VINTE ANOS DEPOIS
As casas que formavam o bairro eram de uma cor morta, especialmente durante o verão, quando os anfitriões deixavam de receber os familiares que os visitavam durante a primavera. Algumas eram manchadas num tom rosa pendendo ao roxo, outras eram inteiramente cinzentas, como se tivesse sido destruídas durante a Segunda guerra mundial e permanecido daquela forma por um longo período com militares reforçando o perímetro.
Três crianças brincavam nos becos que formavam um tipo de labirinto com as diagonais das casas. Uma delas segurava nas mãos um velho rádio com uma antena de um metro feita de metal fino com ferrugem. A outra apoiava os chinelos nas mãos e corria sobre as poças de água de chuva do dia anterior, respingando lama nas paredes vizinhas. A terceira era um garotinho com óculos enormes na face, e apesar de ser o menor do grupo, parecia liderá-lo com afinco ao carregar um pequeno mastro com uma bandeira vermelha presa à ponta e seguir à frente. As três crianças viraram a esquina e partiram pela lateral mais estreita do labirinto de becos. Um dia depois os três seriam achados sem os olhos.+ + +
A manchete que cobria a frente do New England Dangerous tinha uma fotografia dos três garotos e seus devidos nomes abaixo de cada uma delas:
Charlie Oswen
Alan Quertyll
Dexie MCorby
Joseph Delares tomou o jornal nas mãos e sentou-se à mesa da cozinha pouco iluminada. Bebericou o café e respirou o denso ar da manhã de verão, lendo cada detalhe do horrível assassinato de três crianças de Bencreespie e o comentário de cada policial sobre as mortes.
Joseph encarou um pouco mais a primeira página com a testa franzida e um duro gole de café descendo pelo peito. Logo após deixou o jornal ao lado de um bebedouro azulejado e abriu a porta final do armário. Tomou para si uma cartela de comprimidos e retirou dois deles e encheu um copo de água do bebedouro.
Subiu as escadas da sala e partiu em direção ao único quarto do andar superior. O único que se encontrava nos últimos dias tão devastado quanto um cômodo sacudido pela guerra e tão monótono quanto uma sala escura se torna no inverno.
Ele bateu duas vezes na porta e entrou. O copo de água que segurava tremia nas suas mãos conforme ele se projetava para frente e segurava a porta logo em seguida para não bater com o vento.
- O dia não está tão bom quanto imaginamos, não é? - o sorriso do garoto se estendeu e ele se dirigiu ao senhor idoso que se encontrava deitado na cama. - E não apenas pelo tempo, pai.
O senhor bocejou e os poucos dentes que ainda restavam na gengiva avermelhada se sustentaram com força. Ele piscou algumas vezes e tentou se erguer sobre o colchão desgastado e repousar no travesseiro quente. Quando suspirou seu peito inchou e relaxou, e seus cabelos grisalhos formaram uma cortina pálida sobre a sua cabeça.
- O que houve? - perguntou ele ao filho, a voz rouca como o de um fumante por cinquenta anos. Ele tremia vez ou outra demonstrando o peso da idade. E isso ele sentia na coluna trancada, nas pernas em formigamento e dores insuportáveis durante a madrugada e as pontadas desesperadas no peito.
- Os três garotos que pediram comida outro dia aqui em casa foram encontrados mortos. Assassinados, na verdade. - disse Joseph ao pai, que engoliu o comprimido com a ajuda de dois goles de água.
- Assassinados? - ele deveria estar em choque, mas não sentiu tamanhos pêsames. - Mas o que houve?
- Você deveria ser poupado dos detalhes. - aconselhou o filho ao pai. - Descanse.
- Não! - repreendeu o homem de mais de noventa anos. - Quero saber exatamente o que houve, Jos. Me conte! Agora!
Joseph relaxou por um segundo e em seguida sentiu a tensão ao contar ao pai os detalhes do crime bárbaro. Quando terminou, mostrando ao pai doente o jornal com a foto dos três garotos, o pai sentiu uma pontada no peito forte o suficiente para que Joseph o levasse de imediato ao hospital.
Natcho estava morrendo...+ + +
Joseph segurou a mão do pai no corredor do hospital e sentiu a respiração pesada de Natcho.
- Prometa-me! - disse Natcho. - Que vai encontrar... uma mulher...
Ele tossiu forte e sentiu gosto de sangue na boca.
- Pai! - chamou Joseph, apertando a mão de Natcho.
- Uma mulher chamada Mama... Mama Abigail! Ela irá ajudar você! Há vinte anos não a vejo, desde que um demônio me controlou... - tossiu mais uma vez e uma nesga de sangue apareceu no lábio inferior. - E que eu fugi daquele lugar depois da guerra.
+ + +
Joseph tinha vinte e dois anos. Natcho conhecera Elaine ainda com o demônio em seu corpo. Qualquer célula do garoto teria parte do mal embutido.
O demônio abandonara o corpo de Natcho após a derrota na guerra além da cerca, há vinte anos. E deixou-o como uma carcaça. Natcho acordou horas depois entre um mar de mortos e o cheiro podre de fumaça e entranhas no ar.
Joseph tinha sido criado com a mãe após o abandono do demônio que impediu as memórias de Natcho de exibirem lembranças de que ele tinha um filho.+ + +
O dia de chuva veio. O primeiro durante o verão. Joseph tinha enterrado o pai no Cemitério das Graças Nobres e como prometido a ele: procurou Mama Abigail.
+ + +
Não foi fácil. A facilidade vem quando há o que se desconfiar. Foi difícil encontrar Mama Abigail. Encontrara uma fotografia no velho baú de Natcho com uma mulher sorridente. Atrás datava de um período de quarenta anos atrás e era nítido porque Natcho e a mulher eram jovens e alegres. E abaixo data escrito:
" Abigail e Eu. Sempre."O endereço era pouco visível, porém Joseph seguiu para lá. O mesmo local da fotografia era o que ele acabara de pisar naquele momento.
A casa estava um pouco diferente e Joseph bateu à porta, sentindo uma presença do pai ao seu lado. A porta se abriu e uma senhora com uma echarpe no pescoço delgado e as costas curvadas deu um sorrisinho.
- Pois não? - falou, em seguida rangendo os dentes e transformando o semblante de anfitrião para agitado. - Desculpe... entre!
Joseph tinha travado com o convite da senhora. Mama Abigail fechou a porta atrás de si e apertou o xale ao redor do corpo.
- Chá? - ofereceu ela, caminhando com dificuldade em direção à lareira, atiçando as chamas com um ferro. - Ah, deuses, esse frio...
E realmente naquela cidadezinha longe dos becos e vielas de onde Joseph morava era bem mais frio.
- Não, senhora. É... - ele levantou e segurou a fotografia a frente de Mama Abigail. - A senhora conhecia o meu pai?
Mama Abigail inclinou a cabeça só um pouco de lado para prestar atenção à foto. O tempo que manteve-se encarando a fotografia tinha sido menor em relação ao que ela passou para atiçar as chamas da lareira. Então finalmente falou:
- Pai? - ela olhou com os olhos brilhantes para Joseph. - Natcho é seu pai?
- Sim, era. - respondeu.
- Era?
- Exato. Ele faleceu há dez dias. E me disse para procurá-la. - Joseph pôs a foto sobre a mesinha de centro.
- Eu não sabia que Natcho tinha um filho tão jovem. E um belo rapaz, eu diria. - Mama deixou o ferro ao lado dos tijolos da lareira e caminhou até sentar-se na poltrona de frente a ele. - Eu pensei... pensei que... ele havia morrido há alguns anos.
Mama ainda lembrava de tudo. De cada coisa. Da guerra. Dos anjos. Dos demônios. De ir embora enquanto a destruição para lá da cerca ocorria. Tudo. Mas se Natcho tinha um filho tão jovem, isso significava que não fora propriamente Natcho que fizera Joseph vir ao mundo. O verdadeiro pai dele era um demônio, levando em consideração o tempo.
- Ah, bem... - Mama Abigail encarou o rapaz e perguntou: - como você se chama?
- Ah, desculpe! Eu me chamo Joseph. Perdão incomodar a senhora. Meu pai estava passando por algumas coisas estranhas e tendo alucinações ultimamente. Se realmente a senhora não puder me ajudar eu entenderei...
Ela levantou uma das mãos com anéis tilintando nos dedos enrugados.
- Eu vou ajudá-lo. - disse ela por fim. - Se essa era a vontade do seu pai, que seja. Sempre ajudo um amigo. - Ela pegou a foto nas mãos e analisou as costas, vendo a frase que tinham anotado décadas atrás.
Nesse momento a porta abriu e por ela entrou uma mulher de quase meia idade, com alguns de fios brancos nas raízes das madeixas e sacolas de compras nas mãos.
- Mama? - falou a mulher. - Visita? Quem é?
- Ah... esse é Joseph! - a senhora indicou o rapaz para que dessem apertos de mão. - Joseph, esta é Katherine.
Ele deu um sorriso e Katherine percebeu no olhar de Mama que tudo seria explicado depois.
Após as velas estarem posicionadas no chão, Mama Abigail segurou firme as mãos de Joseph e começou a conexão. Por enquanto era seguro limpar o organismo dele do mal, mas Joseph não estaria totalmente seguro durante sua vida.
Seu pai era um demônio que usara o corpo de Natcho para procriar o mal na terra. E Mama Abigail faria o que pudesse para que os espíritos protegessem-no enquanto vivesse.+ + +
Patrick Hytton beijou a esposa debaixo de uma macieira, com pássaros pousando em ninhos próximos. Era o tipo de vida que queria e sabia que de uma forma ou de outra havia conseguido. Os gêmeos corriam de um lado a outro. Margareth, por que Katherine amava esse nome, era como se chamava a garotinha. Tomas era em homenagem ao pai, e era o nome do garoto.
Até onde Patrick sabia nunca mais tinha ouvido falar de cercas ou unidades da ceita. Os anjos estavam protegendo a Terra, como Mama Abigail sempre dizia. Ainda sentia a perda do pai e da irmã, porém o tempo cura tudo. As feridas abertas e as profundas. Sempre cicatrizam.+ + +
És mais poderoso que tudo. O amor. Amar proteger, amar ajudar, amar ter que dar amor. Porque Deus amou e assim quis que os seus filhos amassem. Só assim derrotaria o mal e congelaria o inferno. Para sempre.
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ALÉM DA CERCA
HororUma família decide ir morar em uma cidade distante depois que recebe ordem de despejo e é ajudada por um amigo. Diante de todos os problemas nada chegará perto do que tem além da cerca entre duas colinas sombrias. Talvez eles descubram ou morram ten...