Ninguém dormiu aquela noite. Ao invés disso decidiram retornar para o lado externo do casebre e pensar em algo antes de se aproximarem novamente da cerca, dessa vez com Tomas Hytton.
- Isso é impossível - disse ele, enfadado com a situação embaraçosa que havia virado a lembrança na sua cabeça. - Como pode eu não ter lembrado disso? Desses acontecimentos? Desse lugar? De você! - ele apontou para Natcho, o caseiro, e reformulou a pergunta com um estranho sotaque sulista: - Você pode me dizer o que aconteceu?
Natcho observou o olhar pesaroso do homem e imaginou o garotinho de anos atrás o observando com os mesmos olhos de quando partiu. Os olhos que carregavam o peso da morte da família e do desespero da solidão, o peso do desconhecido que o puxava para um labirinto de mágoas eternas e sombrias, de onde ele nunca mais tinha saído. As lembranças daquele dia estavam apenas guardadas, reservadas em sua mente em uma caixa de ilusões, esperando a hora certa para ser aberta. E isso tinha acontecido vinte minutos atrás.
- Não sei. - respondeu o caseiro, com ar displicente. - Talvez tenha sido a ceita...
- Ceita? - perguntou Tom. Ele realmente não tinha conhecimento disso. Natcho contara apenas para Katherine.
Então veio toda a explicação sucinta do que seria a ceita. Natcho explicou com base nas suas teorias à respeito da ceita. Sabia muito pouco na verdade, ou melhor, sabia somente que tinha a possibilidade de existir. Após tudo explicado, Tom lembrou de muitas outras coisas do tempo em que vivia no casebre com a família. Lembrava do pai entrando em casa aos tropeções com cheiro de bebida e cigarro, cambaleando para a cozinha e derrubando objetos de decoração que a mãe colocava sobre os móveis e acordando todo mundo. Lembrou quando sua mãe tentava esconder a história de que o pai via sombras dançantes e corpos de luz gritando ao redor dele simplesmente relatando que era apenas o efeito da bebida. O fato dela saber que realmente era verdade eram os olhos do marido. Eles ganhavam um toque negro de pérola rígida e o lençol aparecia vez ou outra com manchas de sangue onde ele repousava a cabeça. Tom ainda relembrava quando Natcho o levou para longe dali no carro do pai. Eles chegaram à casa de uma senhora que vivia sozinha em uma casa moderna nos destinos da estrada Snothy Draxie. Salena cuidara de Tom durante dez anos até descobrir uma grave doença que lhe atingira o cérebro. Sua morte veio um ano depois quando Tom conseguira um emprego na cidade vizinha e aprendeu a dirigir três anos atrás.
- Onde estão Patrick e Elisabeth?
A pergunta de Tom deixou Katherine desconcertada e Natcho com uma coceira irritante atrás da orelha.
- Eles atravessaram a cerca. - revelou o caseiro.
- NÃO! - Tom gritou e mirou a esposa com espanto. Levantou e saiu correndo em direção à cerca. Ele pensou que os filhos estavam dormindo. A imagem dos dois na cama aconchegados veio tanto em sua cabeça que ele preferiu acreditar nessa verdade.
- Tomas, não! - chamou o caseiro, a barba grisalha resfriando com o tempo. - Não podemos! É perigoso!
- São os meus filhos! - dissera ele, nervoso, tentando se soltar do aperto de Natcho em seu braço.
- São Nossos filhos! - retrucou Katherine, começando novamente a choramingar. - E eu vi o que tem naquele lugar! Chamei-os e eles não me ouviram! Caminhavam de mãos dadas e uma sombra os seguia, sem contar uma menina que... que... chorava sangue. - ela abaixou a cabeça e tocou nos olhos. Eles estavam gelando. A sensação foi esquisita, porém em um segundo se esvaiu.
Chorava sangue. Como meu pai, pensou Tom.
- Então o que vamos fazer? Ficar aqui e deixar que meus filhos morram naquela cerca? - Tom chutou o arbusto podado ao lado e bufou algumas vezes. - Natcho, você sabe muito bem o que aconteceu com a minha família nesse lugar! Agora, pensando bem, acho que foi aquela cerca que tranformou meu pai naquilo! Tinha vezes que ele chegava e eu o via caminhar desajeitado na direção de lá, bêbado. Em um sábado quando acordei cedo ele estava dormindo bem perto dela. Eu nunca comentei nada com mamãe, porque tinha receio. Talvez eu fosse o único a acreditar que aquela coisa tinha algo de estranho.
- Eu também sei, garoto. - Natcho não percebera que chamara Tom de garoto. Era assim que o chamava quando criança, naqueles terrenos. Logo depois do triste ocorrido na família Natcho passou a chamá-lo pelo nome. E, apesar de tudo, nunca o esqueceu. - Vivo aqui há muito tempo. Todos os dias vejo aquela cerca e sinto meus olhos esquentarem. Eu a encaro de longe, daqui mesmo, mas é como se uma maldição refletisse em minhas córneas de maneira efetiva e autoritária, como chamas trazidas pelo vento fresco que toca o meu rosto. As fagulhas tocam minha íris fazendo com que eu vire meu rosto e encare outra coisa.
Katherine estava abraçada ao marido e queria sim retornar até lá. Poderia morrer indo até a cerca novamente. Mas no que isso contava? Se esse fosse o destino de seus filhos também seria o dela.
- Mama Abigail. - disse, num solavanco, o caseiro cansado. Ele se ergueu. - É claro! Já tenho quem pode nos ajudar. Mas não se aproximem daquela cerca. Tomas, a chave do carro!
Tom fitou Katherine e pegou a chave no bolso no casaco e jogou para Natcho.
- Me esperem aqui. - ordenou, e saiu em direção ao veículo estacionado de Tom.
+ + +
Mama Abigail não era tão velha quanto Natcho. Ela tinha leves fios brancos na cabeleira e algumas rugas horizontais ao lado dos olhos. Ela usava uma exarpe na cabeça e um vestido branco com um colar de várias pedras, e nas pedras tinham olhos incrustados.
- Olá, Mama Abigail, para os atacados por seres. - se apresentou e deu uma rápida analisada nos terrenos. Então quando pôs os olhos, mesmo através da escuridão, na cerca ao longe, ela deu quase dez passos a frente e apontou. - Pelos deuses dos espíritos, este lugar está carregado de maldade! Sofrimento e angústia. Porque vieram para cá, queridos? - ela virou com a expressão assustada.
- Fomos enviados por um amigo da família. - disse Tom. - Porém já vivi aqui durante a minha infância quando...
Ela ergueu uma das mãos com os anéis dourados e tilintantes. Tinha no mínimo dois em cada um dos dedos.
- Natcho contou-me sua história, querido. Eu sinto agora. Apesar de você ter sido enviado por Frederic, parte de sua alma nunca saiu desse lugar. Por isso você voltou.
- Como sabe o nome dele? - nesse momento Tom estava boquiaberto e cético.
- Tenho contato com entidades e sussurros brandos. Os demônios rondam a terra mais do que o inferno, querido. - ela se aproximou de Tom e Katherine. Mama Abigail tocou o rosto da mulher e Katherine sentiu os anéis da velha frios na bochecha quente pelas lágrimas. - Ouvi. Mamãe. Menino. Estamos bem. Menina. São seus filhos? - ela os escutava.
Katherine deixou uma lágrima cair e Mama Abigail tirou a mão do rosto dela e tocou-lhe as mãos, aquecendo-as nas dela.
- Garanto que ouvi as vozes dos seus filhos, querida. - ela alisou com os dedos a palma da mulher. - Isso quer dizer que eles estão vivos? - perguntou Katherine, com um leve sorriso.
Mama Abigail deixou a mão da mulher e lhe virou as costas:
- Sinto muito - ela balançou os anéis nos dedos e olhou novamente para a cerca. - Só ouço os mortos.
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ALÉM DA CERCA
HorreurUma família decide ir morar em uma cidade distante depois que recebe ordem de despejo e é ajudada por um amigo. Diante de todos os problemas nada chegará perto do que tem além da cerca entre duas colinas sombrias. Talvez eles descubram ou morram ten...