais uma vez e ele se juntou a Elisabeth. A visão dos dois foi surpreendida por uma imagem a poucos metros dali. Ao lado de uma das cruzes uma pessoa. Não exatamente com pele e ossos, mas uma sombra. De pé e ereta.
Ele que está sussurrando... pensou Patrick. E tentou desvendar o que seria as palavras. O sussurro veio mais uma vez: Ref...em... mi...nea
Ele não entendeu bem o que significava. Novamente.
- Reformem a mina. - disse Elisabeth. Patrick olhou para ela e percebeu que ela também ouvia o sussurro.
Mas antes de darem o passo atrás e irem embora, uma garotinha de vestido branco de renda e cabelinhos dourados estava a frente deles. Patrick fechou os olhos com pavor e Elisabeth sentiu uma mão apertar-lhe o coração. Estava muito mais frio.
- Vocês vieram nos ajudar? - perguntou a menininha. - Papai está embaixo das pedras. Papai está embaixo das pedras. Ajudem. Ajudem. Ajudem.
Então seus olhinhos começaram a produzir sangue. Ele descia quente pelas suas bochechas enquanto ela repetia ajuda. Elisabeth e Patrick quiseram correr, mas as mãozinhas da garotinha os empurrou em um buraco que não tinha fim.

+ + +
- NÃO! - Katherine gritou quando viu os filhos atrás da cerca. - NÃO! PATRICK! ELISABETH!
Ela vinha correndo e tropeçando pelo campo. Estava se aproximando da cerca quando viu uma garotinha chorando sangue atravessar o metal da cerca como o vento.
- PARE! - uma mão a segurou e a impediu de dar mais algum passo em direção à cerca. Ela virou-se e viu o caseiro. - Eles se foram.
- Não, não, não... - ela relutava em aceitar aquilo. - Não pode! Eu não aceito!
- Eu avisei! - retrucou o caseiro olhando nos olhos da mulher com clareza. - Eu disse para não se aproximarem desse lugar. Dei ordens expressas, mas eles não ouviram. Agora não tem mais nada o que fazer. Eles os levaram.
Katherine caiu de joelhos no chão e chorou o suficiente para a palma da mão no rosto ficar encharcada de lágrimas.
- Meus filhos... - murmurou ela, num suspiro. - Não...
- Temos que sair daqui. Eles se foram. Não podemos fazer nada. Só... só... - ele a olhou e a carregou para longe dali. - Vou contá-la toda a história.

ALÉM DA CERCAOnde histórias criam vida. Descubra agora