Verdade

87 11 7
                                    

Tive a sensação de que ia vomitar. Ou ter um ataque histérico, o que viesse primeiro. Não porque acreditava, mas porque eu já estava no meu limite com toda aquela palhaçada.

- Você tá me zoando - eu disse aquilo da mesma maneira quando alguém resmunga um "Hummm" no fim de uma conversa para deixar bem clara a sua opinião sobre o que foi dito: tédio.

- Então você não acredita - Grigori disse com um suspiro e olhou para o espaço ao meu lado no sofá, onde meu pai estava irritante e misteriosamente quieto com os olhos baixos e os cotovelos apoiados nos joelhos, fazendo parecer que aquele era o último lugar em que ele queria estar. O que provavelmente era verdade. - Bom, se não acredita em mim, talvez acredite no seu pai.

- Escuta - eu disse sentindo o gosto de sangue na boca, fazendo um esforço tremendo para levantar e um maior ainda para me manter em pé sem cambalear muito. Apontei o indicador para o nariz dele. - Você invade a minha casa segurando uma espada, leva uma flechada e sobrevive feliz e sorridente para me dizer uma coisa dessas? Você é louco. Fora daqui!

Eu estava pronta para dizer mais o que fosse preciso para fazer com que ele fosse embora de vez para que eu pudesse fingir que aquilo nunca tinha acontecido, mas a voz do meu pai me congelou de repente.

- É verdade - ele se levantou como se dizer aquilo doesse muito. - Você não é Humana.

Olhei para ele com cara de você enlouqueceu?, incapaz de me mexer. Grigori apoiou a mão no meu punho erguido com o meu indicador quase tocando seu nariz e o abaixou delicadamente.

- Mas... O que... - tentei dizer algo conveniente, mas minha língua enrolou na boca.

Meu pai colocou as mãos nos meus ombros e me virou para ele para me olhar nos olhos.

- Anne, eu sinto muito - ele apoiou a mão na parte de trás da minha cabeça e me puxou para o seu peio, me envolvendo com seus braços. - Eu nunca quis que isso acontecesse.

Eu não conseguia me mover. Minha mente tentava achar algum sentido naquelas palavras, mas parecia impossível. As informações chegavam até o meu cérebro e batiam em alguma barreira que me impedia de processar aquilo. O sistema não computa. Por favor, tente novamente.

- O que... - consegui dizer ainda grudada ao corpo do meu pai. - Do que está falando?

- Eu sinto muito - meu pai repetiu e beijou o topo da minha cabeça me apertando com mais força.

Tive a impressão de que fosse explodir. Não fazia sentido. Não havia outra coisa para eu ser além de Humana. Eu não era nenhum tipo de animal, disso eu tinha certeza. Mas, se eu não era Humana...

Falha grave no sistema! Falha grave no sistema! Preparar para autodestruição.

- Do que você está falando? - perguntei de novo, me afastando com raiva e sentindo meu corpo esquentar com uma espécie de fúria.

- Somos guerreiros - Deimos se meteu na conversa dizendo aquilo com certo orgulho. - E você é uma de nós.

Iniciar contagem regressiva...

- Você já deve ter notado que é... melhor do que os outros em muitas coisas - olhei para Kevin encostado na parede da lareira com os braços e os tornozelos cruzados, com uma cara tão entediada quanto a minha estava horas antes. - Como em qualquer tipo de luta, por exemplo.

Verdade.

O sistema vai se autodestruir em dez...

- Seu corpo é muito mais resistente do que o normal - o cara que me viu e me entregou quando eu tentei sair de fininho anunciou com sua postura perfeita, fazendo a poltrona na frente dele parecer um simples banquinho acolchoado. - Por isso você pode pular janela e cair de pé sem quebrar nada.

Fiquei tonta. Verdade.

Nove...

- Você é mais forte - girei a cabeça rápido demais para ver o cara que levou o soco mais cedo esfregar a mão no lado esquerdo do rosto para enfatizar sua fala. - O suficiente para quebrar o pescoço de uma pessoa normal com um soco e aguentar um soco da mesma intensidade sem se machucar muito.

Não, não, não, não, não! Não fazia sentido algum, mas uma voz na minha cabeça julgou aquela afirmação como verdadeira.

Oito...

- Você não se cansa com facilidade - alguém disse de algum lugar, mas eu não me importava mais com quem estava falando. - Pode manter um ritmo regular de corrida por horas se quiser.

Eu não conseguia respirar. Levei a mão ao estomago e pressionei para tentar diminuir o enjoo que eu estava sentido. Verdade.

Sete...

- Sua audição é tão boa que, se quiser, você pode ouvir o chuveiro de alguém a duas casas daqui - mais uma vez não sei quem disse aquilo.

Entrei em pânico. Verdade!

Seis...

- E a sua visão é perfeita - reconheci a voz de Grigori, que estava bem na minha frente.

Fiquei ofegante. A sala começou a girar. Merda! Era verdade.

Cinco...

- Sua mente processa tudo muito rápido - Kevin falou de novo. - Por isso a escola é um inferno.

Eu precisava de apoio. Minha cabeça ia explodir. Verdade!

Quatro...

- Seus reflexos são incríveis e, apesar de cair muito, você nunca quebrou um dedo sequer - o cara que levou o soco acrescentou.

Verdade. Aquilo não podia estar acontecendo.

Três...

- Você nunca fica doente - foi meu pai quem falou dessa vez e eu fiquei horrorizada ao saber que ele estava certo. Não me lembrava de ter ficado doente, nem mesmo resfriada.

Dois...

- Parem com isso - eu disse dando um passo para trás, insegura do que fazer. Era verdade. Tudo o que estavam dizendo era verdade. Corpo resistente, força e agilidade fora do comum, ouvidos de felinos, olhos de ave de rapina... Eu não podia acreditar naquilo. Não queria acreditar. Eu só queria acordar de uma vez.

- Somos guerreiros - Kevin ecoou a única coisa que Deimos havia dito. - E você é uma de nós.

- Não! - eu pretendia gritar, mas o que passou pela minha garganta foi apenas um sussurro.

De repente a dor no meu corpo ficou mais aguda e meus joelhos cederam. Um som agudo penetrou nos meus ouvidos machucando meus tímpanos. Tapei os ouvidos com as mãos e não pude segurar o grito de dor que escapou por meus lábios. Meu pai tentou chegar perto de mim, mas Grigori o segurou pelo braço dizendo algo sobre "estar Despertando".

Um!

Algo de errado aconteceu. As lâmpadas começaram a ascender e apagar e logo depois eu ouvi o som de todas elas estourando - talvez por causa do som agudo de estourar os tímpanos -, espalhando pequenos cacos pelo chão. A dor em mim se intensificou e eu apertei os olhos com força e me encolhi no chão. O tempo pareceu congelar por um breve instante e a dor foi bruscamente interrompida por uma onda de pressão que saiu de mim, produzindo o mesmo efeito de círculos crescentes que a água faz quando se joga uma pedra num lago. A onda se espalhou pela sala como se o som agudo tivesse rompido a barreira do som.

Ergui a cabeça com a visão turva pela dor. O silencio durou um milésimo de segundo quando a onda se espalhou pelas janelas e logo depois elas explodiram em milhares de pedaços para dentro da sala.


Os Guerreiros de Antares - TréguaOnde histórias criam vida. Descubra agora