Patrick Hytton lembrava-se do verão passado como uma moeda caindo no mar. Primeiro supriu suas memórias e as compactou num borbulho só, então foi afundando cada vez mais nos seus pensamentos a imagem da foto.
Ele estava no seu antigo quarto revendo o álbum que a mãe guardara desde a primavera de três anos antes. E foi nesse período que começou a desenhar coisas estranhas. Primeiro Patrick havia sonhado com um grande milharal, onde corvos bicavam crânios de macacos e milhões de minhocas carregavam folhas secas por um caminho de dedos podres há muito jogados ali. Foi durante o sonho que viu pela primeira vez a cerca. Ela estava longe, embora sua estrutura e a madeira tivessem tamanha notação em um sonho. Mas ali estava ela.
Patrick sentiu um formigamento em toda a perna (era estranho, porque em um sonho era uma coisa, mas senti-la ali, na cama, mesmo que dormindo, era outra.) e torceu para acordar de imediato.
Um dos corvos o olhou como se pedisse que o garoto morresse para que ele vivesse. "Eu não como há dias, Patrick" o corvo parecia dizer em meio ao movimento do milharal pelo vento. "Preciso de alimento. Preciso de carne. Milhos não são suficientes para mim. Bicarei seus olhos se possível... croc... croc... croc..." os olhos do pássaro eram um espelho enegrecido refletindo a imagem do garoto.
Dezenas de corvos partiram, assim como as minhocas, em direção à cerca. Porém Patrick lembrava agora que ela não estava entre colinas, ela se encontrava numa velha fazenda ao norte de Bercup Screll, a antiga cidade de sua avó. Era lá onde Patrick ia quase todos os fins de semana para se divertir com os primos caipiras, como chamava. Gael e Pascoal tinham, respectivamente, 13 e 11 anos, e Elisabeth amava Gael. Patrick sabia que o único motivo dela ir à fazenda era para vê-lo ordenhar a vaca, levar os fenos para o celeiro e despachar as aves para o campo fechado, montar a égua e retirar do pomar um bom número de frutas para que a avó fizesse a bebida da tarde. Uma vez Patrick a viu falar enquanto dormia dos lindos olhos de Gael. Na mesma noite ele sonhara com um corvo comendo os olhos do garoto. Foi esquisito, mas ele nunca teve coragem suficiente para encarar a anormalidade de contar isso para a irmã.
Havia uma semana que voltara a fazer os desenhos esquisitos novamente. Desde que começara o processo criativo dos tais desenhos aterrorizantes e sem sentido ele prometeu a si mesmo estancar os dedos e travar uma parte de si que queria fazê-los. E conseguiu. Por um tempo. Até que retornasse tudo e o forçasse a esquentar novamente os dedos e a mente fazendo aquilo.
O álbum revestido de couro turquês e detalhado com folhas de prata nas bordas e lombada tinha pastas com simples folhas com fotos 10x13. Uma delas mostrava a família Hytton de vinte anos atrás. O avô usava uma boina e fumava um charuto, além de um suspensório e um lustroso par de sapatos. A avó exibia cabelos ondulados e um vestido com detalhes florais. Tinha as mãos cruzadas a frente do corpo num gesto meigo e à vontade ao lado do marido. No mesmo cenário tinham duas mulheres e Patrick conseguiu enxergar os nomes esritos na ponta dos pés delas: Josevita e Anelita. Eram irmãs. Ao lado esquerdo Tomas Hytton se mostrava um elegante jovem com um paletó num linho dourado e uma rosa ao peito. Os cabelos penteados de lado como um modesto cavalheiro em busca de cortejo por uma dama na sociedade.
Patrick sorriu e analisou a foto com atenção. O cenário não lhe era estranho. A foto tinha sido tirado em um local que ele lembrava-se muito bem. Atrás do pai tinha um leve arranhão na foto e uma madeira. A cerca. Era ali, naqueles terrenos. Patrick tentou ver mais de perto e conseguiu focalizar o rosto da mulher, mãe de Tom. O sorriso de um minuto atrás tinha desaparecido e deu lugar a uma boca atravancada. Os olhos brilhantes e uma mancha começou-lhe cobrir o olho esquerdo. Foi escurecendo pouco a pouco, até ficar num visível contraste de roxidão. Os braços cruzados a frente do corpo também ganharam manchas tão escuras quanto a dos olhos. Os olhos de Patrick seguiram para as duas irmãs. Elas também tinham mudado a expressão. Agora estavam assustadas e gritando internamente socorro, e ele sentiu um aperto no peito quando viu claramente a marca cinzenta que apareceu nos pescoços. Uma marca de enforcamento. Agora as irmãs estavam pálidas como um defunto que pairou pela eternidade no cemitério. Patrick retornou o olhar para a avó e ela tinha furos no vestido. Parecia agora um líquido escuro escorrendo pelas flores estampadas, mas não. Eram furos feitos com a faca que agora o marido segurava nas mãos ao seu lado. O único a não sofrer nenhum dano fora Tomas Hytton. Ele estava intacto, porém com um olhar traumatizado.
Antes de fechar o álbum e esquecer que aquilo existiu Patrick olhou com ainda mais atenção para a cerca na fotografia. Além de um corvo que voava acima dela um homem aparecia ao fundo segurando a mão de uma garotinha.
Patrick tinha certeza. Era a garotinha que viram quando foram para a cerca. A mesma garotinha que empurrou Elisabeth e ele em um buraco sem fim que os levou a depois da cerca. Estava tão morta na vez que a viram quanto na fotografia. Estava distante na foto, logo ao lado da cerca. Ela apertava a mão do homem que Patrick, mesmo à distância, conheceu: Natcho, o caseiro.+ + +
O garoto fechou o álbum tão rápido que o deixou cair em seguida e guardou-o de imediato no armário ao lado. Natcho! Ele sabia sobre os mortos da cerca e pior! Estava com um deles, de mãos dadas. Eles tinham que sair dali agora mesmo. Patrick sabia que não podiam sair da cidade, mas preferiu crer que Mama Abigail faria algo para reverter aquilo. Seria a primeira pessoa a descobrir o que Natcho fazia naquela foto com aquela menina de mãos dadas.
+ + +
Mas ele não cumpriu com o combinado. Tom descansava no sofá, dormindo profundamente depois da sessão com Mama Abigail. Patrick contara toda a história para a espírita e a para Katherine.
- Não é possível... - disse Katherine, analisando a foto no álbum. Dessa vez toda a família estava feliz, sem furos ou marcas ou tristeza, mas Natcho permanecia nela com a garotinha. Patrick achou que estava ficando louco. Tinha visto a foto com a família sofrível e marcada pela violência e morte, agora estavam todos como tinha visto pela primeira vez. - Natcho me disse que mandou Tom para a casa de uma senhora e nunca mais ouviu falar novamente dele.
- Ou talvez... - Mama Abigail pensou por um segundo, lutando para não acreditar em suas concepções. - Tenha sido parte do plano.
- Plano? - interrogou Katherine, rugando a testa. - Está dizendo que... Natcho? Não! Ele não seria um mal para nós!
- É uma hipótese! - falou Mama, mexendo nos anéis e na foto. - Ele ter levado Tom para essa mulher porque ela faz parte de uma ceita.
- Ceita? - espantou-se Katherine e Patrick não acreditou que fosse verdade. - Está falando que Natcho é um membro da ceita?
- Sim. E talvez tenha enviado Tom para essa senhora por causa que precisava dessa casa limpa para receber mais famílias para a ceita. Se Tom ficasse aqui seria como um bloqueio. A ceita nunca envia uma família para um matadouro sem antes ter sido limpo o sangue da que morou antes.
- Como sabe de tudo isso? - perguntou Patrick.
- É que já fui um membro da ceita. - respondeu Mama. - Diante do meu dom eu pude me livrar deles e viver minha vida sem influências de maldade. Meus espíritos do bem sempre me ajudaram e protegeram. Mas agora, vendo isso, sinto algo. Pensei que Natcho tivesse abandonado o cargo, mas pelo jeito não. Ele ainda é membro da ceita, os espíritos sussurram...+ + +
- Obrigado por voltar, membro. Precisamos de você. - falou Natcho, antes que os cem demônios em corpos humanos se aproximassem. - Você fingiu muito bem ser um deles. Devo admitir que se saiu melhor do que eu pensei.
- Meu caminho é a ceita e só a ela eu devo servir. Qual o próximo passo? - Elisabeth deixou o sorriso enegrecer, assim como o demônio dentro dela.
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ALÉM DA CERCA
HorrorUma família decide ir morar em uma cidade distante depois que recebe ordem de despejo e é ajudada por um amigo. Diante de todos os problemas nada chegará perto do que tem além da cerca entre duas colinas sombrias. Talvez eles descubram ou morram ten...