Invasão

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Abri os olhos de repente e percebi que não conseguia respirar. As lembranças da noite anterior me pegaram desprevenida de um jeito que me deixou assustada e com o coração acelerado. Abri a boca e puxei o ar com força, que desceu rasgando pela minha garganta como se eu estivesse empurrando vodca russa para o meu corpo ao invés de oxigênio. Me sentei, em pânico, tentando loucamente respirar, mas tudo o que eu estava conseguindo era que o ar entrasse pela minha boca com um som rasgado e machucasse a minha garganta.

Feche a boca, pensei, a irritação substituindo o pânico.

Fechei a boca e puxei o ar pelo nariz como se tivesse acabado de emergir depois de vários minutos embaixo d'água. Inspirei várias vezes até conseguir controlar o ritmo e apertei os olhos com força ao perceber que estava com dor de cabeça.

Dor. A palavra dançou na minha cabeça enquanto eu pensava na noite anterior. As lembranças pareciam confusas e fora de ordem. Eu me lembrava de ter ouvido uma conversa sobre pessoas que viriam atrás de mim. Um latejar insistente na parte de trás da minha cabeça confirmava que eu tinha batido a cabeça no chão quando apaguei e ainda tinha uma pulsação esquisita na minha garganta que me lembrava daquela dor sem motivo.

Aos poucos as lembranças foram ficando menos confusas e eu consegui me lembrar de tudo com clareza - inclusive da dor. Mas por mais que eu tentasse, não havia nenhuma lembrança de como eu havia chegado a cama.

Dei um pulo e tropecei até a janela ainda escancarada. Apertei os olhos por causa da cegueira momentânea causada pelo céu cinza carregado de nuvens densas que escondiam o sol e deixavam o dia frio e muito claro.

Espera. Dia muito claro? Mas que horas...

Olhei para meus nada menos que cinco despertadores e todos eles marcavam que eu estava quinze minutos atrasada.

Merda!

Corri para o closet arrancando a camisa enorme no caminho, catando uma camisa preta de botões e jogando-a no lugar logo depois - eu não tinha tempo para abotoar - para pegar uma blusa de algodão de mangas compridas e decote V e fazer com que os meus braços e cabeça entrassem no lugar certo. Vesti os jeans justos e escuros do dia anterior e acabei calçando meias de cores diferentes. Enfiei um par de all-star de cano alto nos pés agradecendo a mim mesma por nunca ter gostado de amarrar os cadarços e trança-los de um jeito que eu não precisasse fazer isso.

Peguei minha mochila, catei minha jaqueta de couro preto de uma das almofadas gigantes e saí do quarto, apressada, gritando por meu pai, mas não tive resposta. Já estava tarde então ele já estava trabalhando. Mas por que não me acordou?

Peguei o celular e liguei para o meu pai enquanto descia as escadas. Caixa postal.

- Mas que droga! - gritei frustrada e quase tropecei no último degrau da escada. Comecei a procurar minhas chaves. Meu pai certamente me levaria para escola já que eu estava de castigo, então ele provavelmente estava com as minhas chaves.

Ou não.

Aparentemente, aquele seria um dia de pensamentos curtos e objetivos.

Quase gritei de tanta frustração quando procurei na minha mochila e achei a chave de casa e do meu carro.

Bati a porta da frente e desci os treze degraus da frente, virando à esquerda para abrir a porta da garagem que ficava embaixo de uma das janelas da sala. Não pude evitar olhar para o outro lado da rua. Para o banco. Vazio.

Por um instante eu só fiquei parada lá, olhando para o banco agora vazio e recapitulando aquela conversa estranha entre dois caras estranhos que tinham nomes estranhos. Se tivesse alguma verdade naquilo eu deveria ficar preocupada.

Precisamos levar essa garota.

Quase entrei em pânico e comecei a olhar para os lados enquanto erguia a porta da garagem. Entrei apressada para contemplar meu presente de aniversário de dezesseis anos: um Nissan Juke vermelho e reluzente que eu tanto amava. Não podia evitar um suspiro toda vez que olhava para ele.

Apertei o botão para desligar o alarme e destravar a portas. Entrei logo depois do barulhinho familiar e do piscar das luzes e respirei o ar do meu carro.

Então me lembrei de que estava atrasada.

Liguei o carro e procurei, procurando o controle remoto da porta da garagem que eu sempre deixava ali dentro e o encontrei no banco do carona. Saí da garagem devagar para ter uma visão do portão se fechando e quando garanti que ele estava fechado e que eu estava fora do campo de visão dos vizinhos, pisei fundo no acelerador e cheguei à escola em seis minutos. Nada mal.

Estacionei ao lado de um Fiesta azul reluzente que eu reconheci como sendo da chefe das líderes de torcida. Arrastei minha mochila do banco do carona ao mesmo tempo em que abria a porta do carro. No instante em que coloquei o pé para fora do carro meu celular tocou.

- Tá, pai. Eu já levantei - eu falei mal humorada. - Não graças a você, é claro. Onde você está?

- Trabalhando, Anne - meu pai respondeu e eu notei que tinha alguma coisa errada.

Bati a porta do carro.

- Onde você está? - ele perguntou parecendo alarmado.

- Onde você sempre me força a vir todos os dias de manhã - respondi apertando o botão para ativar o alarme. - No inferno.

- Anne, volte para casa agora.

Parei no meio de uma passada.

- Hein? Pai, você tá legal? Você me colocou de castigo por não ir à aula como deveria e hoje que eu estou aqui você quer que eu volte?

- Anne, eu não estou brincando. Volte para casa agora mesmo.

Ele disse aquilo como se estivesse me dando uma bronca. Meu pai estava brigando comigo porque eu estava na escola!

- Pai, o que está acontecendo?

- Apenas vá para casa que eu já estou indo. Preciso que você vá para casa. Agora!

Com isso, ele encerrou a conversa e desligou na minha cara parecendo muito nervoso, com medo até. Mas por quê?

Precisamos levar essa garota.

Fui invadida por uma onda momentânea de pânico, que passou logo que as ondas de dor me fizeram perder o fôlego. Destravei as portas do carro e olhei em volta, com a cabeça girando um pouco, e me joguei no banco do motorista, puxando a porta com uma mão e ligando o carro com a outra.

Fiz o percurso de volta em ainda menos tempo. Estacionei logo atrás do carro do meu pai e saí apressada, olhando para o banco do outro lado da rua. Vazio.

Subi os degraus da entrada de três em três e abri a porta com força. No entanto não fui capaz de dar um passo sequer.

Meu pai estava no meio da sala, em frente à lareira, com os pés plantados no tapete árabe. Ele olhou para mim com uma cara de que estava tão aliviado que pudesse desmaiar. Mas tinha algo mais no seu olhar. Ele estava com medo. Não posso culpa-lo por isso. Eu também fiquei assustada quando escancarei a porta de casa e encontrei meu pai cercado de meia dúzia de homens enormes segurando espadas de quase um metro.


Os Guerreiros de Antares - TréguaOnde histórias criam vida. Descubra agora