Primeiro ela ouviu rangidos mortos, como murmúrios de correntes se arrastando num calabouço. Em seguida veio o gélido vento ultrapassando sua conexão, num raio inesperado, atiçando seu controle sobre as sombras. Por último sentiu o gosto estranho de podridão na língua, como se chorume fosse derramado aos pingos no seu paladar.
Sombras frias
Devolva assim suas almas
Esquente os corpos
Que tenha mentes calmas
Mama murmurava com os olhos fixados num ponto no alto. Estavam pálidos e lacrimejavam, resplandecendo um brilho opaco e sem vida. Ela continuava a tentar reverter a situação.
- Segura! Pega ela! - gritou em ordem Tom para Natcho, que retirou os olhos amedrontados das crianças risonhas, segurando em seguida Katherine pelas pernas.
- Não se aproximem! - ordenou o caseiro, apontando para os demônios no corpo das crianças. Ele olhou rapidamente, numa breve inclinação da cabeça, para um dos espelhos no chão. Ele refletia a imagem das crianças. Ou melhor, a imagem do que estava dentro delas: uma criatura de pele encaroçada e avermelhada com um par de chifres em espiral. A imagem semelhante a um touro do inferno. Natcho sentiu calafrios. Aquilo era um demônio. E estava se divertindo com tudo aquilo.
- Vocês não vão a lugar nenhum. Nem pensem nisso. - falou, com a voz mais grave, Elisabeth.
Tom começou a dar os primeiros passos em direção à cerca. Natcho, por um segundo, achou por melhor esperarem e confiarem em Mama Abigail. Ela com certeza estaria fazendo o possível para resolver o problema. Porém em sua maior parte ele queria por tudo sair dali. Não se sentia bem. Nunca pensou que se sentiria à vontade quando chegasse essa hora.
- Kat, Kat! Fica comigo, querida! Acorda! Acorda! - Tom tentava sacudi-la a todo custo com a intenção de despertá-la do sono da morte. Seus braços estavam pingando o sangue que escorria do ferimento dela, enquanto Natcho conprimia um tecido extra de Mama Abigail contra o golpe.
- Devolva-nos a nossa mãe. - dizia Patrick.
- A levaremos conosco. - ordenava Elisabeth.
- Vocês não poderão se salvar. Nunca.
- Entregue-nos essa vida que os pouparemos da morte.
Mama Abigail tremeu ainda mais e seus olhos brancos se agitavam. Seus joelhos afundavam na terra e as chamas nas velas aumentavam agora e estavam cinco centímetros mais altas. Os anéis da mulher tilintavam e ela continuava a repetir:
Sombras frias
Devolva assim suas almas
Ela ditava as palavras com mais força e rapidez, como um pedido extremo para que os espíritos escutassem. Então Natcho olhou para trás e viu algo sair numa cusparada da boca da Mama. O sangue quente descia-lhe pelo queixo e escorria direto pelo pescoço. Ela continuou:
Esquente os corpos
Que tenha mentes calmas
Sombras frias...
Ela estendeu uma das mãos e tocou a chama de uma das velas, que se apagou no interior de sua palma, entre seus anéis. Patrick parou a meio caminho e sacudiu a cabeça. Olhou de um lado a outro e caiu ao chão, tendo um ataque epilético. Tom continuava a caminhar com Katherine nos braços o mais rápido que podia, entre as cruzes aterradas no solo e o número excessivo de pedras.
- COMO OUSA? - Elisabeth rugiu com voz demoníaca para Mama Abigail quando viu o garoto cair ao chão e ter o ataque. - COMO OUSA BRUXA DOS CÉUS?
Elisabeth correu em direção à Mama, que logo conseguiu esticar a outra mão e apagar a próxima chama. Elisabeth estancou a um metro de Mama Abigail e seus pés pesaram. A garota abriu a boca em direção à cerca e desabou no chão, se contorcendo num ataque.
Natcho agora correu para ajudar Mama Abigail. O sangue ainda quente escorrendo de sua boca e seus olhos pálidos. Ela estava trêmula e o interior de suas mãos queimadas.
- As crianças... ajude... as crianças. - ela apontou com dificuldade para Patrick e Elisabeth. Ambos tinham parado de se debater.
Natcho pôs as duas crianças, uma em cada ombro e as levou dali, acompanhando Mama Abigail, carregando seus pertences e limpando o sangue na pele.+ + +
Precisou de um dia para que ela se preparasse física e psicologicamente. Mentalmente Mama Abigail estava abalada com a situação. Na noite em que retornaram da cerca (por sorte) ela tratou de cuidar dos ferimentos de Katherine, embora Natcho tenha feito maior parte do trabalho durante a madrugada.
A mulher acordou seis vezes durante a noite gemendo de dor e desmaiando em seguida. Natcho limpara o ferimento, que não tinha sido tão profundo quanto ele imaginava (dez centímetros ou menos) e suturou, forrando com gaze após costurar o local. Estava inchado e ainda escorria sangue do local, que precisou ser estancado vez ou outra. Tom ajudou em tudo e não fechou os olhos nem um segundo enquanto ouvisse a voz de Katherine novamente. Patrick e Elisabeth continuaram desacordados em um quarto no sótão (por recomendação de Mama, garantindo que eles não despertariam pelas próximas horas).
+ + +
Katherine sentiu a secura nos lábios rachados e o tronco paralisado. Ela mexeu alguns dos dedos das mãos para sentir a vivacidade novamente. Piscou uma, duas, três vezes para estabilizar a sensação da luz nos olhos. Engoliu em seco e sentiu o pouco de saliva descer com um rasgo rancoroso por sua garganta. Ela lembrava de tudo. De terem ido até a cerca. Dos espelhos. Dos filhos. E principalmente de Patrick (o garotinho que ela sempre amou e que era tão dócil. O filho que adorava desenhar e mostrar para ela o que seria.) a esfaqueando. Ela olhou para cima e viu os olhos do marido encontrarem-se com os dela.
- Oi querida. - disse ele. - está sentindo algo? Não se mova, não se mova... - ele a impediu com um leve toque no ombro quando ela tentou se levantar.
- Patrick... Elisabeth... o que aconteceu com eles? - ela estava extremamente preocupada com os filhos. Se ela estivesse viva e os filhos mortos ela nunca mais se perdoaria. Mas se caso os filhos estivessem salvos e ela houvesse partido ela seria feliz eternamente. Mas agora ela estava apenas parada ali, olhando o marido e tentando saber o que se passava.
- Estou com sede. - ela engoliu em seco e sentiu novamente a sensação de um rasgo na garganta.
- Aqui. - Tom molhou um leve pedaço de tecido em uma jarra de água a passou nos lábios de Katherine.
Ela passou a língua sobre eles, mas não foi suficiente.
- Ela acordou? - perguntou Mama Abigail. Ela parecia bem melhor naquela manhã. O lenço pendendo na cabeça e os anéis balançando como sempre dos dez dedos. Natcho vinha logo atrás.
- Sim. Está tudo bem. - disse Tom e beijou o topo da cabeça da mulher.
Katherine concordou.
- Alguém quer vê-la. - disse Mama Abigail e Natcho trouxe Patrick e Elisabeth.
Katherine se assustou de início ao encarar Patrick. Achava que ele a esfaquearia novamente. Mas não. Em segundos esse sentimento desapareceu e ela sorriu. Patrick estava derramando lágrimas e seu olhar pedia desculpas desesperadamente. Elisabeth também chorava. Eles se ajoelharam diante da mãe e ela se sentiu melhor. A dor do ferimento se esvaiu.
- Vamos sair daqui. - disse Tom para a família. - eu prometo. Vamos sair desse lugar.+ + +
Demorou dois dias para tudo se estabilizar. Katherine já caminhava e não sentia tantas dores. Patrick insistia em pedir desculpas à mãe e continuava a chorar todas as noites. Elisabeth passava a maior parts do dia a um canto do quarto, lendo um livro ou simplesmente calada.
Eles tomaram o carro para sair da cidade. Morariam em outro lugar. Tom pisou no acelerador e o carro saiu pela estrada.
- Desculpa termos vindo parar nesse lugar - disse Tom para a família. - eu não sabia... eu...
- Tudo bem, querido. - disse Katherine no banco do carona para o marido. - Ninguém é culpado aqui. Estamos bem agora, voltando para nossa cidade. Estamos bem.
Patrick e Elisabeth continuavam calados no banco traseiro. Eles passaram por uma placa que dizia: "Bem-vindos à Focke's Hill, seu lar agora e sempre". Um lampejo os atacou. Bem-Vindo? Tom continuou a acelerar. Estava ansioso para retornar à cidade antiga.
Katherine franziu a testa quando viu um posto abandonado, em seguida passaram por uma colina baixa e depois por um casebre. Por um casebre.
- Tom! Por que você voltou? - perguntou ela.
- Eu... Não sei. Não fiz isso. Estávamos saindo da cidade... Não entendo! - Ele acelerou ainda mais e partiu novamente do lugar. Mais à frente a placa. A mesma: "Bem-Vindo à Focke's Hill, seu lar agora e sempre". Então ele foi em frente e novamente estavam se aproximando do casebre de onde saíram.
- O que está acontecendo? - perguntou em desespero Katherine.
- Por que voltamos? - perguntaram os filhos.
Tom não sabia o que dizer. Não importava o quanto eles fossem em frente, de alguma maneira acabavam retornando para o casebre. Não importava o que fizessem. Nunca sairiam daquela cidade.
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ALÉM DA CERCA
HorrorUma família decide ir morar em uma cidade distante depois que recebe ordem de despejo e é ajudada por um amigo. Diante de todos os problemas nada chegará perto do que tem além da cerca entre duas colinas sombrias. Talvez eles descubram ou morram ten...