Charlotte

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-Não precisa me mandar para o meu pai para se livrar de mim. Se não tivesse se metido eu teria te poupado desse trabalho a muito tempo.

Minha mãe arrastava minhas malas pelo aeroporto JFK como se o chão estivesse em chamas e tenho certeza que o desejo dela é que pudesse por uma coleira em mim para me arrastar tão rápido quanto.
Ela não via a hora de me despachar para o fim do mundo. Aposto que neste exato momento o Jarry - seu namorado que ela não sabe que conheço a existência- está lá no nosso apartamento pendurando suas roupas em seu closet. Eu quero que minha mãe seja feliz e nos últimos dois anos ela tem sido tudo menos isso. Sei que a culpa é minha. Sei que tenho tornado as coisas difíceis para ela, mas se ela não tivesse interferido nos meus planos não estaríamos aqui agora e ela poderia estar casada com Jarry e quem sabe o John não estaria vivendo com eles sendo o filho perfeito?

Meu pai tem uma vida perfeita, não precisa de mim para chegar como um borrão preto em sua vidinha perfeitamente colorida.

Antes de minha mãe me obrigar a bloquear todas as minhas redes sociais eu conseguia contabilizar as pessoas que diziam o quanto minha presença é indesejada e agora posso acrescentar minha mãe a lista.

O grande mal de se ter uma maldita mente fotográfica é você conseguir lembrar de cada pequena coisa que aconteceu a cada passo que você deu. Ao menos para mim acontece assim. Não importa o quão banal seja a frase que eu escute na fila do banco ou na padaria. Anos depois eu consigo lembrar onde, quando, quem e como foi dito. Eu não consigo fazer backup e apagar o que eu não desejo. O máximo que eu consigo é colocar tudo em compartimentos que se abrem com palavras chave.

Por exemplo se for dito algo parecido ou algo que se encaixe no contexto é o suficiente para abrir o compartimento onde a informação está e eu me lembrar de tudo o que antecedeu.
Quando se trata de aulas e provas tenho que admitir que é uma dádiva, mas quando se trata to tormento que ronda a minha vida e que eu não esqueço. Que fico revivendo dia após dia após dia tentando entender o que fiz de errado. Onde eu tive culpa. Isso se torna maldição. Você querer simplesmente seguir em frente e esquecer algo que te corrói causando dor e saber que isso só vai acontecer na sua morte não é algo que eu deseje para ninguém.

-Não vamos discutir isso de novo Charlie. Vai ser uma experiência boa, você vai ver. Ano que vem você volta para casa e vamos resolver tudo sobre a faculdade durante as ferias.

Ela falava despreocupada como se eu quisesse mesmo entrar nessa droga de avião e não estivesse prestes a surtar. Eu estava indo para o Sul. Um lugar onde todos fedem a cavalo e a esterco. Estou acostumada a buzinas e não a relincho e mugidos ou seja lá o que os bichos que o meu pai tem no rancho fazem.

-Não me espere mamãe. Assim que eu completar dezoito eu estarei saindo. E acredite não vou deixar rastros- arrancando minhas malas se suas mãos segui em direção ao check-in mas ela não me deixou ir muito longe.

-O que você quer dizer com isso? - serio que ela não entendeu?

-Estou dizendo para não se preocupar que não vou estragar seu novo conto de fadas. E se quiser pode dar passe livre para o John fazer o que quiser com o meu quarto. Não pretendo dormir nele de novo.

-Você está sendo egoísta -gritou jogando os braços para cima e deixando-os cair. A rainha do drama fazendo uma cena - Deveria estar contente por eu encontrar alguém que goste de mim e que me queira apesar...- ao perceber suas palavras ela para mas já é tarde. Eu entendei o que ela quis dizer. Apesar de Mim.

-Apesar de mim não é?- minha voz era baixa e entregava a minha tristeza, coisa que eu não queria - Claro, eu deveria estar contente por minha mãe precisar se livrar de mim para que alguém a queira - o movimento de seu braço foi rápido mas a dormência em meu rosto seria permanente. Eu nunca esqueceria a sensação de dor quando sua mão tocou a pele do meu rosto. - Sabe que nunca vou esquecer isso não é? - uma lágrima traidora correu pelo meu rosto e eu me odiei ainda mais por isso - Seja feliz mamãe. Adeus.

Ela me chamou mas eu não quis ouvir. Não quero. Se a única chance de fazê-la feliz é estando longe dela eu aceito isso. Será apenas mais uma coisa que terei que abrir mão. Mas não acho justo ela me jogar assim para o meu pai como se a cota dela já tivesse acabado e agora era a vez dele lidar com a filha problemática.
Meu pai tem o Tommy, e eu não quero estar em torno dele. Sem contar a Marian, eu não quero acabar com o que eles tem.
Fiz o check-in e fui para a área de embarque sem me importar de olhar para ver se minha mãe ainda estava lá. Com certeza ela já tinha ido ajudar o Jerry a pendurar suas roupas ou a empacotar minhas coisas. Eu poderia ter pedido para que ela enviasse por correio mas não sei ao certo como isso funciona lá. Talvez eu peça por email depois.

-Abelhinha - Ouvi meu pai gritar aquele apelido que ele insistia em me chamar desde que eu me lembro.

-Isso era pra ser uma abelha? - apontei para o cartaz que ele segurava onde tinha um desenho de um inseto que é desconhecido até para a ciência.

-A artista da família é você. Vamos, o Ringer está no carro esperando.

Cheguei ao caminhão azul do meu pai e me deparei com um cão de orelhas enormes deitado no banco como se fosse o dono do carro. Abri a porta e ele apenas me olhou curioso. Assim que sentei no lado do passageiro ele depositou sua cabeça no meu colo e continuou dormindo.

-De que raça ele é? - perguntei coçando uma das enormes orelhas do cão.

- ele é um Sabujo Espanhol, ganhei do seu tio Earl a dois anos.

-Hey Ringer, você não parece gostar muito de interagir não é? Acho que vamos nos dar bem amigão.

Fomos em silencio todo o caminho. Eu sentia que meu pai queria falar algo mas eu não estava a fim de conversar por isso olhei para fora como se estivesse admirando a paisagem.

Quando chegamos a Marian e o Tommy estavam na varanda nos esperando. Ótimo tudo o que eu queria era uma recepção de boas vindas.

-Oi querida, fez boa viagem?- Marian me abraçou e vi quando ela olhou para o meu pai como se para ter certeza que ele estava bem. Ele estava tudo menos bem.

-Sim Marian obrigada por perguntar - correspondi seu abraço meio desajeitada e quando ela se afastou uma miniatura do meu pai se aproximou meio tímido.

-Oi eu sou o Tommy, a mamãe disse que já nos conhecemos mas eu não me lembro. Ela disse também que você não me esqueceu porque você não esquece nada é verdade?- Eu só vi o Tommy duas vezes. Uma quando ele nasceu e outra no meu aniversário de 16 anos antes da minha vida virar o caos que é hoje. Ouvir o sotaque sulista do meu irmãozinho de cinco anos era algo tão bom. Me aquecia e me fazia esquecer de coisas ruins. Me fazia pensar em coisas boas.

-Sim Tommy eu me lembro de você. Você destruiu a maioria dos meus presentes no meu aniversario. Baguncei o seu cabelo e passei por ele entrando na casa. Tudo o que eu queria era um banho e ficar quieta no meu novo quarto. Espero que eu não tenha que dividir com o Tommy eu realmente quero um espaço onde eu possa me refugiar.

-Vem, vou mostrar seu quarto. É perto do meu assim você pode me visitar sempre que quiser - Tommy colocou sua mãozinha gorda na minha e me arrastou escada acima sendo seguido por meu pai que trazia as malas. O quarto não era tão grande quanto o que eu tinha no apartamento da minha mãe mas era acolhedor e eu tinha um banheiro próprio o que era o paraíso para mim. Agora eu só precisava de uma desculpa para tirar a todos daqui para que eu possa tomar um banho e dormir até amanha.

-Eu acho que vou tomar um banho e vou dormir um pouco - caminhei até uma de minhas malas e esperei que eles pescassem a minha indireta. Ainda bem que eles entenderam. Meu pai levantou o Tommy até suas costas como ele fazia comigo e caminhou para a porta. Marian me olhou por um momento e foi para junto da sua família.

-Vamos servir o jantar em trinta minutos.

-Ah... não obrigada, eu estou sem fome. Acho que vou só dormir.

-Tudo bem - falou por fim meio desapontada.

-Filha, coloque seu despertador para as cinco e meia você precisa sair daqui as seis e vinte para não se atrasar para a aula.

-Tudo bem. Eu vou me lembrar disso- me levantei e fui até a porta os fechando lá fora. Com um suspiro caminhei até minha mala e peguei tudo o que eu precisaria para um longo banho e caí na cama.

Amanha. Amanha eu pensaria em tudo. Hoje eu só quero descansar.


Minha Razão é vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora